Juan Domingo Perón, militar e político argentino um mito nacional

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Juan Domingo Perón (Lobos, 8 de outubro de 1895 — Buenos Aires, 1 de julho de 1974), militar e político argentino. Foi presidente de seu país de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974.

O tempo de Perón

O DESTINO DE UM CAUDILHO, SEUS RECUOS, SEU TRIUNFO E SUA MÍSTICA

Durante três décadas, ele foi a fronteira que dividiu a Argentina em dois países: o peronista e o não-peronista. Capaz de inspirar ao mesmo tempo a mais fanática devoção e o ódio mais irracional, Juan Domingo Perón conseguiu, à força de habilidade, astúcia – às vezes à força da própria força -, tornar-se a mais acabada, e talvez derradeira, expressão do típico caudilho latino-americano. Em nenhum momento revelou a grandeza olímpica de um de Gaulle, o brilho de um Churchill, a genialidade política de um Lênin. No entanto, teve momentos de carisma em que se igualou não só a todos eles mas talvez até ao megalomaníaco Hitler e ao esparramado Mussolini, a quem tanto admirou.

Mas será certamente na canhestra galeria dos caudilhos latino-americanos do século XX, não na dos líderes mundiais, que o nome de Perón ocupará um lugar de destaque, não tanto por sua obra, boa ou má, mas pela principal característica de seu desempenho político – o senso de oportunidade. E, como símbolo exemplar desse seu traço, elevado muitas vezes aos padrões da astúcia, bastarão suas próprias palavras de setembro de 1955: “Se meu espírito de lutador me impele para a contenda, meu patriotismo e meu amor ao povo me induzem a toda renúncia pessoal”.

Na verdade, as lutas de Perón, ao final das quais na maioria saiu vitorioso, se constituíram basicamente de renúncias. Duas vezes pressionado pelas armas, ele recuou: em outubro de 1945, quando era o homem forte do regime militar instaurado dois anos antes na Argentina, e em setembro de 1955, quando exercia seu segundo mandato presidencial. Das duas vezes, o êxito coroou sua renúncia. Em 1945 chegou ao poder, em 1955 transformou-se em mito.

Ante a morte, Perón lutou até onde lhe permitiu o vigor combalido de seus 78 anos. Para ele, porém, a derrota consistiu menos em tombar frente a um inimigo implacável do que no fato simples e profundo de não ter preparado ninguém para empunhar a bandeira – ou herdar as sobras – do peronismo. Por isso, ao que tudo indica, daqui para a frente a expressão peronismo não qualificará nada mais que o tempo de Perón.

Mussolini – Esse tempo começa em junho de 1943, quando o Exército derruba o governo do presidente Ramón Castillo, num golpe liderado pelo general Edelmiro Farrell. Por trás do movimento, poucos notam a presença de um coronel de 48 anos e modestos antecedentes, mas que logo despontaria como um cometa no firmamento da política argentina. Nascido na localidade de Lobos, província de Buenos Aires, em 8 de outubro de 1895, a vida de Perón fora até então a expressão perfeita do comum.

Quando ele tinha 5 anos, a família se transferiu para uma estância em Santa Cruz, na Patagônia. Entre o pequeno povoado e o pampa infinita, gaúchos e cavalos, seu destino de estancieiro estava praticamente decidido, não manifestasse ele a vocação para a carreira das armas. Aos 15 anos ingressou na Escola Militar, destacando-se como hábil cavaleiro e esgrimista – foi campeão nacional de espada em 1918.

Galgando um a um os degraus da oficialidade, seu destino parecia confinado aos limites da carreira militar. Mas, em 1939, o prenúncio de alterações no mundo viria modificar seu caminho. Em fevereiro daquele ano, Perón foi enviado em viagem de estudos à Itália. E ali, mais do que aprender táticas militares, pode assistir ao espetáculo fascista, ao ponto de, três anos depois, já na Argentina, dizer a seus amigos: “Mussolini é o maior homem deste século. Mas cometeu erros que não cometerei”.

Primeiro triunfo – Foi talvez com a determinação de tornar-se tão grande quanto imaginava ser o Duce que Perón começou então a se movimentar entre os integrantes do Grupo de Oficiais Unidos, núcleo do golpe de 1943 e trampolim do qual se lançou para uma trajetória incontível. Nomeado, a seu próprio pedido, para o modesto posto de titular da Secretaria do Trabalho, logo transformado por ele num dinâmico Ministério, de seu gabinete começaram a brotar medidas populares: aumentos de salários, redução das jornadas de trabalho, instituição do 13° salário.

