Victor Civita (1907-1990), deixou como legado uma empresa que mudou os rumos da imprensa brasileira

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Entusiasmo até o fim

Depois de trabalhar no dia 24 de agosto de 1990, Victor Civita (Nova York, 9 de fevereiro de 1907 – São Paulo, 24 de agosto de 1990), fundador do Grupo Abril e editor de Veja, deixa empresas que publicam 200 revistas, imprimem cerca de 200 milhões de exemplares por ano e empregam um total de 15 000 pessoas, morre de um ataque cardíaco e deixa como legado uma empresa que mudou os rumos da imprensa brasileira.

Ao morrer no cair da tarde do dia 24 de agosto de 1990, em São Paulo aos 83 anos de idade, Victor Civita levou consigo a rara satisfação de ter sido um homem que jogou toda a sua vida num grande sonho – e conseguiu realizar-lo absolutamente, por inteiro. Sob sua inspiração, foi construído a partir de São Paulo um complexo empresarial que abarca o maior parque industrial da América do Sul, publica mais de 200 revistas, imprime cerca de 200 milhões de exemplares ao ano e se estende por editoras de livros, fascículos, guias, anuários, enciclopédias e listas telefônicas.

Nesse portentoso grupo, liderado pela editora Abril, trabalham mais de 15 000 funcionários. Suas ramificações se estendem pela América Latina e alcançam Portugal e Espanha. Além das revistas e demais publicações, as empresas criadas por Victor Civita compreendem ainda emissoras de televisão, distribuidoras de revistas e de fitas de videocassete, hotéis, transportadora, fábrica de embalagens e frigoríficos. Esse triunfo no terreno empresarial e público tinha sua contrapartida no seu âmbito privado: Victor Civita foi feliz com sua mulher, Sylvana, seus filhos, Roberto e Richard, seus nove netos e seus inúmeros amigos. Ele foi bem-sucedido em todos os campos, tirando tudo que a vida pode dar.

Victor Civita – ou “VC”, como o tratavam os amigos, ou o “seu Vitor”, usado pelos funcionários da Abril – acabou obtendo o que queria da vida até mesmo na hora de deixa – la. Ele sempre disse que os familiares e os amigos que almejava morrer em plena forma, inteiro, sem passar por nenhum hospital, sem ter de se submeter a equipes médicas, aparelhos ou remédios, e, de preferência, de um minuto para outro. Foi atendido. “No dia 24 (de agosto de 1990), ele chegou às 9 e meia da manhã, como fazia todos os dias”, conta Luiza Crema, sua secretária à trinta anos. “Ele trabalhou normalmente: fez ligações, atendeu pessoas e ditou comunicações internas.” Victor Civita saiu um pouco mais cedo de seu escritório no 6º andar do edifício Abril, na Marginal do Rio Tietê, e recolheu-se a seu apartamento na Avenida Higienópolis, próximo ao centro de São Paulo.
Ao acordar de uma rápida sesta, teve o coração paralisado por um único, instantâneo e fulminante ataque.

Reviravolta – O fundador da Abril foi um homem que provavelmente desconheceu o significado da palavra depressão. Quem o conheceu não se lembra de te – lo visto, nunca, entregue a estados de espírito introspectivos, ou abatidos, ou escurecidos por dúvidas existenciais. Com a maior naturalidade, mesmo depois de completar 80 anos, continuava a fazer planos para o futuro – além de se interessar, interferir e orientar o trabalho no presente. Desde 1985, o seu maior xodó era a Fundação Victor Civita, entidade sem fins lucrativos que se dedica a projetos na área de educação e cultura. Mais de 500 000 exemplares mensais das publicações da Função são enviados gratuitamente aos professores de 1º e 2º graus da rede oficial de todo o país. “Nos últimos dias ele estava feliz e entusiasmado por ter renovado um convênio da Fundação com o Ministério da Educação para a distribuição da revista NOVA ESCOLA”, diz José Alcione Pereira: “Seu Vitor me ligava de dez a quinze vezes por dia e sempre criava umas três ou quatro coisas novas para inventarmos e colocarmos em prática”.

 
Entusiasmado em tempo integral, Victor Civita desenvolveu uma série de atividades na Itália e nos Estados Unidos antes de aportar no Brasil para deslanchar no Brasil sua obra incisiva. Aos 42 anos idade em a esmagadora maioria das pessoas já está assentada na vida e tem um rumo profissional claramente traçado, ele chegou a São Paulo, e mudou radicalmente de atividade. Pouco depois de desembaraçar no Brasil, em dezembro de 1949, percebeu o potencial do país e decidiu aqui se estabelecer. Sem falar o português e sem nenhum contato com a elite de então, empenhou todas as suas economias e endividou-se pesadamente para criar algo que os finos espíritos realistas da época consideravam uma rematada loucura: uma editora moderna, com revistas variadas, que oferecesse aos leitores brasileiros os mesmo padrões das melhores publicações do mundo. A arrojada reviravolta de Victor Civita aos 42 anos fez com que seu destino se ligasse indissociavelmente ao Brasil – e que a história da imprensa do país mudasse de rumo. “Victor Civita foi um cidadão exemplar, cujo maior mérito foi acreditar no Brasil, onde investiu o melhor de seu talento”, disse p presidente Fernando Collor ao saber de sua morte.

