Ignaz Philipp Semmelweis, pioneiro do controle de infecção.

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DEMISSÃO INJUSTA

Ignaz Philipp Semmelweis (Ofen, 1° de julho de 1818 – 13 de agosto de 1865), médico húngaro pioneiro do controle de infecção. Em 1860, em uma das alas da maternidade do Hospital Geral de Viena, na Áustria, 30% das grávidas morriam com febre. Em outra ala, porém, a taxa de mortalidade era dez vezes menor. O médico húngaro que trabalhava ali, matou a charada quando examinou o corpo de um colega, que havia morrido depois de ter se cortado em uma autópsia. Semmelweis lembrou que a ala problemática era atendida por estudantes, que iam para lá depois de dissecarem cadáveres. Concluiu que eles traziam consigo algum agente de doença. Então, obrigou que lavassem as mãos antes de visitarem as grávidas. Os casos de febre diminuíram e Semmelweis, entusiasmado, passou a exigir a desinfecção dos instrumentos, algo que nenhum hospital praticava. Foi demitido. Voltou para a Hungria, onde morreu de infecção após cortar o dedo, aos 47 anos, em 1865, ano em que o cientista francês Louis Pasteur provou a importância da assepsia para evitar contaminações.
(Fonte: Super Interessante – ANO 10 – Nº 5 – Maio de 1996 – Dito & Feito – Pág; 90)

Semmelweis: uma história para reflexão

Recentemente estivemos organizando uma pesquisa na Internet sobre os pioneiros do controle de infecção, com o objetivo de selecionar links para uma página especial do “navegando com você” sobre a história do controle de infecção, atendendo à constantes solicitações dos internautas que pesquisam o tema. Encontramos várias páginas excelentes sobre Florence Nigthingale, Pasteur, Lister, Robert Kock, Oliver Wendell Holmes, inclusive seus textos originais, mas sobre Semmelweis, quase nada…

Deixando a modéstia de lado (afinal, o Prêmio Jabuti até nos permite isso), os capítulos iniciais do nosso livro, que abordam a história do controle de infecção, têm sido constantemente elogiados e o trecho que fala sobre Semmelweis merece uma divulgação ainda maior, dada a riqueza de informações e a análise crítica da sua obra e das reações ao seu trabalho. Assim, presenteamos a vocês a cópia integral das páginas 97 a 102 do nosso livro, contando essa história, cada vez mais atual e ponto básico para uma reflexão profunda sobre o ensino acadêmico, resistência às mudanças, coorporativismo dos profissionais de saúde e as lições da vida e da trágica morte de Semmelweis .

Gostaríamos muito de dizer que isto faz definitivamente parte do passado, mas o desafio continua e cada um de nós representa este mártir cada vez que lutamos por princípios éticos e científicos em prol dos pacientes de nossas instituições de saúde.

Quando Ignaz Philipp Semmelweis (1818-1865) nasceu em Ofen, seu país, a Hungria fazia parte do Império Austríaco, posteriormente ele foi para Viena, sua capital, para completar os estudos em advocacia, como era desejo familiar. Entretanto, resolveu estudar medicina ao tomar contato com os trabalhos de anatomia patológica realizados por Karl von Rokitansky (1808-1878), procurando identificar a causa de morte de seus pacientes, no estudo do corpo enfermo e dos órgãos doentes. Após sua graduação em medicina ocorrida em 1844, sem conseguir vaga na clínica do professor Joseph Skoda (1805-1881), que vinha se notabilizando pelas suas pesquisas em propedêutica, acabou em 1846, como assistente na Primeira Clínica Obstétrica do Allgemeine Krankenhaus, no lugar de um colega que havia se afastado temporariamente. A perversa fama desta unidade era que a mortalidade das pacientes superava entre três a dez vezes a da segunda divisão, onde as parturientes eram atendidas por parteiras. A diferença de percentagem parecia ser inexplicável, pois caso contrário, os miasmas deveriam ser muito caprichosos, pois as clínicas eram contíguas(1).