Na verdade, a explosão de Perón coincidia com alterações fundamentais na sociedade e na economia argentinas. Nascido sob um signo eminentemente rural e pastoril, o país desde o início da década de 30, vinha se industrializando. A II Guerra Mundial, ao privar a nação de muitos artigos importados, contribuiu para acelerar esse processo de transição. E com a Argentina industrial crescia o proletariado urbano, potencialmente desejoso de maior participação na riqueza – e no poder. Contrariando o comportamento do caudilhismo clássico, baluarte das tradicionais forças detentoras do poder, Perón teve a sagacidade de colocar-se como intermediário entre elas e a classe emergente.

Corria 1945, um ano de definições cada vez mais claras e conflitantes para a Argentina: de um lado, a democracia liberal, desejosa de um retorno ao sistema anterior a 1943; de outro, um fervoroso caos popular que tinha em Perón – já acumulando os cargos de secretário do Trabalho, ministro da Guerra e vice-presidente – seu líder indiscutido, encarnação intuída de um profundo conteúdo nacional e uma atitude avançada no campo social. A tensão se definiria rapidamente. Em 9 de outubro, parte da oficialidade exigiu a renúncia de Perón aos três cargos – exigência não acatada, como seguida da prisão na ilha de Martín García, no rio da Prata. Mas, se a renúncia definiu a vocação de Perón para o recuo, sua detenção consistiu na nota dramática que elevaria sua mística à categoria do martirológio. Foi seu primeiro grande triunfo.

Era de Evita – No dia 17, ocorreria a maior surpresa da história política argentina. Desde a madrugada, uma caótica maré humana, vinda do cinturão suburbano, começou a desabar sobre Buenos Aires, de forma pacífica porém determinada a obter a libertação de seu líder. Defronte a Casa Rosada, na Plaza de Mayo, já às centenas de milhares, unida num só grito – “Perón!” -, a multidão impõe sua vontade. E no dia seguinte Perón é reconduzido à vice-presidência. Estava aberto o caminho para a vitória eleitoral no ano seguinte.

Em seu sentido mais profundo, o 17 de outubro de 1945 marcou o vínculo inquebrantável entre o líder e seu povo, bem como a falência dos partidos tradicionais e dos fatores de poder vigentes até então. E, acima de tudo, despontou a presença da mulher que não demoraria a se tornar a mola propulsora da vida de Perón – Maria Eva Duarte, a Evita, presidente da Associação dos Radialistas Argentinos e locutora da Rádio Belgrano. Foi ela quem praticamente o salvou da prisão, convocando pelo rádio, de sindicato em sindicato, com sua voz rouca e apaixonada, os trabalhadores. E no dia 17 de outubro de 1945, com a era do peronismo, nascia a era de Evita.

Na verdade, a importância de Evita na vida de Perón foi tão grande que sua mulher anterior ficou na história apenas como uma referência circunstancial: Aurelia Tizón, a “Potota”, uma ex-professora falecida em 1938, com quem esteve casado por dez anos. Depois dela veio Eva Duarte, primeiro como amante, dias após o 17 de outubro como mulher e, finalmente, como seiva vital. Sua influência sobre Perón, o peronismo e a Argentina fica evidenciada na tentativa do marido de moldar a terceira mulher e atual presidente, Isabelita, à sua imagem.

Não demoraria para que Evita passasse a ser a “chefe espiritual da nação” e Perón, o “fundador da Nova Argentina”. Mais que ele, todavia, foi ela o fator decisivo para a formação da mística do peronismo. Distribuindo alimentos, magnetizando multidões com discursos de conteúdo revolucionário, Evita se impôs definitivamente como uma das figuras mais impressionantes da Argentina contemporânea. Morta em 1952, de leucemia, no auge da popularidade, aos 33 anos, a mística em torno de sua imagem cresceu ainda mais. E colocou-a em pé de igualdade com o marido, na grandeza e no carisma, na galeria dos santos da religião peronista.

