Raymond Roussel, escritor famoso pela excentricidade, influenciou os surrealistas André Breton, os “patafísicos” Raymond Queneau e Georges Perec, os “novos-romancistas” Michel Butor e Alain Robbe-Grillet

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Raymond Roussel e o multiculturalismo

 

Raymond Roussel

Raymond Roussel, embora nunca tenha sido aceito como um grande escritor, alcançou em sua vida uma espécie de grandeza, tão estranha quanto ótima. (Crédito: Domínio Público)

 

“Impressões da África”, publicado pelo autor francês, antecipou as técnicas de colagem e reciclagem da arte pop e anunciou o imediatismo das trocas culturais da sociedade de espetáculo pós-moderna

 

Raymond Roussel (Paris, 20 de janeiro de 1877 – Palermo, 14 de julho de 1933), é um escritor famoso pela excentricidade de sua personalidade e de seu comportamento. Poucos leram seus livros, mas muitos sabem que ele foi um milionário excêntrico dedicado à literatura, à música, ao teatro, e sujeito a surtos psicóticos.

 

Um pormenor sempre lembrado, embora não tenha nenhuma relevância ou consequência, é o fato de ele ter sido vizinho de Proust. As extravagâncias existenciais de Roussel são mais conhecidas do que sua obra. Ele percorria a Europa num luxuoso carro-moradia, precursor dos trailers modernos; comia as três refeições diárias de uma vez só, para não perder tempo.

 

É também sabida a influência que Roussel exerceu sobre numerosos escritores e artistas do século 20. Seus romances e encenações teatrais fascinaram os surrealistas como André Breton, os “patafísicos” Raymond Queneau e Georges Perec, os “novos-romancistas” Michel Butor e Alain Robbe-Grillet.

 

Suas obras inspiraram também importantes artistas plásticos como Picabia, Salvador Dalí e Marcel Duchamp, que concebeu o seu “grande vidro”, “La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même” (1923) a partir de uma cena de “Impressions d’Afrique” (Impressões da África, 1910).

 

Vários músicos de vanguarda criaram obras inspiradas por Roussel, e nos anos 60 o filósofo Michel Foucault escreveu um livro sobre ele (publicado no Brasil pela editora Forense Universitária). Mais recentemente, filmes, óperas, peças de teatro e exposições têm sido realizados a partir de sua vida e sua obra, em vários países.

 

Depois de um período de relativo esquecimento, Roussel tornou-se novamente um autor cult, especialmente nos EUA, onde foi publicada uma biografia (Mark Ford, “Raymond Roussel and the Republic of Dreams”, ed. Faber & Faber). As referências ao escritor circulando atualmente na internet ultrapassam o número de 3.000.

 

Os romances de Roussel, cujos títulos mais conhecidos são “La Doublure” (O Substituto), “Locus Solus” e “Impressions d’Afrique”, foram concebidos como meros jogos verbais.

 

Como o próprio autor explicou, em “Comment J’Ai Écrit Certains de Mes Livres” (Como Escrevi Alguns de Meus Livros), essas narrativas têm como ponto de partida ditos populares, trocadilhos, homofonias e paranomásias. São portanto livros que, em princípio, destinam-se a uma leitura lúdica, e não a uma análise semântica, simbólica ou ideológica. No entanto, como qualquer discurso verbal, o de Roussel está carregado de sentidos: sentidos depositados em sua memória por suas leituras e experiências, e sentidos produzidos, à sua revelia, pelo próprio texto. A África referida em “Impressions d’Afrique” é um lugar imaginário, condizente com os clichês coloniais dos romances de aventuras do fim do século 19: “Calor acabrunhante”, “admirável vegetação”, “sol ofuscante”, “animais ferozes” etc.