Conforme afirmou Semmelweis na introdução de seu livro: “o dever mais alto da medicina é salvar vidas humanas ameaçadas e a obstetrícia é o ramo da medicina no qual este dever se cumpre de modo mais evidente…. Num parto com apresentação pélvica, provavelmente a mãe e o filho faleceriam se deixados à natureza, entretanto a ajuda oportuna do obstetra pode salvar ambos, quase sem dor, em poucos minutos…. Lamentavelmente, o número de casos nos quais o obstetra alcança tais benefícios é insignificante se comparado ao número de vítimas da febre puerperal…. Não somente a terapia era ineficaz como também a etiologia parecia incompleta e aparentemente não continha o verdadeiro fator causal da enfermidade”(2). Em seu trabalho ele realizou, antes mesmo que Snow com o cólera em Londres, um estudo epidemiológico modelo na tentativa de se elucidar os elos da cadeia epidemiológica e propor medidas efetivas de controle, contendo todas as etapas clássicas destas investigações: a definição precisa de caso; a contagem, distribuição e a consolidação de casos e de fatores predisponentes; a confirmação do surto e a definição do seu período; a formulação de hipóteses e sua comprovação; as medidas de controle e a verificação de sua eficácia, com reorientações quando necessário.

Por sua origem húngara e idéias questionadoras procurando entender e controlar “fenômenos inevitáveis”, Semmelweis enfrentou, desde sua contratação, a desconfiança do diretor de sua disciplina, Johann Klein, que era um nacionalista fervoroso e de postura essencialmente conservadora. Por mais que se esforçasse Semmelweis não encontrava na ciência oficial respostas para as diferenças observadas entre as duas unidades. Sob a orientação do professor Kolletschka da Medicina Legal, em conjunto com seus alunos, autopsiava detalhadamente todas as pacientes, encontrando supurações e inflamações generalizadas, um quadro semelhante ao das febres purulentas e das infecções traumáticas, que se seguiam amiúde às manipulações hospitalares. Estimulava também um detalhado exame clínico de todas as pacientes, mas além de nada descobrir, apenas observava um aumento da mortalidade, chegando sua unidade a ter em 1846 uma mortalidade de 11,4% contra 2,7% na outra clínica. Ele notou que as parturientes adoeciam dentro das primeiras 36 horas do parto e sua doença rapidamente evoluía para o óbito(2,3).

Na definição de caso ele priorizou os aspectos anátomo-patológicos das parturientes e observou que os achados dos recém-nascidos, independente de seu sexo, eram idênticos aos das pacientes, com exceção das lesões genitais, logo deveriam ser conseqüência da mesma enfermidade. Com isto, reformulou o conceito de febre puerperal vigente, que deveria estar equivocado, pois afirmava que ela era uma enfermidade característica e limitada aos pacientes da maternidade, em cuja origem era necessário o estado puerperal e um momento causal específico. Assim, ele estudou tanto as mortes maternas como as dos recém-nascidos, considerando suas observações na necrópsia a base para a definição de caso. Posteriormente, devido a semelhança dos achados, também foi incluído o caso de um colega ferido acidentalmente durante uma necrópsia. Este episódio foi fundamental na elucidação do problema(2).

Embora tenha enfrentado grandes dificuldades para obter as informações, devido a um sistemático trabalho de sabotagem, ele procurou realizar um amplo estudo temporal sobre a mortalidade das puérperas desde a fundação da maternidade em 1784. Até 1822, antes da introdução dos estudos anátomo-patológicos, a mortalidade média foi 1,2% e de 1823 até 1846 este valor aumentou para 5,3% (ver Tabela 1). A partir de 1840, por decreto imperial a maternidade foi dividida em duas unidades, a primeira para o ensino de médicos e a segunda para o de parteiras. Muitas pacientes graves da primeira unidade foram transferidas para as enfermarias gerais e seus óbitos não foram computados nesta estatística, mas mesmo assim a mortalidade da primeira unidade sempre superou a da segunda a partir desta data, o que não ocorreu pelo menos em 1839 (ver Tabela 2). Infelizmente, os dados individualizados por unidades, anteriores a este período, lhe foram negados. Ele observou na primeira clínica, serem as complicações mais freqüentes em pacientes com trabalho de parto prolongado e naquelas cujos filhos também infectavam. Por sua vez, as pacientes com parto prematuro ou domiciliar apresentavam uma menor mortalidade. Outra observação interessante é que na primeira clínica os casos apareciam em grupos de pacientes, muitas vezes em leitos contíguos, ao passo que na segunda unidade, sua distribuição era aleatória. Além disso, também os recém-nascidos morriam com mais freqüência na primeira unidade(2) (ver Tabela 3).