Síntese – A liturgia desse credo começou com a eleição de Perón, em fevereiro de 1946. Sua primeira fase, triunfante, duraria três anos, favorecida por uma conjuntura externa e interna particularmente propícia. A ascensão de Perón coincidia com uma vaga de prosperidade sem precedentes na Argentina. Ao fim da guerra, as missões comerciais estrangeiras se sucediam em Buenos Aires para comprar trigo e carne. A balança comercial era favorável e havia pleno emprego. Perón se vangloriava: “Não podemos caminhar pelos corredores do Banco Central. Estão abarrotados de lingotes de ouro”. E as nacionalizações se sucediam: estradas de ferro, companhias de gás, bancos.

No entanto, passado o eufórico período de prosperidade do pós-guerra, vieram as primeiras dificuldades. As exportações declinaram, as reservas de divisas diminuíram, os salários reais sofreram quedas abruptas. Com a deterioração da situação econômica, surgiram as primeiras críticas. E estas eram respondidas com a truculência.

Surgiam denúncias de arbitrariedades policiais, torturas. A imprensa era perseguida, jornais e rádios fechados. Segundo alguns críticos do peronismo, tratava-se de impor mais e mais a mística irracional de uma doutrina que, tentando definir tudo e ser a síntese de todas as doutrinas, nada definia e nem uma doutrina chegava a ser. Mas o poder concreto dessa mística era tal que, majoritários no Congresso, os peronistas reformaram a Constituição, para que Perón pudesse ser reeleito em 1951.

Seria o tempo, porém, de pagar pelos erros e desperdícios do primeiro mandato. Até então catalisador dos interesses de praticamente todas as classes, o peronismo atraía cada vez mais inimigos. As pregações em favor de “a terra para quem a trabalha” contavam com a simpatia ingênua dos “peones” – mas também com a ira dos latifundiários. Os industriais argentinos se sentiam ameaçados pelo crescente recurso do Estado aos investimentos externos. Temiam a ruidosa CGT, agigantada durante o peronismo. Quanto aos militares, jamais confiaram nos sindicatos.

O maior erro -No ano de 1955, Perón cometeu o que talvez tenha sido seu maior erro. Com seu furor característico, os peronistas desencadearam uma campanha contra certos direitos e privilégios da Igreja. Templos foram queimados, sacerdotes expulsos do país. E a Igreja, até então uma força de apoio ao regime, revidou aos ataques com igual intensidade. Perón foi excomungado. A oposição – incluindo católicos, liberais anticlericais, marxistas – agrupou-se em torno do clero.

No dia 16 de junho, foi sufocada uma revolta da Marinha. Mas estava aberto o caminho para outra, das três Armas, em 16 de setembro, vitoriosa em quatro dias. Na manhã chuvosa d odia 20, Perón se asilou na canhoneira “Paraguay”, de onde sairia no dia 3 de outubro para tomar o hidroavião que o levaria para o exílio, primeiro por vários países da América Latina e finalmente para a Espanha.

Governo e poder – No entanto, foi em vão que os protagonistas da Revolução Libertadora tentaram apagar os vestígios do peronismo. Acusaram-no de corrupto e corruptor de menores, destituíram-no da patente de general, apagaram seu nome de edíficios públicos, ruas e escolas – mas não conseguiram tirar a Argentina da crise econômica. E, quanto mais o país afundava, empurrado além de tudo pelos peronistas inconformados, que se entregaram a um frenesi terrorista denominado Resistência Peronista, mais alta parecia estar a imagem do caudilho.

Assim, à força dos erros de seus adversários, ele foi se tornando, ao longo dos dezoito anos de seu exílio, o homem supostamente providencial para a Argentina. Em 1966, os militares assumem o poder. O último presidente militar, general Alejandro Agustín Lanusse, num lance de aguda percepção, convence seus camaradas de que a única maneira de destruir o mito talvez fosse confrontá-lo com o homem. Em 25 de maio de 1973, o dentista Héctor Cámpora, velho cacique peronista, chega, com quase 50 % dos votos, ao governo. E, 46 dias depois, renuncia, abrindo passagem para que o chefe supremo chegue diretamente à Casa Rosada, em consagradoras eleições realizadas no dia 12 de outubro.