 
Victor Civita deve ter herdado de seu pai, Carlo, o gosto pela aventura e a persistência em conseguir seus objetivos. Contador nascido em Mantova, na Itália, Carlo apaixonou-se por Vittoria Carpi, de Milão. O pai da noiva, barítono e professor de música, recebeu um convite para lecionar num conservatório em Chicago, aceitou e mudou-se para os Estados Unidos com a família. Sem pestanejar o apaixonado Carlo seguiu a namorada Vittoria rumo à América, onde se casaram. Lá tiveram o primeiro filho, César, e, em 1907, Victor Civita, nascido no bairro do Village, m Nova York. Dois anos depois o casal com os filhos voltou para a Itália, instalando-se em Milão. Carlo montou uma firma de representação de máquinas americanas e depois uma oficina automobilística. Aluno pouco aplicado Victor cursava o Instituto Técnico de Estudos Comerciais, e também trabalhava na oficina do pai. Não ia muito bem nos estudos, mas saia-se muito bem na retífica de motores – acumulando um conhecimento que depois se mostraria útil quando lançou, décadas depois, a revista QUATRO RODAS. Também tinha uma fascinação absoluta por aviões, chegando a servir na força aérea italiana.

“Vire-se” – Nas oficinas de Carlo nasceu também a primeira revista do Civita – Garage Moderna e Stazioni Servizi, publicação mensal de 32 páginas dedicada à clientela do estabelecimento. Ao completar 20 anos, Victor Civita ganhou do pai um talão de cheques, uma passagem de navio para os Estados Unidos e a ordem: “Vire-se”. Deixou os pais e os irmãos (Arthur, o caçula, nasceu na Itália em 1912) e foi se virar na América. Perambulou por 27 cidades durante quase um ano, empregando-se como operário de fábricas, participando de seminários, frequentando óperas e conversando com todo o tipo de pessoas. “A isto se chama preparar os filhos”, diria Victor Civita muito anos depois, referindo-se à ideia do pai em manda-lo virar-se por conta e risco nos Estados Unidos.

De volta a Milão, VC envolveu-se nos negócios da família e começou a namorar Sylvana Alcorso, uma romana voluntariosa de olhos azuis translúcidos. Casaram-se em 1935, tiveram o primeiro filho no ano seguinte. Roberto (hoje diretor superintendente da Editora Abril), e em 1939 nasceu Richrad (diretor-presidente da CLC-Comunicações, Lazer, Cultura). Queriam ter uma filha e que se chamasse Claudia. Não tiveram, mas Victor e Sylvana fizeram a revista CLAUDIA nos anos 60 e passaram a encara-la como uma espécie de filha. Em 1939, o fascismo vivia sua fase áurea na Itália e, sentindo-se ameaçado, o futuro editor partiu com a mulher e os filhos pequenos para os Estados Unidos, depois de fazer uma escala na França. Ficará dez anos nos Estados Unidos, mas ainda não se transforma em editor. Em Nova York, ele trabalhou numa indústria gráfica que fabricava embalagens finas, onde foi chefe de vendas e chegou ao posto de vice-presidente da empresa, apesar de ter somente 10% das ações.
Nessa indústria, Victor Civita conheceu e tratou diretamente com Helena Rubinstein e Elizabeth Arden, fazendo embalagens de perfumes e produtos de beleza para as empresas delas. Era uma nova experiência acumulada, que daria frutos nas revistas femininas da Abril, como MANEQUIM e ELLE. Em 1949 Victor Civita decide sair da empresa, já que os sócios majoritários compraram suas ações. Uma outra indústria o convida para um cargo importante, ele pede tempo e tira férias na Itália, para que os filhos conhecessem o país. Nas férias encontrou-se com seu irmão César, que também estava descansando. César morava em Buenos Aires, onde montara uma editora. O irmão mais velho o convenceu a olhar sua empresa na Argentina antes de aceita r a proposta americana. Sylvana e os filhos voltaram para Nova York e Victor Civita foi para a Argentina.