Tabela 1: Mortalidade da maternidade de Viena de 1784 até 1846.

Tabela 2: Comparação da mortalidade na primeira e segunda clínicas obstétricas na maternidade de Viena entre 1839 e 1846.

Tabela 3: Comparação da mortalidade dos recém-nascidos entre as duas clínicas obstétricas da maternidade de Viena entre 1841 e 1846.

Semmelweis passou a comparar minuciosamente as duas unidades. As pacientes eram distribuídas entre as clínicas de acordo com a data de admissão, assim logo afastou as “influências cósmico-telúricas” da teoria miasmática, pois não havia como sustentar que estes fatores caprichosamente só agissem nos dias que as parturientes eram internadas na primeira unidade. As pacientes proviam das mesmas camadas sociais, as condições ambientais eram as mesmas ou até piores na segunda clínica onde havia maior aglomeração, pois elas se escondiam caso seu trabalho de parto iniciasse num dia de internação na primeira clínica. Procurando uniformizar as condutas divergentes, Semmelweis determinou que as pacientes de parto se deitassem de lado e que os toques fossem feitos com mais delicadeza e até proibiu que um padre tocasse a sineta a cada extrema-unção realizada, pois reduziria o medo, relacionado em todos compêndios como um fator importante para a febre puerperal. Mesmo contra sua vontade, janelas foram fechadas para impedir a entrada de miasmas, mas nada adiantava (2, 4).

Para a formulação de hipóteses sobre a cadeia epidemiológica, Semmelweis fez um levantamento bibliográfico sobre o tema e avaliou criticamente as teorias e propostas anteriores, buscando um maior entendimento do problema. Com vimos anteriormente, na sua época a teoria preponderante para explicar as doenças epidêmicas relacionavam-nas às condições atmosférico-telúricas, portanto aos fatores externos. Por sua vez, as doenças endêmicas eram atribuídas a fatores cuja atuação se limitava a uma localização específica. Ele mesmo concluiu que estes conceitos eram algo confusos e, contrariando o bom senso, independiam do número de casos observados. Ao se considerar uma doença epidêmica, as possibilidades de controle ficavam bastante limitadas, pois como alterar as condições atmosféricas de Viena? Portanto, esta teoria havia limitado o descobrimento da verdadeira causa e o controle da febre puerperal. Ele acreditava que o maior número de casos na primeira clínica se devia a uma causa endêmica ainda desconhecida, presente apenas nesta unidade e que uma vez identificada, poderia ser controlada. Ele logo descartou outras hipóteses correntes sobre a gênese da febre puerperal, pois não poderiam justificar a diferença observada entre as unidades, uma vez que deveriam ser igualmente nocivas em ambas as clínicas. Algumas destas teorias eram: alterações hematológicas da grávida; pletora de sangue ou líquidos; coagulação espontânea; diminuição de peso devido a eliminação do feto; ferimentos no trato genital ocasionados pelo parto e até a involução uterina imperfeita(2).

Várias comissões foram criadas para tentar resolver o problema, mas partindo de premissas científicas equivocadas o seu insucesso seria facilmente previsível, como comentava Semmelweis. Foi aventado que o medo da morte ao observar casos ao lado, ou então a agressão ao pudor feminino decorrente da paciente ser examinada por um homem desencadearia este quadro predominantemente na primeira unidade, mas como explicar a maior incidência também nos recém-nascidos, que seguramente não teriam esta percepção ou pudor? No final de 1846, enquanto ele investigava o problema, um novo grupo foi formado sem a sua inclusão. Esta equipe concluiu que a causa da morte era uma lesão decorrente do toque vaginal realizado pelos estudantes, em particular estrangeiros e como medida de controle foi proposta a redução do número de estagiários, aceitando somente os austríacos. A mortalidade apresentou uma queda acentuada nos meses seguintes e problema parecia estar resolvido. Neste mesmo período Semmelweis estava afastado de suas atribuições didáticas e praticamente não examinava as parturientes. Mas como um desafio a acompanhar sua trajetória, quando Semmelweis reassumiu sua atividades, a mortalidade voltou a subir assustadoramente de maneira inesperada, provando que também essa hipótese era infundada (2). As taxas de mortalidade das pacientes da Primeira Clínica Obstétrica da maternidade de Viena estão expostas na Tabela 4.

