Luchino Visconti, diretor de clássicos, artista e pensador solitário e amargurado

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GRANDE NOME DO CINEMA

Luchino Visconti (Milão, Lombardy, 2 de novembro de 1906 – Roma, 17 de março de 1976), diretor se consagrou ao mostrar o povo italiano
Um dos mais prestigiados nomes do cinema, diretor descendia de família nobre, mas se consagrou mostrando a real face do povo italiano nas telas.
(Fonte: www.estadao.com.br – CINEMA/ Por Luis Carlos Merten/ Crítico de Cinema do Jornal O Estado de S. Paulo – 17 de março de 2011)

Luchino Visconti: solitário, amargurado, intrinsicamente aristocrata

Luchino dei Duchi di Grazzano Visconti, diretor de clássicos, artista e pensador solitário e amargurado, de elegância de berço, já que, embora nunca os tenha usado, o marxista tinha direito aos títulos de Conde de Lonate Pozzolo, Signore de Corgenno e Consignore de Soma, Grenna e Agnaldello. Nascido em Milão a 2 de novembro de 1906, filho de mãe burguesa e pai aristocrata (“Mas não um frívolo, e muito menos um cretino”), recebeu esmerada educação. Aprendeu humanidades e violoncelo, dedicou-se na juventude à criação de cavalos puros-sangues. E na mesma época, fascinado pelo mundo do espetáculo, fez estudos de teatro.

Em 1936, deu o primeiro passo no sentido da profissionalização: em Paris, tornou-se assistente de direção e figurinista de Jean Renoir em três filmes. Visitou a seguir os Estados Unidos, para conhecer os esquemas de produção de Hollywood (de cujo eficiente planejamento jamais se desligou). Durante a Guerra, enfim, regressou à Itália, participando concretamente do movimento de resistência. Em 1944, por terem encontrado armamento clandestino em uma de suas villas, os fascistas o condenaram à morte. Escapou da prisão enquanto aguardava o cumprimento da sentença e, com o fim próximo da Guerra, retomou suas atividades no cinema. Àquela altura, estreara com “Obsessão”, em 1942. E seu primeiro trabalho, após a paz, seria um documentário de montagem, “Dias de Glória”, em que se revelava um “justiceiro impiedoso e um cronista inflexível” na descrição dos crimes e da punição dos fascistas.

Diutrinário – Ao longo da vasta filmografia de Visconti (quinze longas-metragens* e alguns episódios avulsos), caracterizou-se, desde então, seu enfoque invariavelmente humanista. “Fui levado ao cinema pela necessidade de contar histórias de homens vivos, de homens vivos nas coisas, e não de coisas por si mesmas”, declararia mais tarde. “O cinema que me interessa é um cinema antropomórfico. Os mais humildes gestos do homem, sua caminhada, suas sensações e seus instintos são suficientes para trazer poesia e vibração aos objetos que o cercam.”

No cumprimento desse ideal, Visconti serviu-se, no início, de um estilo mais diretamente doutrinário e despojado. “Obsessão” representou um dos pilares básicos do movimento neo-realista italiano, de cunho marcadamente social, voltado para a análise das relações dos indivíduos com o grupo a que pertencem. Paradoxalmente, caberia ao aristocrata Vosconti tratar com a mais profunda simpatia e honestidade os problemas do povo. “A Terra Treme” (1948) constituiu um exemplo do mais ortodoxo e radical neo-realismo. Foi filmado diretamente na aldeia siciliana de Aci Trezza, sem atores profissionais, e focalizava a revolta dos pescadores do local contra os comerciantes de peixe, também proprietários dos barcos e das redes. Igualmente simples continuava sendo a gente que povoou sua provável obra-prima, “Rocco e Seus Irmãos” (1960), um insuperável poema lírico e trágico sobre a desagregação de uma família do sul da Itália, colhida nas engrenagens da grande cidade industrial de Milão.

Não seria de se esperar, contudo, do intrinsecamente aristocrático Luchino Visconti, que, por pose ou oportunismo, se limitasse a um enfoque demagogo de temas populistas. Assim como no imediato após-guerra despira de quaisquer enfeites sua linguagem, no correr dos anos 60 começou a elaborá-la e requintá-la. Diretor teatral de reconhecido sucesso, régisseur de óperas, apaixonado por efeitos dramáticos e cercado por um ambiente abarrocado e luxuoso, incorporou a seu estilo os maneirismos de uma sintaze cintilante. Consolidou-a em “O Leopardo” (1963) – vigorosa transposição do romance de Giuseppe Tomaso di Lampedusa sobre a derrocada de uma nobre família siciliana do século XIX – e em “O Estrangeiro” (1968). De derrocada falaria ainda em “Os Deuses Malditos” (1969), sobre a alta burguesia da Alemanha nazista, em “Morte em Veneza” (1970), sobre a dolorosa e mortífera paixão de um músico maduro por um adolescente quase andrógino, e em “Ludwig” (1972), um wagneriano réquiem cinematográfico para o hiper-sensível rei Luís II da Baviera.

Na verdade, a decadência e a solidão se transformaram, no fim, no assunto predileto desse artista e pensador solitário e amargurado, capaz de afirmar: “Nunca somos compreendidos. Gostaria de transmitir meu conhecimento a pessoas mais jovens. Mas todas as minhas tentativas acabaram em desastre. Os amores sempre terminam mal. É por isso que não revejo os meus filmes”.

Implacavelmente colhido por um derrame cerebral, em julho de 1972, e mais recentemente vitimado por uma fratura no fêmur, ele vinha atravessando, desde então, os momentos mais dolorosos de sua existência. “A doença me feriu, me humilhou”, rugia imponente Luchino Visconti, confinado a uma cadeira de rodas, obrigado a tolerar que o transportassem, o erguessem, o pusessem diante do visor de uma câmara. Não podia mostrar a seus atores como se deveriam comportar em cada cena – limitação ainda mais penosa para quem se notabilizara por sua impecável exatidão. Era forçado a instruí-los por meio de palavras.

Mas ainda assim, e em virtude de uma brava decisão – “prefiro matar-me a ter que viver sem trabalhar” -, Visconti, aos 69 anos, conseguiu se entregar a mais duas obras.

A primeira, “Questo Gruppo di Famiglia in un Interno” (1974), chegou a ser lançada. Como vinha acontecendo ultimamente com outros filmes do autor, dividiu opiniões. Já o segundo filme não conheceu o julgamento da crítica ou do público. “O Intruso” foi interrompido ainda nos palcos de filmagem, no dia 17 de março, pela chegada da morte. No set agora abandonado, restaram uma mesa Boulle autêntica, um paravento chinês da época Ming, um fulgurante lustre florentino e um quadro medieval representando o martírio de São Sebastião –quase como símbolos da legendária e inigualável elegância do diretor.

* Os principais: “Obsessão” (19420; “A Terra Treme” (1948); “Sedução da Carne” (1954); “Um Rosto na Noite” (1957); “Rocco e Seus Irmãos” (1960); “O Leopardo” (1963); “Vagas Estrelas da Ursa Maior” (1965); “O Estrangeiro” (1968); “Os Deuses Malditos” (1969); “Morte em Veneza” (1970); “Ludwig” (1972); “Questo Gruppo di Famiglia in un Interno” (1974).

(Fonte: Veja, 24 de março de 1976 – Edição n° 394 – CINEMA – Pág; 100/101)

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