Nos quase dez meses que passou na presidência, enfrentando divisões cada vez mais agudas dentro do que se transformara seu heterogêneo movimento, impotente para resolver a crise econômica do país, a figura mitológica de Perón começava a desmoronar. Talvez providencialmente – para ele -, o homem tombou antes. E arrastou consigo, segundo tudo indica, a projeção agigantada da sua própria sombra.
(Fonte: Veja, 10 de julho, 1974 – Edição n.° 305 – MEMÓRIA – Pág; 56/57)

O CHOQUE DO PRESENTE

A DIFÍCIL TAREFA DE ENTERRAR UM MITO NACIONAL

As cenas foram incontáveis, e as emoções, incontroláveis. Enquanto a nação argentina mergulhava numa dor quase mórbida, Buenos Aires apresentava-se desnorteada como após uma guerra. Com suas lojas fechadas, o trânsito proibido, a capital havia cessado de viver desde as 13 horas de segunda-feira, ao mesmo tempo que Juan Domingo Perón. Aos 78 anos de idade, após ter dominado, invadido, fascinado e moldado a vida dos argentinos durante três décadas, Perón finalmente abandonava seus compatriotas. Presidente absoluto durante nove anos, proscrito e exilado ao longo dos dezoito seguintes, reentronado no poder há pouco mais de nove meses, ele havia feito de seu nome uma bandeira e de sua pessoa um patrimônio nacional. E tombou, vítima de uma “broncopatia infecciosa, com repercussões sobre uma antiga afecção circulatória central” – quando mais o país necessitava de sua autoridade e sua liderança, para aplacar as diferenças e disciplinar as tumultuadas expansões da dividida socieddae argentina.

Desde o dia 19 de junho, uma quarta-feira, Juan Domingo Perón encontrava-se recolhido a seu leito no 1.º andar do chalé da residência presidencial de Olivos. A partir de sexta-feira, dia 26 de junho, começaram a circular rumores alarmantes sobre seu estado de saúde. E as últimas horas dias de lenta, angustiada agonia para Perón e a Argentina, com as emissoras de rádio e televisão divulgando boletins médicos de hora em hora até que, às 14h10 da terça-feira, entraram em cadeia nacional para que a vice-presidente da República e mulher de Perón, Maria Estela (“Isabelita”) Martínez, anunciasse ao país a notícia ao mesmo tempo esperada e temida: havia 55 minutos – desde 13h15 daquela tarde em Buenos Aires -, Perón estava morto.

O espólio – O país dobrava uma arriscada esquina de sua história. No dia seguinte, o corpo do carismático presidente foi transportado para a Catedral Metropolitana – e em seguida para o edifício do Congresso Nacional, onde foi exposto à visitação pública durante três dias. Após cumprir um inesperado périplo, reornava à residência de Olivos -, Maria Estela (“Isabelita”) Martínez, feita presidente, já pode compreender que as personagens legendárias não tem sucessor – ou, então, tem herdeiros demais.

Com efeito, o espólio político do caudilho, em meio ao caudaloso e multifacetado movimento peronista, já está em pleno andamento. Irremediavelmente divididos entre uma CGT oportunista e uma exaltada Juventude Peronista, oscilando entre líderes como José López Rega – personificação da direita – e Héctor Cámpora – bandeira da esquerda -, os peronistas pareciam, já em plena corrida pela disputa do poder. Era um mistério – até quando – Isabelita, com seu despreparo e sua inexperiência política, conseguiria o milagre de legar ao movimento um mínimo de coerência e interesses comuns. E, em meio ao gigantesco vazio deixado, pela morte de Perón, além das alas rivais do justicialismo, era possível intuir uma renovada movimentação em setores antiperonistas, como os militares e a oposição civil ao ex-presidente, liderada por Ricardo Balbín, do Partido Radical.

Como em 20 de junho de 1973, quando do ansiado retorno de Perón à Argentina, ambos queriam chegar primeiro às proximidades do caudilho – não importa estivesse ele morto. Como era de se supor, os duros grupos paramilitares da CGT, identificados por uma braçadeira azul e branca das 62 organizações sindicais, acabaram por conquistar o controle da praça, prevalecendo-se de sua superioridade numérica e dos revólveres que cada militante trazia. Desta vez, não se repetiu a tragédia da recepção do caudilho em Ezeiza, quando o choque entre as duas facções deixou um saldo de trinta mortos e mais de trezentos feridos.