Tabela 4: Taxa de mortalidade na Primeira Clínica Obstétrica da materidade de Viena entre janeiro de 1846 e maio de 1847.

Atendendo a uma recomendação de Kolletschka, a 2 de março Semmelweis partiu para um descanso em Veneza, mas ao voltar foi surpreendido pela notícia da morte deste seu amigo, que durante uma autópsia, foi ferido no braço pelo bisturi de um estudante. A descrição das lesões encontradas no laudo do exame do colega era semelhante à das parturientes, então Semmelweis concluiu: “se os dados das autópsias eram idênticos, não seriam as causas também comuns? Kolletschka morrera duma lesão na qual o bisturi introduzira partículas de decomposição de matéria cadavérica. Os médicos e seus discípulos não poderiam com suas mãos trazer as mesmas partículas ao regaço das pacientes, rasgado pelo parto?” (5)

Estariam explicadas as diferenças de cota de mortalidade. Na segunda unidade só trabalhavam as parteiras, que antes de examinar as pacientes não dissecavam os cadáveres. Além do mais, as gestantes de parto prolongado sujeitavam-se a mais exames, logo o colo do útero delas era mais sensível à virulência da putrefação, enquanto as pacientes de partos prematuros ou domiciliares, quase não sofriam o toque vaginal, portanto ficavam protegidas do contágio com as partículas cadavéricas. A distribuição seqüencial de casos podia ser explicada pela própria ordem de realização dos exames nas pacientes, levando o veneno a todos os casos avaliados. A maior mortalidade dos recém-nascidos poderia ser explicada por sua contaminação ainda intra-útero pelo sangue materno contendo partículas cadavéricas inoculadas durante os exames ginecológicos. A análise histórica da taxa mortalidade também confirmava esta hipótese, pois se observou concomitância de sua elevação com o início das autópsias e mesmo o aumento ocorrido em 1847 poderia ser explicado pelo próprio empenho de Semmelweis ao realizar autópsia e examinar pacientes, a partir de sua volta das férias. A redução da mortalidade conseguida durante o período de afastamento dos estudantes estrangeiros foi justificada pelo fato deles normalmente freqüentarem vários serviços durante seu estágio e conseqüentemente assistirem mais autópsias, ou pela própria coincidência com o afastamento de Semmelweis. Compreendendo sua involuntária contribuição com o aumento da mortalidade, ele afirmou angustiado: “Só Deus sabe a conta das que, por minha causa, desceram prematuramente à sepultura!” (2).

Provando mais uma vez que Semmelweis estava definitivamente adiante de seu tempo em um trabalho pioneiro, sua investigação pretendia chegar a dados individualizados, para comprovar sua hipótese. Acreditando que: “a variação da mortalidade pode correlacionar-se com as atividades das pessoas”, com o apoio dos professores da facção minoritária renovadora da universidade, como Skoda, Hebra e Rokitansky, ele tentou elaborar um quadro que permitisse verificar a mortalidade de pacientes por obstetra ou estudante, correlacionando com sua participação prévia em autópsias. Porém, como escreveu Semmelweis: “autoridades superiores impediram que se levasse a cabo esta missão, porque naquele momento interpretaram-na como uma base para denúncias pessoais”(2).

