O primeiro intelectual da moda do século XXI

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O primeiro intelectual da moda do século XXI

Thomas Piketty, o profeta da distribuição

Com previsões perturbadoras sobre a desigualdade e a concentração de renda, o francês Piketty se torna um best-seller – e vira o primeiro intelectual da moda do século XXI

 

Autor de um dos livros mais vendidos nos Estados Unidos, Le capital au 21e siècle. 

O professor e acadêmico francês Thomas Piketty se viu no meio de controvérsia que transbordou os limites da academia.

Piketty foi acusado pelo prestigiado jornal econômico Financial Times de apresentar dados errados em seu livro de mais de 500 páginas. Segundo o Financial Times, Piketty errou na transcrição de números e não checou dados nas fontes originais, especialmente nos valores sobre desigualdade social no Reino Unido.

O jornal apresentou sua própria interpretação dos dados, defendendo que os números corretos não sustentam as principais teses de Piketty. O autor respondeu às críticas. Piketty disse que oFT estava sendo “desonesto” e “ridículo”, e apresentou estudos independentes que sustentam suas teses.

 

Por força da globalização, nos últimos 30 anos a economia mundial sofreu enormes transformações. Na China e na Índia, na Ásia e na África, na Rússia e na América Latina, um contingente  equivalente a dois terços da população mundial foi subitamente integrado ao mercado de trabalho e ao consumo. 

 

Foi a maior inclusão econômica da história humana – e produziu uma redução de pobreza equivalente. Não resolveu os problemas do planeta, mas provocou avanços substanciais na vida de de 3,5 bilhões de pessoas. “Sob qualquer ponto de vista, o mundo ficou muito melhor nos últimos 30 anos”, afirma o economista Samuel Pessôa, professor da Fundação Getulio Vargas. “Melhoraram a renda, a saúde, a educação. É um fenômeno que não se pode ignorar.”

 

Curiosamente, não há notícia dessa grande transformação nas 648 páginas do maior best-seller econômico dos últimos anos. O livro Le capital au 21ͤ  siècle, do economista francês Thomas Piketty, lançado em francês em 2013 e agora traduzido para o inglês, vendeu nos últimos 60 dias mais de 100 mil exemplares impressos, além de um número não divulgado (mas certamente expressivo) de cópias em e-book. Na loja digital da Amazon, o livro ocupa o segundo lugar na lista de mais vendidos em papel (atrás apenas de A culpa é das estrelas, de John Green) e a 65ª posição entre os e-books. Está na lista dos 100 mais vendidos desde que foi lançado, embora conte uma história oposta ao sucesso da inclusão global.

 

Influenciado, provavelmente, pela lenta erosão das expectativas econômicas na França, assim como pela recuperação em câmera lenta das economias do resto da Europa e dos Estados Unidos, Piketty descreve com brilho, minúcia e típico mau humor francês a concentração de renda violenta em curso nas economias desenvolvidas. É um fenômeno paralelo à crítica da globalização que, desde o movimento Occupy Wall Street, de setembro de 2011, chegou ao centro do debate político e intelectual americano.
Apoiado na solidez e no ineditismo dos dados apresentados em seu livro, esse professor de 44 anos da Escola de Economia de Paris tornou-se uma espécie incomum de celebridade. Ao viajar pelos Estados Unidos para lançar seu livro, foi recebido pelo secretário do Tesouro, falou para os conselheiros econômicos da Casa Branca, deu palestra ao lado de dois prêmios Nobel e foi objeto de reportagem até mesmo em programas matinais de TV. Ao final da excursão, seu inglês com sotaque carregado e seu rosto sorridente já haviam se tornado familiares não só aos americanos, mas ao mundo. Não se sabia, apenas, se ele era mais um economista pop a caminho do esquecimento ou se – como chegaram a dizer – o intelectual francês mais influente nos EUA desde Alexis de Tocqueville, autor de A democracia na América.

 

Como estudioso de desigualdade mais respeitado da última década nos meios acadêmicos, é improvável que Piketty seja efêmero. Prodígio matemático, ele chegou aos Estados Unidos em 1993 para dar aulas de economia no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), uma das universidades mais respeitadas do mundo. Tinha 22 anos. Três anos depois, voltou à França, convencido de que os americanos se preocupavam mais com matemática e teoria do que com o mundo real. Admirador do historiador Fernand Braudel e do antropólogo Claude Lévi-Strauss, sonhava testar com fatos as convicções que sobravam no seu meio. Mergulhou na pesquisa histórica sobre renda e patrimônio e criou, em 15 anos de trabalho, com ajuda de colaboradores no mundo todo, um banco de dados sobre a evolução da renda e da desigualdade que cobre 30 países. Esse acervo é a base de seu livro.