 

A história começa com os preparativos da sagração de Talou 7º, imperador do Ponoukélé, rei de Drelchkaff. Os nomes próprios são todos fantasiosos, e o cenário, convencional. “Ejur, a imponente capital formada de inúmeras cabanas e banhada pelo oceano Atlântico”, tem em seu centro a “praça dos Troféus”, cercada de sicômoros cujos troncos “exibiam cabeças cortadas, ouripéis, enfeites de toda espécie ali acumulados por Talou 7º ou por seus ancestrais, na volta de muitas campanhas triunfantes”. Nesse cenário estereotipado vai ocorrer um grande espetáculo, cuja descrição ocupa a primeira metade do livro. É a “Gala dos Incomparáveis”, festa preparada para comemorar a coroação do imperador. O “Clube dos Incomparáveis”, explica o narrador, é “uma espécie de clube estranho no qual cada membro deve se distinguir ou por uma obra original ou por uma exibição sensacional”.

 

Um grande espetáculo

 

O espetáculo, minuciosamente descrito, comporta números inesperados e heteróclitos, do ponto de vista geográfico e cultural. As primeiras estranhezas se veem no palco, onde aparece a imagem de duas gêmeas espanholas usando a mantilha nacional e, a um canto, uma maca de ramagens sobre a qual repousa o cadáver do rei negro Yaour 9º, “usando o traje clássico da Margarida de Fausto, um vestido de lã cor-de-rosa e uma espessa peruca loura”. Os números que se sucedem são variados: acrobatas, atiradores, máquinas e veículos estranhos, um show pirotécnico, exibições de esculturas e pinturas, um cigano húngaro com sua cítara, um coro que canta “Frère Jacques”, um bretão perneta tocando uma flauta feita de sua própria tíbia, uma grande atriz trágica italiana, uma índia huroniana do lago Ontário, um ancião cego representando o papel de Haendel, uma bailarina russa velha e obesa, um casal de jovens negros encarnando Romeu e Julieta, etc. A descrição do espetáculo se estende por 160 páginas e seria impossível resumi-lo. Na segunda parte do romance, o leitor tem a explicação desse conjunto de cenas disparatadas.

 

A explicação é a seguinte: um navio que se dirigia para “as curiosas regiões da América do Sul”, transportando turistas, aventureiros e artistas em turnê, havia naufragado na costa africana, e os náufragos, aprisionados pelos nativos, deviam agora pagar sua libertação e sua vida com esse espetáculo em honra do rei africano. Outro naufrágio, anterior, havia já lançado, naquela mesma costa, destroços variados que tinham sido incorporados às tradições locais. E um terceiro naufrágio, posterior, trouxe novos integrantes para o “Clube dos Incomparáveis”. A lógica narrativa é assim mais ou menos assegurada, mas a intriga não é o elemento principal do romance. Este é sobretudo a descrição de um grande espetáculo que parece, à primeira vista, gratuito e absurdo. Poderíamos dizer que aquilo que é dado à contemplação é a própria cabeça de um grande burguês francês da belle époque, uma cabeça na qual a educação, as leituras, as Exposições Universais, o music-hall e o próprio espetáculo diário da metrópole parisiense depositaram um estoque de imagens. Como procedimento estético, a representação do romance prenuncia as técnicas de colagem e reciclagem de elementos diversos que caracterizariam mais tarde a arte pop.

 

Roussel acabou por encenar, em seu romance, as explosivas misturas resultantes das práticas modernas: colonização, migrações humanas, viagens de turismo, circulação desordenada de imagens, informações e mercadorias

 

Roussel havia lido muitos romances de aventuras, especialmente os de Jules Verne, e de viagens, sobretudo os de Pierre Loti. Os africanos de “Impressions d’Afrique” são tipos fixados pela imaginação colonial: “Negrinhos ágeis”, “temíveis canibais”, “antropófagos ferozes”, alegres, barulhentos, ingênuos, curiosos, em suma “indígenas maravilhados” diante dos prodígios da civilização europeia. Algo que poderíamos chamar, em analogia aos “orientalismos” estudados por Edward Said, de “africanismos”. Seria entretanto demasiadamente fácil denunciar o caráter ideológico desses clichês, sobretudo porque os personagens europeus, com seus trajes típicos e seus costumes, são tão estereotipados, no romance, quanto seus correspondentes africanos. Europeus ou africanos, todos são tipos caricaturais, dotados de pensamentos e sentimentos convencionais. Eles experimentam “vivas emoções”, “saúdam com ebriedade a realização de seus sonhos”, têm “sinistros pressentimentos”, ficam “pálidos de cólera” etc.