Uma vez formulada uma hipótese, partiu Semmelweis para a elaboração de medidas de controle e a monitorização posterior da sua eficácia. Suas propostas centraram-se em três frentes: isolamento dos casos; lavagem das mãos ; ferver instrumental e utensílios(6). Assim sendo, mesmo sem consultar o professor Klein, ele afixou na porta da unidade o seguinte cartaz: “A partir de hoje, 15 de maio de 1847, todo estudante ou médico, é obrigado, antes de entrar nas salas da clínica obstétrica, a lavar as mãos, com uma solução de ácido clórico, na bacia colocada na entrada. Esta disposição vigorará para todos, sem exceção”. Assim sabão, escovas e ácido clórico tiveram entrada em sua unidade. A mortalidade, que chegou aos 18,27%% em abril, caiu a partir de junho para uma média 3,04%. Em setembro daquele ano um novo aumento foi notado, que desta vez ele relacionou a uma paciente internada com carcinoma de colo de útero, associado a intensa descarga purulenta. Ele observou que sua equipe, mesmo após lavar as mãos ao entrar na unidade, examinava esta paciente e as demais sem repetir este procedimento, logo “nem só os mortos transmitiam aos vivos as partículas infectantes. Também as podiam propagar os vivos enfermos, portadores de processos pútridos ou purulentos, comunicando-os aos indivíduos sãos”. Em novembro de 1847 uma paciente com quadro supurativo em membro inferior desencadeou um novo aumento da mortalidade, que Semmelweis atribuiu à saturação aérea pelos humores oriundos das secreções. Com isto, para o atendimento de parturientes portadoras de processos secretantes ele determinou a mais rigorosa desinfecção das mãos após cada exame e removeu-as para salas de isolamento (7). (ver Tabela 5) No ano de 1848 a mortalidade na Segunda clínica (1,33%) foi maior que a da primeira (1,27%) (2, 8).

Tabela 5: Taxa de mortalidade na Primeira Clínica Obstétrica da maternidade de Viena entre junho de 1847 e dezembro de 1848.

A partir da comprovação desses dados Semmelweis concluiu: “Eu assumi que a causa da maior taxa de mortalidade da primeira clínica eram as partículas cadavéricas aderidas às mãos dos obstetras quando efetuavam os exames. Eliminei esta causa mediante lavagem com cloro e conseqüentemente a mortalidade na primeira clínica baixou para índices inferiores aos da segunda clínica…. A febre puerperal não é causada somente por partículas cadavéricas, mas também por secreções de organismos vivos, assim é necessário limpar as mãos com água clorada, não somente após manipular cadáveres, mas também depois de exames nos quais as mãos podem contaminar-se com secreções…. As partículas de secreções que saturam o ar podem também penetrar no útero já lacerado durante o trabalho de parto, portanto as pacientes com estas lesões devem ser isoladas”(2).

Entusiasmado com os resultados obtidos, Semmelweis comunicou-os a Skoda e Ferdinand von Hebra (1816-1880), este último fundador da escola dermatológica de Viena, que logo divulgou o trabalho na revista da Associação Médica de Viena, cujo médico primaz afirmou: “a significação desta descoberta, mormente para os estabelecimentos hospitalares e, em particular, para as salas cirúrgicas, é tão incomensurável, que a torna digna da máxima atenção de todos os homens de ciência”. Estes colegas estimulavam-no a publicar seus achados, mas ele não atendeu de pronto estas solicitações, no máximo fez várias exposições verbais de seus achados perante a sociedade médica local (9). Embora tenha se saído relativamente bem em suas preleções, os resultados alcançados no meio médico foram decepcionantes e até mesmo trágicos. Gustav Adolph Michaelis, professor de obstetrícia em Kiel na Alemanha, que até havia solicitado os trabalhos de Holmes para tentar entender e controlar um surto semelhante, acabou se atirando sob um trem em movimento ao sentir-se culpado pelas mortes de suas pacientes, lendo as conclusões divulgadas por Hebra (10).

Entretanto, pode-se afirmar que a grande maioria dos médicos foi cúmplice da má sorte que o acompanhou, por um apego irracional às teses tradicionais, inibindo-a de se curvar às verdades mais simples, como aquelas defendidas por Semmelweis. Suas medidas de controle, cada vez mais severas provocaram uma onda de resistência de seus alunos e das enfermeiras. A despeito de seus resultados favoráveis, sua adesão à causa nacionalista húngara contra o domínio imperial austríaco na rebelião de 1848 valeram a não renovação de seu contrato, com sua demissão em 20 de março de 1849, o enfraquecimento político da ala progressista que o apoiava na universidade, o banimento de sua teoria sobre a febre puerperal e até foi-lhe negado acesso às fichas dos pacientes para poder completar sua investigação estatística. Mesmo quando por insistência de Skoda foi recontratado como professor, mas lhe era vedado ensinar em pacientes, tendo que utilizar uma boneca em suas aulas. O novo assistente que assumiu em seu lugar, Carl Braun (1822-1891), revogou todas as medidas impostas por Semmelweis e nem mesmo a maior mortalidade favoreceu a um retorno às idéias deste precursor. Amargurado, derrotado em seus princípios, ele abandonou Viena em 1850, sem se despedir dos amigos, voltando para sua terra natal(9).