 

Ele foi xingado de “marxista” por quem não leu seu livro – Piketty é, ao menos formalmente, socialista, ligado ao partido do presidente François Hollande. Os tabloides europeus divulgaram que ele foi preso em 2009 por bater na amante, a atual ministra da Cultura e Imprensa francesa, Aurélie Filippetti, de 40 anos. Piketty é casado desde 1996 com a economista Julia Cage, com quem tem três filhos. Francês meio típico, já se sabe que ele é. Marxista, ele jura que não. “Nunca consegui ler Marx”, disse numa entrevista nos Estados Unidos. “Nos livros dele, não há dados. Para mim, não teve influência nenhuma.” Em seu próprio livro, Piketty conta que tinha 18 anos quando caiu o Muro de Berlim e que “não tem paciência” com o anticapitalismo. Em outra passagem, refere-se aos regimes criados à sombra da Revolução Russa como “tragédias”.

“Os marxistas tentam se apropriar das conclusões dele, mas o que Piketty escreve nada tem de marxista”, diz o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda e da Agricultura no regime militar. “O olhar dele é muito otimista. Acredita que está nas nossas mãos organizar o processo político para que o desenvolvimento seja palatável.” Piketty provocou artigos de respeitosa contestação da revista britânica The Economist, de orientação mais liberal. Arrancou de Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, de orientação menos liberal, a afirmação que “mudará tanto a maneira como pensamos a respeito da sociedade como a forma como fazemos economia”.

Primeiro, Piketty apresenta um problema. Afirma que a distribuição de renda, marca da prosperidade no século XX, estancou e hoje regride. Desde os anos 1970, as curvas de desigualdade começaram a subir na Europa e nos Estados Unidos. Na última contagem, em 2010, o 1% mais rico dos EUA detinha 20% da renda total, percentual equivalente ao da Europa em 1910 – época de privilégios hereditários, em que a mobilidade social era pífia; a meritocracia, mínima; e os mais pobres, estruturalmente condenados a continuar assim – a menos que casassem com a fortuna.

 

Entre 1915 e 1970, diz Piketty, ocorreu uma mudança. Duas guerras mundiais e o cenário econômico que elas criaram reprimiram a concentração do capital em poucas mãos. A prosperidade se disseminou dos dois lados do Atlântico. Foi nesse cenário economicamente harmonioso, segundo ele, que americanos e europeus viveram até há pouco. Com a desaceleração das economias ocidentais e a suspensão dos controles sobre as finanças, Piketty afirma que a força da concentração voltou a prevalecer – e sugere, polidamente, que a tendência é piorar no século XXI. Se alguma providência não for tomada, diz ele, poderemos chegar rapidamente a um cenário em que 0,1% da população mundial – cerca de 4,5 milhões de pessoas – detenha entre 40% e 60% da riqueza global. Seria a volta ao mundo econômico de Charles Dickens e Machado de Assis, em que herdeiros afortunados viviam cercados de aproveitadores ou dependentes. Nesse universo, havia pouco espaço para o mérito pessoal, para a iniciativa empreendedora ou para uma vida estável de classe média. “Essa situação seria incompatível com nossos valores e politicamente insustentável”, diz Piketty.

 

A principal diferença entre a visão dele e de seus antecessores que previram problemas para o capitalismo é que Piketty parece ter arrumado duas explicações engenhosas – e economicamente consistentes – para justificar suas previsões. A primeira cabe numa fórmula, “r > g”. Ela traduz, simplificadamente, uma das conclusões que Piketty extraiu de seu manancial de dados: toda vez que a taxa de retorno sobre o capital dos investidores (“r”) é expressivamente maior que a taxa de crescimento da economia (“g”), o dinheiro herdado cresce mais rápido que a produção e que os salários. É fácil entender. Se uma economia cresce a menos de 2%, como a brasileira, mas os investimentos, os aluguéis ou os lucros dos negócios rendem um percentual maior, digamos 4%, os donos de investimentos, imóveis e negócios tendem a acumular mais rápido do que quem recebe salário. Piketty afirma que a fórmula “r > g” explica, sobretudo, a atual situação na Europa, onde as taxas de crescimento têm sido baixas, e as heranças ganharam um peso maior no acúmulo da riqueza. Lá, em 2010, o valor agregado da riqueza privada equivalia a entre quatro e seis anos de toda a renda anual do trabalho. Em 1950, no auge do período de distribuição de renda, essa relação variava entre dois e três anos. Em 1910, a medida era de seis a sete anos.