 

Não se encontra, no romance de Roussel, a mínima complexidade (ou verdade) antropológica ou psicológica. São numerosíssimos os chavões relativos aos europeus sediados na África. O preposto Lécurou é “um bruto maníaco que se vangloriava com orgulho de sua ferocidade legendária”. A exploradora Louise, trajada de militar, embarcara “cheia de exuberante otimismo” em direção a essas “terras perigosas”. Como o próprio Roussel, Louise havia colhido informações sobre a África em livros: “Lendo, em diversos relatos de exploradores, tantas descrições feéricas da flora tropical, a jovem sonhava percorrer as ardentes regiões do centro africano, certa de centuplicar, no seio dessa vegetação sem igual, suas parcas chances de sucesso”. Seria portanto inútil e mesmo ridículo tomar ao pé da letra as aventuras contadas por Roussel. Elas foram concebidas como um discurso programado, uma montagem mais ou menos aleatória de expressões verbais. Foi esse tipo de leitura, cujas chaves o próprio autor forneceu, que encantou os surrealistas, por sua semelhança com o jogo do “cadavre exquis” ou com a escrita automática, e que seduziu mais tarde todos os amantes da experimentação verbal, patafísicos, novos-romancistas e teóricos da “produtividade textual” dos anos 70.

 

Punhado de lembrancinhas

 

O momento histórico atual, este início de um novo século, permite-nos uma outra leitura de Roussel, sobretudo no que se refere a “Impressions d’Afrique”. Esse romance, publicado à custa do autor, demorou 22 anos para ter esgotada a primeira edição. Mas, depois de 92 anos, não esgotou suas possibilidades de leitura. O que parece hoje notável é a premonição que o romancista teve de certas mutações históricas e culturais do século 20, que ele intuiu a partir de seu tempo. Pretendendo realizar um simples jogo inconsequente, Roussel acabou por encenar, em seu romance, as explosivas misturas resultantes das práticas modernas: colonização, migrações humanas, viagens de turismo, circulação desordenada de imagens, informações e mercadorias.

 

A rapidez e a superficialidade dos contatos culturais e da divulgação dos conhecimentos científicos, que se acentuariam depois com as viagens aéreas e a comunicação de massa, estão anunciadas no romance assim como a finalidade mercantil universal desses deslocamentos e informações. A exploradora Louise já era uma mulher de negócios do século 20, pois suas pesquisas visavam à publicação de “um tratado de botânica curto, atraente e ilustrado, obra de divulgação destinada a pôr em relevo as espantosas maravilhas do mundo vegetal”. Ela “terminou rapidamente esse opúsculo que, impresso num grande número de exemplares, trouxe-lhe uma pequena fortuna”.

 

Os africanos do romance, que incorporam de modo fantasioso os usos e as vestimentas europeias, não ficaram, infelizmente, apenas na imaginação de Roussel. A destruição das culturas locais pela colonização predatória, e os amálgamas resultantes, produziram, no século 20, personagens reais como o imperador Bokassa 1º, da República Centro-Africana, e o general Idi Amin Dada, de Uganda, que, com seus tronos Luis 15 dourados, seus uniformes e suas medalhas, não foram mais absurdos do que o rei negro de Roussel, com seu vestido de Margarida de Fausto e sua peruca loura.

 

Como os dirigentes nativos pós-coloniais fariam depois, o imperador Talou procurava imitar os europeus: “Querendo impressionar seus súditos, ele nos pedia que o informássemos de alguma tradição grandiosa dos brancos”. Os africanos do romance de Roussel recolhem os restos da cultura europeia: “Os negros haviam, em menos de uma semana, graças a um vaivém contínuo, transportado para Ejur todos os despojos de nosso infeliz navio”.

 

O multiculturalismo atual, imposto, imediato, superficial e sobretudo comercial, justapõe pessoas e costumes e tende a diluir toda originalidade numa “cultura” global uniforme, destruindo aquilo que Lévi-Strauss chamou de “arco-íris das culturas”

 

Não fosse o naufrágio, esses “despojos” tinham como destino final a Argentina, onde agentes financeiros pretendiam realizar negócios, cientistas duvidosos iam fazer conferências e artistas decadentes iam em busca de um novo público. Alguns deles destinavam-se a animar a festa de casamento de um novo-rico portenho. Todos esses tipos de viajantes tendo por destino a América do Sul eram comuns na belle époque e se tornaram ainda mais comuns ao longo do século 20.