Carnaval no Rio – Passou uns cinco meses na Argentina, gostou do negócio do irmão, mas o país não o comoveu. Para piorar, como não se apresentou à polícia peronista no prazo de sessenta dias as autoridades lhe deram uma semana para sair do país. “Disse que sairia e não voltaria nunca mais”, relembrou depois. Chegou em dezembro de 1949 ao Rio de Janeiro, onde ficou pouco tempo, embarcou num DC-3 para São Paulo e gostou do país. Em questão de semanas telegrafou para Sylvana; “Vende tudo, arruma tudo e no fim do semestre escolar muda para o Brasil. Vou ficar por aqui”. Assim foi feito. No carnaval de 1950, o navio que trazia Sylvana, Roberto e Richard ancorou no Rio. Passaram os três dias lá e seguiram viagem para São Paulo, a cidade que Victor Civita havia escolhido para morar e materializar suas ideias.
Em abril de 1950, ele alugou uma saleta na Rua Líbero Badaró, no centro de São Paulo, e começou a tocar seu negócio. Victor Civita tinha conseguido a licença da Walt Disney para publicar no Brasil revistas em quadrinhos com os seus personagens, com a condição de que arcasse com todos os custos eventuais prejuízos. Ele tinha 500 000 dólares, parte deles proveniente da venda de suas ações nos EUA e parte emprestada por amigos. Nos bancos tomou emprestado mais 1 milhão de dólares e começou a montar sua editora e gráfica. O descrédito era geral. Diziam que no Brasil não havia leitores porque a maioria era de analfabetos, que desenhistas, intelectuais e jornalistas estavam no Rio e não se transfeririam para São Paulo, que, em suma, não havia como publicar revistas. VC argumentava que havia, sim, 50 milhões de leitores em potencial, que o grosso do dinheiro brasileiro estava em São Paulo e que os talentos do Rio mudariam para São Paulo se fossem bem remunerados. A maioria lhe fechava as portas. “Se eu tivesse aceitado a centésima parte dos nãos que recebi desde que cheguei ao Brasil, todas as empresas que fundei não existiriam, porque, a começar pelos banqueiros, e chegando aos intelectuais, ouvi somente a palavra não a respeito daquilo que pretendia fazer”, rememorou o editor numa conferência na USP em 1986.

Teimosia – Em julho de 1950, a revista O PATO DONALD chegou às bancas, caindo nas graças na garotada. Uma fabriqueta reformada, no bairro de Santana, transformou-se na Saib, Sociedade Anônima Impressora Brasileira, embrião do futuro parque gráfico da Abril. Não havia telefone, a energia elétrica era insuficiente e a empresa operava de maneira mais que precária. De abundantes, só os nãos que o editor recebia dos responsáveis por telefones e energia elétrica. Victor Civita fazia que as negativas não era para ele. No dia seguinte ao não, infalível, lá estava ele solicitando gentilmente a instalação de telefones e mais energia elétrica. Venceu pelo cansaço, pela teimosia. Os negócios prosperaram, mas ele não sossegou. Comprou rotativas modernas. Lançou CAPRICHO em 1952, que logo atingiu a marca dos 500 000 exemplares, batendo o recorde de tiragem na América Latina. Em 1958, publica ILUSÃO, só com fotonovelas. Em 1959 ataca com MANEQUIM, dedicada exclusivamente à moda. No ano seguinte, é a vez de QUATRO RODAS. Em 1968, a Editora Abril lança VEJA, hoje a revista de maior tiragem do Brasil e a quinta do mundo.

A lista de iniciativas empresárias arquitetadas por Victor Civita desde então é espanto. Há lugar nela para discos de música clássica e popular, livros de filosofia, e clássicos de literatura, a luxuosa A Bíblia Mais Bela do Mundo, enciclopédias, fascículos de moda e culinária, artes plásticas e história. E tudo isso vendido em bancas, em tiragens de centenas de milhares de exemplares, destinadas à chegar aos cultos, às crianças, aos jovens, aos pobres, aos ricos, aos estudantes, aos poderosos, aos deserdados – tudo isso para informar, educar, entreter e divertir o povo brasileiro. Em 1960, Victor Civita conseguiu sua naturalização brasileira. Cidadão do mundo, fez do Brasil o país do seu coração.
O fundador da Abril certamente tinha um talento aguçadíssimo para perceber aquilo que os leitores brasileiros desejavam e um apurado senso de oportunidade acerca dos lançamentos. Nesse ponto, era dono de uma sensibilidade de caráter quase artístico, tal o arrojo e inventividade que colocava nos seus projetos. No mais, era de um realismo a toda prova: para ele, o trabalho árduo era de 90% do caminho andado para as coisas derem certo, o dinheiro não devia ser desperdiçado e só se cercando de bons profissionais é possível conseguir qualidade. Tanto era assim que, em 1954, fez com que Roberto e Richard fossem algumas vezes para a rua vender revistas da Abril.
Victor Civita tinha também seu balaio de truques e máximas, que davam conta tanto das relações com o governo quanto dos clipes de sua mesa de trabalho. “Prefiro vender meu carro a tomar um tostão emprestado do governo, qualquer que seja ele”, dizia a um antigo colaborador. “Um editor não pode depender dos cofres públicos, isto se quiser ser um editor livre, voltado para os interesses de seu publico.” O mesmo colaborador, numa conversa no escritório de VC, pegava clipes da mesa e dobava-os até quebrarem. Só parou quando ouviu o seguinte raciocínio: “Escuta este é o terceiro clipe que você quebra. Você já imaginou se todos os 10 000 funcionários da Abril quebrarem três clipes todos os dias? Serão 30 000 clipes. Multiplique o resultado pelos dias de trabalho de um mês e, por favor, deixe os clipes em paz”.