Já ao amanhecer de terça-feira, uma coluna de tanques se postava nas imediações da quinta presidencial, isolando a área num raio de quarenta quadras. Enquanto isso, pelo menos 10 000 homens das três armas dispunham-se ao longo do trajeto a ser ppercorrido pelo cortejo fúnebre, numa extensão de mais de 15 quilômetros. E no centro de Buenos Aires tinha-se a impressão de que a cidade havia sido ocupada militarmente, lembrando, por instantes, épocas mais duras de governos anteriores: apenas os veículos oficiais e as motocicletas da Polícia Federal tinham livre trânsito pelas ruas.

Assim, protegido contra eventuais excessos, o féretro do líder justicialista abandonou a residência de Olivos escoltados por duzentos cavaleiros do Regimento de Granaderos de San Martín. E, quando, após longas horas, chegou à plaza de Mayo sobre uma carreta militar e rebocado pelo Carrier de registro EA-31688 (o mesmo tipo de transporte utilizado 21 anos antes para levar o corpo de Evita), velhos de lealdade insubstituível já choravam da mesma e convulsiva forma.

Problemas descomunais – Sentiam-se no direito de protestar contra a barreira militar que os distanciava do ataúde e exigiram o recuo de um tanque, postado à frente da Catedral Metropolitana onde seria oficiada a missa fúnebre, que atrapalhava a visão da urna de Perón coberta com a bandeira argentina e encimada pelo quepe e a espada do general. Sobretudo, enquanto o cardeal de Buenos Aires, dom Antonio Caggiano, orava pela alma desse “cristão, humanista e inimigo da violência” – fazendo esquecer, definitivamente, irrequietas relações Perón-Igreja do passado -, a multidão se impacientou bastante com o desenrolar quase privado da cerimônia religiosa.

Finalmente, pouco antes do meio-dia, o ataúde do caudilho, sobre a carreta, percorreu o último trajeto até o Congresso Nacional – um meio-termo arquitetônico entre o Capitólio de Washington e o Reichstag de Berlim – onde foi venerado pelos argentinos durante três dias. “Perón, Perón”, “Isabel, Isabel”, gritava a multidão,acenando lenços e jogando flores.

Naturalmente, essa multidão, calculada entre 800 000 e 1 milhão de pessoas, acarretava problemas também descomunais. De fato, na área em frente ao Congresso concentrava-se apenas a parte mais privilegiada da massa peronista, enquanto nas ruas adjacentes um número de pessoas talvez maior tentava ultrapassar as barreiras de soldados e policiais armados de metralhadoras e fuzis automáticos e lança-bombas de efeito psicológico. Para conter a multidão a qualquer custo, foi armada uma espécie de ecumênico acampamento militar das Forças Armadas argentinas: soldados do Exército, pelotões de choque, patrulheiros, membros da Polícia Federal , efetivos da Polícia Provincial, além dos ríspidos elementos da força paramilitar de CGT, que em muitos casos outorgavam-se tanto ou mais autoridade do que os policiais.

Intrigas – Entre essa multidão desamparada, desorientada, não faltou quem apelasse, naquela hora de angústia e perplexidade, a um recurso desesperado – procurar um culpado. “Se López Rega não tivesse feito o 12 de junho, o general não teria morrido”, disse um jovem. Na verdade, ele não estava só nessa opinião: entre vastas camadas da população argentina, acreditava-se piamente, naquele momento, que se não fosse a friagem apanhada por Perón no dia 12 – quando, num fim de tarde com 5 graus de temperatura, falou ao povo na plaza de Mayo -, seu estado de saúde não se agravaria. E, como foi o ministro do Bem-Estar Social, José López Rega, quem organizou o comício, logicamente só poderia ser ele o culpado.

Na realidade, o nome de López Rega – o incrível Rasputín da corte peronista, ex-secretário particular de Perón e ex-guarda-costas de Isabelita, dado à astrologia e por isso alcunhado “el brujo” – é atualmente, aos 57 anos, um dos mais citados, para o bem e para o mal, na política argentina. Quando se fala em divisões dentro do peronismo, ou da luta pelo poder entre os partidários do presidente, sua referência é obrigatória. E, mais ainda, não se pode esquecer de “el brujo” quando se entra no terreno sinuoso das intrigas palacianas.