 

Não são apenas os africanos ou os sul-americanos que recolhem despojos. Os europeus da história, por sua vez, assemelham-se aos turistas de hoje, que percorrem rapidamente os países exóticos, levando de volta para casa um punhado de lembrancinhas e de fotos. Em sua existência errante, o próprio Roussel mostrava-se desencantado das viagens modernas. Ele ia de cidade em cidade para ficar fechado em seu trailer ou em algum hotel. Uma vez, fretou um navio para ir à China com alguns amigos. Quando o comandante anunciou a aproximação da costa, Roussel apontou-a aos convidados dizendo: “Eis a China!”. E deu ordens ao comandante para voltar à Europa.

 

As viagens organizadas de turismo, que se tornaram tão fáceis e numerosas no século 20, mostram que o tédio do escritor tinha fundamento. Da mesma forma, as reportagens de viagem que se veem atualmente na televisão a cabo oferecem, aos espectadores sedentários, uma coleção de imagens que formam um conjunto tão incongruente quanto o espetáculo oferecido pelos “Incomparáveis”.

 

As cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos, misturando trajes típicos e danças de várias culturas, também se parecem com o espetáculo rousseliano. Outra experiência atual que faz pensar nesse espetáculo é a do Teatro Intercultural, movimento internacional que teve sua última Olimpíada em Moscou e conta com grandes encenadores como Peter Brook e Jerzy Grotowski. Shakespeare ou Sófocles encenados à moda kabuki nos lembram, de modo menos risível, mas não menos surpreendente, a “Gala dos Incomparáveis”. E uma realização mais literal da ideia de Roussel foi uma adaptação de Romeu e Julieta interpretada por atores negros, num filme americano recente.

 

Embora ela não tenha sido escrita com esse objetivo, a história maluca contada por Roussel nos mostra como se constituem as culturas na modernidade tardia. A vida de todas as sociedades sempre foi marcada pela interação com outras. Em todos os tempos, as culturas particulares se formaram pelo contato entre diferentes povos, pela assimilação de traços exógenos. Entretanto no passado essa assimilação era lenta e seletiva, e a cultura resultante garantia sua originalidade ao mesmo tempo em que incorporava traços de outras proveniências. O multiculturalismo atual, imposto, imediato, superficial e sobretudo comercial, justapõe pessoas e costumes e tende a diluir toda originalidade numa “cultura” global uniforme, destruindo aquilo que Lévi-Strauss chamou de “arco-íris das culturas”.

 

O romance contém outros anúncios de nosso “admirável mundo novo”. A fascinação tecnológica e científica do século 20 já tomava conta dos personagens de Roussel. Certas invenções exibidas em seu espetáculo se assemelham a artefatos tecnológicos incipientes na belle époque, como o cinema, ou posteriores a ela. Aparelhos como a “planta ávida de assimilação pictórica”, que garantia a gravação e “a reprodução imediata de imagens”, parecem anunciar a fotocópia, o scanner e a fotografia digital. A justaposição de cenas de diversas proveniências, laboriosamente obtidas nos “quadros vivos” do romance e da encenação teatral de “Impressions d’Afrique”, pode ser hoje produzida facilmente no computador.

 

Outra prática, levada pelos europeus à África de Roussel, anuncia também nosso mundo atual. Como havia, entre os náufragos, alguns banqueiros e corretores da Bolsa, esses veem o lucro que pode advir do espetáculo que preparam. Inventam um prêmio e encorajam os companheiros a fazer apostas: “Tratava-se de transformar todos os membros do grupo em ações comerciáveis, e de instituir um jogo de azar”. O prêmio do vencedor seria uma “condecoração da Nova Ordem” (da Nova Ordem Mundial?, perguntaríamos hoje), o dos jogadores seria pago em dinheiro. Para esse fim, construíram “um novo edifício reservado às transações”, e “ao cabo de 15 dias uma pequena Bolsa em miniatura, redução exata da Bolsa de Paris, erguia-se diante do palco dos Incomparáveis”.