 

A segunda explicação de Piketty para a concentração de renda não tem a ver com a transmissão de herança ou retorno sobre investimentos, mas com a remuneração de uma parcela privilegiada da população, que recebe supersalários. Nos Estados Unidos, essa parcela é representada por diretores de grandes empresas, operadores de fundos de investimento e outros trabalhadores superqualificados – ou bem situados na hierarquia das decisões. Postados entre os 10% mais bem pagos na pirâmide de renda, eles abocanham hoje em dia algo entre 45% e 50% da massa salarial nos Estados Unidos. Nos anos 1950, esse percentual era inferior a 35%.

 

Piketty diz que esse crescimento aconteceu por dois motivos. Primeiro, muitos desses executivos têm poder de estabelecer seus próprios rendimentos, sem conexão com a produtividade real de seu trabalho. Segundo, a redução de impostos feita por sucessivos governos americanos desde os anos 1980 os incentivou a tomar mais para si. No passado, com impostos altos, era inútil ganhar acima de um certo patamar. O Fisco engoliria o excesso. Sem esse freio, diz Piketty, compensa apropriar-se de parte maior dos ganhos da empresa. “O crescimento espetacular da desigualdade nos Estados Unidos reflete uma explosão sem precedentes da renda dos administradores”, diz Piketty. Ele pondera, porém, que é cedo para prever se esse fenômeno americano – e, em menor medida, britânico – se reproduzirá com a mesma intensidade em outros países.

 

Muito do que Piketty diz não é novidade. No final de 2012, uma edição especial da mesma The Economist que criticou Piketty apontava a “dramática concentração de renda dos últimos 30 anos”. Dizia que ela já alcança ou excede aquela registrada nos decênios finais do século XIX. Os economistas também discutem há anos os efeitos deletérios da desigualdade de renda. Gente potencialmente talentosa pode ser privada de educação por falta de recursos. A demanda cai (quantos carros ou geladeiras uma mesma família rica é capaz de comprar?). O endividamento em massa de quem ganha pouco propicia crises financeiras como a de 2008. Até o crescimento econômico arrefece, pela falta de um mercado ebuliente, sempre movido pela robustez da classe média.

 

Segundo um relatório do Banco de Desenvolvimento da Ásia citado pela The Economist, se a distribuição de renda na região não tivesse piorado tanto nos últimos 20 anos, outros 240 milhões de pessoas poderiam ter sido tirados da pobreza. Mesmo no Fórum Econômico de Davos, onde se reúne anualmente a elite econômica mundial, a desigualdade já foi identificada como o problema mais urgente da próxima década. Existe, portanto, uma audiência ávida para debater o tema. Nos EUA, onde a prolongada recessão encolheu os horizontes econômicos de milhões de famílias, a questão está ainda mais viva. Pela primeira vez em várias gerações, os filhos acham que não terão as mesmas oportunidades que seus pais tiveram. A classe média encolhe. A meritocracia que fundamenta o sonho americano está ameaçada. “É por isso que o livro de Piketty fez tanto sucesso nos EUA”, afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp. “Os americanos sentiram que a conversa sobre desigualdade diz respeito a eles.”

 

No Brasil, a situação é diferente. Assim como no resto da América Latina, a desigualdade aqui vem caindo acentuadamente nos últimos anos, na contramão do que ocorre na maioria dos países. O economista Marcelo Neri, ministro da Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência, diz que, entre 2001 e 2012, a renda dos 10% mais pobres cresceu 120%, enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu 26%. Os dados brasileiros não são perfeitos. Baseiam-se em entrevistas domiciliares por amostragem, enquanto Piketty usa declarações de Imposto de Renda e declarações de espólio. (No Brasil esses dados são sigilosos, como o próprio Piketty descobriu ao tentar obtê-los.) É provável, portanto, que o Brasil desconheça a extensão precisa da concentração de renda por aqui. Mesmo assim, o ganho dos mais pobres identificado por Neri é inequívoco, e a explicação para sua existência é bastante simples. “Educação, educação e educação, mesmo de baixa qualidade”, diz Neri. “Ela responde por 54% da redução da desigualdade.” Depois vem o resto – Bolsa Família, salário mínimo e pensões. Essa explicação é parecida com a de Piketty. Ele escreve que “as principais forças para reduzir a desigualdade são a difusão do conhecimento e o investimento em treinamento e habilidades”. Em uma única palavra, educação.