Na manhã de sexta-feira (24 de agosto de 1990), Victor Civita era o mesmo de sempre: estava animado, cumprimentava todos no edifício Abril e, galante, caprichava no sorriso para as moças no elevador. À tarde, estava morto. À noite na empresa que fundou, os trabalhadores se esforçavam para que a reportagem em sua vida fosse publicada em cores, com informações corretas, e para que ela chegasse aos leitores no horário em que estão acostumados. Havia o esforço para seguir o exemplo de Victor Civita, para fazer com que sua obra continuasse a brilhar.

“Desde que a empresa foi fundado 1950, com pequeno capital e fé inabalável no Brasil, nosso trabalho foi orientado por alguns princípios básicos, dos quais nunca nos afastamos. Para nós, investir em educação, cultura, informação e entretenimento é contribuir decisivamente para o desenvolvimento do país. Grande parte do sucesso alcançado devemos ao público leitor, que sempre acolheu com entusiasmo nossas publicações, e aos milhares de dedicados profissionais que ao nosso lado trabalharam.”

Victor Civita

A vida, o trabalho, as mulheres

Em discursos solenes, entrevistas ou conversas relaxadas, Victor Civita mantinha sempre o mesmo estilo – e o sotaque. A seguir, uma pequena antologia das ideias, dos conselhos – e das confissões do homem que acreditava no trabalho e que sabia como fazê-lo.

“Quando me mostram a lista dos nossos sucessos, do que deu certo, pergunto: e lista dos reveses, do que não funcionou? Vamos vê-la.”

“Tenho que confessar a minha admiração pelas mulheres. Não somente porque elas são mais simpáticas do que os homens, mas também pelas muitas atividades que elas desenvolvem dentro de nossa empresa.”

“As coisas precisam ser bem-feitas. É simples e fundamental. Quando se erra, é preciso corrigir imediatamente, no ato.”

“As nossas revistas mudam com os anos, com os tempos, com as tendências. Essa é a razão pela qual continuam tendo sucesso.”

“Um editor precisa cheirar o mundo.”

“A melhor revista as Abril são todas. A pios é a que não vende.”

“Eu não herdei, Eu fiz.”

“Não é fácil dormir tranquilo após ter assumido compromissos que representam três vezes mais do que você tem no bolso.”

“Não sou um deus, sou um crítico. Mas principalmente, sou um fazedor. Diga-me uma coisa que ninguém quer fazer – aí eu saio e vou fazer.”

“Não tenho iate, não tenho fazenda. Só tenho dois apartamentos – o de São Paulo, onde moro, e outro no Guarujá. E não tenho avião. Quando preciso, alugo um.”

“Os banqueiros são pessoas honradas. Mas banqueiros com muita visão financeira conheci poucos na vida.”

“Embora se diga que uma fotografia vale mais que cem palavras, eu acho que dez frases podem valer mais que mil fotografias.”

“Não é a mais fácil e cômoda palavra que existe. Se alguém diz não, os problemas acabaram. Os problemas realmente começam quando você diz sim.”

“Tudo o que existe de bom no mundo a Abril já publicou.”

“Precisamos todos nos convencer de que são os cidadãos que constroem uma sociedade, e não os governos.”

“É indispensável ter admiração e respeito para aquela criatura que todos encontram ao mirar-se no espelho quando acordam.”

“Nossos governantes têm de encarar com seriedade a tarefa de gastar o dinheiro que arrecadam .”

“Se eu tivesse parado diante de todos os obstáculos que enfrentei desde o dia em que cheguei ao Brasil, hoje todas as empresas que fundei não existiriam.”

“Quero ter uma ideia nova a cada dia – e realiza-la.”

“Não vou me aposentar nunca. Nem penso nisso. Quero morrer aqui nesta mesa, trabalhando, cuidando de projetos, gerando ideias.”!

(Fonte: Veja, 29 de agosto de 1990 – ANO 23 – N° 34 – Edição 1145 – Memória – Pág; 76)

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