Céline: uma paixão feita só de grandes momentos
Louis-Ferdinand Céline (Coubervoie, 27 de maio de 1894 – Meudon (Hauts-de-Seine), 1º de julho de 1961), era um dos maiores escritores franceses, um dos artistas consumados da literatura mundial, um inventor radical.
Formado em Medicina, Céline era um homem afável e discreto que tratava com carinho de seus pacientes na periferia de Paris: prostitutas, rufiões e proxenetas. Era, também, um homem vingativo e detestável, incapaz de manter amizades duradouras.
Céline era conhecido através do romance, Morte a Crédito, e mais tarde o escritor publicou em vida, Norte. Norte é um romance menor de Céline, uma espécie de canto agônico do escritor, que relata suas peripécias pela Alemanha quando o nazismo estava desmoronando. Como a obra-prima de Céline, o romance de estreia Viagem ao Fundo da Noite.
Na trajetória de Céline, é praticamente impossível separar os escritos sublimes dos preconceitos boçais, a luminosidade de sua arte do negror pantanoso de sua moral. Ele é, simultaneamente, o autor de um dos poucos marcos definitivos da literatura do século 20 – o romance Viagem ao Fundo da Noite, publicado em 1932 – o escritor de panfletos anti-semitas explosivos, às vésperas do holocausto perpetrado pelos nazistas durante a II Guerra Mundial.
Dias depois do desembarque dos Exércitos Aliados na Normandia, em 1944, Céline, sua mulher, Lucette, e o gato Bebert fogem de Paris, com destino à Alemanha. Devido às suas simpatias com o nazismo, e ao seu anti-semitismo virulento, o escritor vinha sendo ameaçado de morte pela Resistência francesa e achou mais prudente escapar do país antes do fim da guerra.
Seu objetivo era chegar à Dinamarca, para onde tinha enviado boa parte de suas economias. Em Norte, ele lembra sua passagem por uma Alemanha arruinada, à beira da capitulação: atentado contra Hitler, ricos que tentam escapar, orgias. Nesse ambiente de apocalipse, o escritor faz transbordar o seu niilismo, atacando os aliados, os alemães, os grã-finos, os pobres. Todos os personagens, na pena de Céline, são figuras grotescas, dissecadas sem qualquer complacência.
Essa fúria é um dos atributos por excelência de Céline. Em Norte, no entanto, ela é tão exacerbada que o livro se torna quase ilegível. O resultado é uma notável confusão, um misto de rancor desesperado com amargura e beleza.
HORROR AO SOFRIMENTO – Na França, apesar de ainda não ter sido reeditada na íntegra (a viúva do escritor não permitiu a republicação dos quatro panfletos anti-semitas), a obra de Céline é cada vez mais enaltecida.
Com essas reavaliações, tem-se como estabelecido que Céline é um dos autores maiores da França do século 20 – à altura de Marcel Proust, Albert Camus ou André Malraux. A dificuldade persiste, no entanto, quando se trata da personalidade do escritor.
Céline lutou na I Guerra Mundial, foi ferido e ficou parcialmente inválido. Como médico, viajou a serviço pela África e pelos Estados Unidos. Em Viagem ao Fundo da Noite, ele expressa o seu horror à guerra, ao sofrimento e às dores que ela provoca. Todos os seus livros, aliás, voltam ao tema do sofrimento humano, para proclamar o que há de inútil e sem sentido na dor.
O romance foi saudado com entusiasmo pela crítica, colhendo aplausos, entre outros, do revolucionário russo Leon Trotsky, que o considerou um dos primeiros escritores a trazer os operários para a grande literatura. Num estilo sincopado, repleto de reticências e pontos de interrogação, Céline levou também para a literatura a gíria dos subúrbios parisienses, os palavrões e uma infindável galeria de tipos deploráveis mais inesquecíveis em sua humanidade.
OBRA ATORMENTADA – Com a ascensão do fascismo na Alemanha e na Itália, e com a França vivendo a experiência de um governo de esquerda – o da Frente Popular -, Louis-Ferdinand Céline previu a guerra e decidiu-se a combatê-la. Escolheu como alvo os judeus, mas não apenas eles. Seu anti-semitismo foi seguido de ataques selvagens contra o capitalismo, os negros e os homossexuais.
Ele sempre se proclamou um anarquista e um pacifista, e jamais se preocupou em esconder o que pensava. Com o fim da guerra, sua casa na França foi saqueada, enquanto o escritor se escondia na Dinamarca. Ali, foi preso por viver ilegalmente.
Céline só voltou à França em 1951, depois da anistia. Voltou para viver isolado, atender seus pacientes e escrever livros que jamais ultrapassaram a qualidade de Viagem ao Fundo da Noite. Nesse último período, o escritor nunca abjurou de suas opiniões. Encarcerado em sua própria amargura, morreu quase sem amigos. A morte e a passagem do tempo, porém, abriram a trilha para o reconhecimento de sua obra atormentada e genial.
(Fonte: Veja, 15 de janeiro de 1986 – Edição 906 – LITERATURA/ Por Mário Sérgio Conti – Pág: 92/93)