 

Piketty esquece em seu livro alguns fatos fundamentais. Primeiro, que a globalização tem acelerado e disseminado essa transmissão do conhecimento. Os bons governos fornecem boas escolas e boa educação, mas são as empresas que constroem fábricas e laboratórios. São elas que treinam caixas ou programadores. São elas que transformam estudantes talentosos em profissionais remunerados. É o capital que cria as oportunidades – e só costuma criá-las quando a taxa de retorno (“r”) é atraente para o capitalista, ou maior que o crescimento da economia como um todo (“g”). A mesma força que, segundo Piketty, gera desigualdade também pode gerar distribuição de renda.

Piketty, estranhamente, parece ignorar isso. Também esquece que a globalização pode ter gerado desigualdade nos países mais ricos, mas não no planeta como um todo. “A entrada de 3,5 bilhões de trabalhadores miseráveis na economia global nos últimos 30 anos fez desabar os rendimentos do trabalho e aumentar o rendimento do capital. Isso se entende no primeiro ano do curso de economia”, afirma o economista Paulo Guedes. “Não discuto o que Piketty diz sobre a desigualdade na Europa e nos Estados Unidos. Só que ele deveria levantar a cabeça e olhar para o equilíbrio geral. A desigualdade entre os países cai, e a riqueza total cresce. Essa é a novidade.”

Krugman, um dos maiores admiradores de Piketty, diz que ele tampouco explica bem a questão dos supersalários. É possível que muitos executivos se atribuam salários descolados dos ganhos de produtividade, afirma Krugman. Mas, no setor financeiro, onde se pagam fortunas, a produtividade é medida com precisão. Sabe-se exatamente quanto o gestor de um fundo de investimento produziu para seus clientes. Seus salários e bônus podem parecer exorbitantes, mas não deveriam ser considerados imerecidos ou tratados como apropriação da produtividade alheia.

Há, finalmente, uma questão técnica referente ao coração do argumento de Picketty. A lógica econômica prevê que os rendimentos sobre o capital (o “r” da fómula de Piketty) tendem a cair quando há excesso de capital, como acontece com qualquer ativo. É uma questão de oferta e demanda. Piketty, contudo, antevê um cenário de acumulação crescente de capital, em que seus rendimentos continuarão, não obstante, subindo sempre mais que o PIB ou a renda do trabalho. Economistas sérios enxergam nisso uma aparente inconsistência.

Não é, porém, no diagnóstico da situação presente que residem os pontos realmente controversos da tese de Piketty. Como seu livro olha adiante, na direção do fim do século XXI, é possível que dentro de 50 anos “r > g” ainda se mostre tão clarividente quanto “e = mc2”. O que desde logo está fadado a tropeçar é sua proposta de solução imediata para a concentração de renda: impostos internacionais. Ele propõe um imposto progressivo anual sobre as grandes fortunas, cobrado mundialmente. “Esse imposto é a única forma de controlar democraticamente um processo potencialmente explosivo, preservando, ao mesmo tempo, o dinamismo empresarial e a abertura econômica internacional”, afirma.

Uma  longa lista de considerações poderia ser feita sobre a dificuldade prática e a ineficácia teórica dos impostos sobre fortunas – sobretudo os internacionais que, por boas razões, nunca foram criados. Na economia mundial, seria impossível – e indesejável – cobrar uma taxa desse tipo, capaz de colocar uma focinheira intercontinental no espírito empreendedor do capitalista. Piketty reconhece as dificuldades, mas insiste que esse é o caminho a seguir. As evidências mostram que não é – a começar pelas experiências do governo que ele apoia, em seu próprio país. O presidente Hollande tentou em 2012 impor uma alíquota de 75% sobre a renda dos franceses mais ricos. Conseguiu, além de um veto judicial, que um dos atores mais famosos do país, Gérard Depardieu, pedisse e conseguisse cidadania russa, para escapar do Fisco. O governo de Vladimir Putin o recebeu de braços abertos. Provavelmente fará o mesmo por quantos milionários procurem a proteção de seus passaportes em troca de investir seu capital no país que os acolhe. Quando Piketty defende os impostos internacionais, deveria lembrar que o planeta está repleto de governantes como Putin – e de gente como Depardieu. Eles não esperarão por decisões de governo que avancem sobre seu patrimônio. A despeito de fórmulas sedutoras, como “r > g”.

 

 

(Fonte: http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/05- Notícias; Por IVAN MARTINS – 31/05/2014)

 

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