Após a derrota da Revolução Húngara em 1848, o ambiente em Budapest era de desânimo e opressão. Os professores mais ilustres haviam sido afastados de seus cargos e até a publicação da revista médica da Hungria fora suspensa. Semmelweis já estava esquecido em Viena, principalmente por Skoda e Rokitansky, mas um surto de febre puerperal no Hospital São Roque de Budapest reacendeu sua antiga paixão e surpreendentemente foi indicado como diretor honorário da instituição, em 20 de maio de 1851, onde mesmo sem receber salários, retomou sua luta, reduzindo a mortalidade para menos de um por cento. Durante um novo surto encontrou nos leitos preparados para novas admissões, resíduos de secreções purulentas na roupa de cama. Levando com indignação a roupa suja ao gabinete do diretor convenceu a administração do hospital a respeito da higienização da rouparia. Em 1855 foi nomeado professor de obstetrícia em Budapest, numa universidade sem prestígio no mundo científico de então. Ali convenceu o catedrático de cirurgia a proteger a incisão cirúrgica do contato com mãos e instrumental que não tivessem sofrido uma limpeza rigorosa. Os bons resultados novamente alcançados o estimularam a finalmente publicar em novembro de 1861, quatorze anos após suas principais conclusões, os seus trabalhos sob o título de “Etiologia, Conceito e Profilaxia da Febre Puerperal” (11).

Em seu tardio livro composto de 543 páginas apresentava numa primeira parte os dados obtidos e suas conclusões a respeito da febre puerperal, e numa segunda parte continha toda a correspondência que ele encaminhou aos médicos, com seus esforços para refutar as opiniões contrárias. Fruto de sua luta, chega até a adquirir um certo caráter messiânico ao afirmar na introdução de sua segunda parte: “Minha doutrina não foi estabelecida para que o livro que a expõe se encha de pó em uma biblioteca; minha doutrina tem uma missão, que é trazer benefício à vida social prática. Minha doutrina foi produzida para ser disseminada entre os professores de obstetrícia até que todos os que praticam medicina, até o último médico e a última parteira do povo atuem de acordo com seus princípios; minha doutrina foi produzida para eliminar o terror das clínicas de maternidade, para conservar a esposa ao marido e a mãe ao filho” (12).

Novamente os deuses da medicina reagiram negativamente aos seus achados. Virchow, o fundador da patologia celular, condenou esse trabalho por não compatibilizar com sua teoria de que todas as patologias se originavam nas células do corpo humano, enfatizando as alterações histológicas e não a presença de eventuais “partículas” estranhas. Semmelweis, ao invés de completar seus estudos tentando identificar qual era a “partícula cadavérica” transmitida, polemizou com todos seus principais opositores. Afirmava em suas respostas: “A sua doutrina assenta nos cadáveres das puérperas assassinadas pela ignorância. Se Vossa Senhoria persistir em amestrar os seus discípulos na doutrina da febre puerperal epidêmica, eu – diante de Deus e do mundo – o declararei assassino”. “Tomei a resolução irrevogável de impedir até onde me seja possível este trabalho de assassinos”. “Se me coubesse optar exclusivamente entre permitir que continuem a morrer de febre puerperal numerosas puérperas, que poderiam ser salvas, e salvá-las, mediante a demissão de todos os professores de obstetrícia que não querem ou já não podem adotar a minha teoria, eu optaria pela demissão dos professores, pois estou convencido de que se trata de evitar a mortandade de milhares e milhares de mães e lactentes e diante disto, algumas dezenas de professores carecem de importância” (13).