 

O espetáculo começa por uma “suprema sessão de especulação”, durante a qual os pregões são ditos em versos alexandrinos: “Os valores eram designados pelos próprios nomes dos Incomparáveis, cada um representado por cem ações que subiam ou caíam segundo os prognósticos pessoais dos jogadores acerca do resultado do concurso. Todas as transações eram pagas à vista, em cheque bancário ou dinheiro vivo”. Os jogos televisivos atuais, baseados em competições ferozes entre os participantes e submetidos à votação do público, por telefone ou e-mail, realizam essa ideia em escala nacional ou global.

 

Mas o que me parece mais relevante é que a “Gala dos Incomparáveis” pode ser vista, hoje, como uma visão prenunciadora de nossa “sociedade do espetáculo” (Guy Debord). O multiculturalismo globalizado, implicando a espetacularização da diferença, não desemboca numa verdadeira interculturalidade. Intercâmbios coercitivos, assimilacionistas ou aleatórios não podem ser qualificados de interculturais.

 

Na verdade, as culturas são “incomparáveis”, isto é, elas não podem ser julgadas segundo os mesmos critérios éticos e estéticos. Daí os enormes problemas enfrentados atualmente pelo direito internacional e pelas instituições culturais globalizadas. É tão difícil sustentar uma legislação internacional no que se refere aos direitos humanos quanto constituir uma tábua de valores universal para avaliar as manifestações artísticas. Como diz o teórico indiano Rustom Bharucha: “Não há uma base universal pura para as práticas interculturais. O universal mínimo para iniciar qualquer intercâmbio intercultural é extremamente frágil, baseado mais em intuição e boa-fé do que no reconhecimento real do Outro” (“Theatre and the World – Performance and the Politics of Culture”, ed. Routledge).

 

Ao mesmo tempo em que se buscam formas mistas como as do Teatro Intercultural, os praticantes de culturas tradicionais em suas formas “puras”, no Terceiro Mundo, começam a reclamar não das transformações a que elas são submetidas pelos artistas do Primeiro Mundo, mas do não-pagamento de seus “direitos intelectuais” sobre as mesmas. Evidencia-se, assim, a diferença entre interculturalismo e globalização.

 

O catastrófico diálogo de surdos que nos leva hoje à mal denominada “guerra de civilizações” mostra a fragilidade dos contatos interculturais. O contato com o Outro é movido tanto por Eros como por Tânatos. No romance de Roussel, o mirabolante espetáculo não se compõe apenas de amenidades. É de fato um teatro cruel, regido pelo poder e pelo lucro, implicando castigos, torturas e risco iminente de morte dos participantes. Juntar incomparáveis é empresa arriscada. Desde o fatídico 11 de setembro 2001, o espetáculo do multiculturalismo globalizado desandou, ruiu e mostrou seus sombrios bastidores. O Outro deixou de ser um simples tema de colóquios a cargo de universitários politicamente corretos.

 

Assim, uma releitura atual de “Impressions d’Afrique” nos leva a considerações não previstas pelo autor e por seus leitores do século 20. Para falar apenas dela, a África de hoje é um “espetáculo” terrível, que os espectadores brancos só veem, de vez em quando, na televisão, sem ficarem muito impressionados.

 

O espetáculo imaginado por Roussel, com intenções puramente lúdicas, é suscetível de provocar agora reflexões seriíssimas, que não concernem mais ao colonialismo do seu tempo, mas à colonização global atual e, no contexto desta, ao multiculturalismo e ao interculturalismo. “Impressions d’Afrique” pode ser visto como uma versão bufa do “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad. É como farsa e mascarada que esse romance-espetáculo, caricatural e grotesco, pode ser relido agora e considerado não como um divertimento, mas como uma advertência. Pelas mais diversas vias, a literatura sempre alcança a realidade.

 

Raymond Roussel faleceu num hotel italiano, onde estava hospedado com seu motorista e uma governanta, depois de ingerir uma dose excessiva de barbitúricos.

(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais – FOLHA DE S.PAULO / +MAIS! / por Leyla Perrone-Moisés – São Paulo, 25 de novembro de 2001)

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, “Inútil Poesia” (Companhia das Letras).

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