A defesa de seus pontos de vista não teve os resultados esperados e os arautos da medicina passaram a criticá-lo pelo seu descomedimento e até duvidaram de sua sanidade mental. Em 1864 teve que abandonar uma aula devido a uma crise de choro convulso. Ficava angustiado e inquieto, andando de um lado para outro, numa ansiedade sem fim. Sua sanidade ia se perdendo, começou a acreditar que era vítima de um complô e que queriam matar sua família. Ao ver um casal de namorados em plena rua exortava-os a exigirem de seus médicos a desinfecção das mãos, reagindo furiosamente à menor contradição. Atendendo ao apelo de sua mulher, Hebra internou-o em um manicômio onde no dia 14 de agosto de 1865 faleceu de septicemia vítima de um ferimento no dedo durante uma de suas últimas autópsias realizadas. Ironicamente, além de morrer da doença que lutou para vencer, nesta mesma época em Londres seus princípios estavam sendo empregados por um homem que adquiriu fama e fortuna, contribuindo para vencer o flagelo da infecção (14).

Esta visão romanceada da morte de Semmelweis sofre contestação de parte dos seus biógrafos, baseados em fortes indícios encontrados. Em decorrência de seu contato direto com a população, onde denunciava os riscos a que estavam submetidas as parturientes e seus filhos, ele foi considerado insano pela Sociedade Médica de Budapeste, que exerceu forte pressão para sua internação, que se deu em um hospício, onde sofreu as agruras reservadas a estes pacientes, particularmente até o início do século XX. A sua morte, atribuída a septicemia devida um ferimento durante uma autópsia torna-se improvável, pois ocorreu após cerca de um mês de internação, período excessivamente longo de evolução desta patologia, na era pré antibiótica. O seu prontuário médico extraviou-se, sendo encontrado apenas em 1977 e sua análise leva à hipótese que ele morreu em decorrência de lesões provocados durante sua internação. (14)

Infelizmente Semmelweis enfrentou inúmeros problemas em sua atribulada existência. Era natural de um país dominado política e culturalmente, sofrendo todas as conseqüências de discriminações étnicas em seu ambiente universitário. Suas principais conclusões questionavam conceitos tradicionais que eram defendidos em sua escola, além da própria capacidade dos ensinamentos poderem ser aplicados na resolução de problemas relacionados à prática profissional. Dar razão a Semmelweis seria admitir que um assistente originário de uma simples colônia pudesse suplantar os expoentes do saber de uma das maiores potências européias do século XIX. Apesar do incontestável sucesso de suas descobertas, ele foi sendo progressivamente excluído do ambiente universitário de Viena, até que lhe sobrou uma obscura universidade de uma colônia oprimida, fora do circuito intelectual da Europa. Seguramente teve que gastar mais energia para lutar contra seus inimigos, do que para ensinar seus alunos, pois foram criadas barreiras injustificáveis contra sua atividade didática, doutrina e até mesmo sua pesquisa, praticamente alijando-o do meio científico.

Mesmo contra essas adversidades somadas àquelas de sua vida particular, ele publicou suas conclusões, de fato com atraso, em estudo que até hoje surpreende pela sua qualidade e pioneirismo. Acreditamos que aqueles que o criticaram pela sua falta de talento para a diplomacia, oratória, exposição literária, ou que não acompanhou os avanços da microbiologia, que poderia completar seus achados, cometeram mais uma injustiça contra este pioneiro. Seguramente, é muito mais fácil atribuir a desgraça de sua vida à sua “incapacidade”, do que admitir que ele foi vítima de uma situação injusta, presente até mesmo nos centro de saber. A própria microbiologia padeceu, enquanto suas principais descobertas vinham principalmente de um químico e de um médico do interior da Alemanha, que trabalhava em um laboratório improvisado no quintal de sua casa, que só conseguiu mostrar seus trabalhos numa universidade em 1876, portanto após a morte de Semmelweis. Tudo isto certamente dificultou que Semmelweis, um verdadeiro exilado da ciência, tivesse contato com estas descobertas. Assim, a lição de sua vida deve ser enfatizada não em suas “falhas” pessoais, mas sim nas injustiças que sofreu, esperando que sirva de exemplo para uma ciência cada vez mais voltada ao progresso da humanidade.

Referências bibliográficas

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(Fonte: http://www.ccih.med.br/semmelweis – Dr. Antonio Tadeu Fernandes)

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