Desde o momento em que Perón expirou, López Rega colocou-se freneticamente a campo, preparando o assalto a seu maior rival dentro das hostes peronistas – Héctor Cámpora. E, nessa luta, não hesitou em lançar mão de um recurso de duvidosa ética – atribuir ao falecido palavras que ele não mais poderá contestar. “Dez minutos antes de morrer”, disse o irrequieto ministro do Bem-Estar Social a alguns dirigentes peronistas, “ouvi Perón dizer que o que mais sentia era a traição de Héctor Cámpora, por ter enchido o país de comunistas”.

Sintomas – Naturalmente, essas acusações -num momento em que Cámpora, abandonando a embaixada argentina no México, voltava a Buenos Aires disposto a reativar suas bases políticas – tiveram grande repercussão nos meios políticos. E chegaram a provocar a intervenção do capelão Hector Ponzo, responsável pela administração da extrema-unção a Perón. Segundo o capelão, o ex-presidente, logo depois de receber o sacramento, uma hora antes de morrer, perdeu a consciência. E, portanto, não poderia ter se dirigido a López Rega apenas 10 minutos antes de expirar.

Contudo, além desse sentimento – talvez até explicando-o -, algo mais forte e mais profundo começou a movimentar a Argentina. Com a morte de Perón, a vida política no passado parece condenada à extinção. E o presente, como um choque, começa a reorientar as opções da nação.

À força da tenacidade

O LENTO E PACIENTE CAMINHO DE MARÍA ESTELA MARTÍNEZ ATÉ A PRESIDÊNCIA

Ironicamente, se nos últimos dezoito anos o passado foi a arma invencível, e o trunfo mágico de Perón, para Isabelita, agora definitivamente exposta à curiosidade e ao interesse públicos, ele assume os contornos de um tenaz adversário.

A Casa Rosada se recusava olimpicamente a distribuir os tradicionais dados biográficos daquela que se tornou, em setembro de 1973, vice-presidente da Argentina. Com a mesma cautela as centenas de páginas de jornais portenhos consagradas à morte e à sucessão de Perón se limitaram a três magras linhas, em suas incursões pelo passado longínquo da nova presidente: “La señora María Estela Martínez de Perón nació em La Rioja El 4 de febrero de 1931”.

Toda essa prudência em traçar o perfil da herdeira de Perón é explicável pela existência, em sua biografia completa, de dois momentos potencialmente devastadores para a sua afirmação política no país: a comparação inevitável, e necessariamente danosa, com Evita Perón, e as circunstâncias obscuras de seu encontro, quando bailarina no Panamá, com o já então idoso (61 anos) caudilho exilado.

Para se desfazer desse passado incômodo e da carga esmagadora de suceder Evita na alma dos argentinos e substituir Perón no comando da nação, Isabelita ingressa na seleta galeria de figuras tão eminentes como Golda Meir, Indira Gandhi e Sirimavo Bandaraneike com uma única arma: a tenacidade.

Nome artístico – Desde jovem, quando ainda era chamada de “Nena” por sua mãe italiana, sua disciplina para obter o que queria era posta à prova diariamente. Decidida a se tornar bailarina clássica e triunfar sob is refletores do Teatro Colón, ela se impôs um regime alimentar draconiano e combateu sua tendência a engordar para manter os 52 centímetros de cintura condizentes com sua baixa estatura (1,57metro).

Mesmo não lhe abrindo os palcos do Colón, essa dieta, aliada à sua dedicação, acabaram por lhe trazer um convite para integrar o corpo de balé do Teatro Cervantes. E, em setembro de 1955, quando Perón era deposto da presidência e embarcava rumo ao Paraguai, María Estela já havia tomado a decisão de abandonar a casa paterna e o namorado, em Buenos Aires, para tentar a carreira artística sob um novo nome: Isabel.

Fascínio por Perón – Assim, como integrante ainda anônima de um grupo que, nas mãos do empresário Joe Heralds, especializou-se em danças menos clássicas, Isabelita percorreu diversas capitais latino-americanas antes de se apresentar no cabaré Happyland, “o mais famoso do Panamá”, onde seu destino sofreria uma reviravolta total. De bailarina, passaria a secretária e acompanhante de Perón no exílio.

As circunstâncias exatas desse encontro jamais foram esclarecidas, embora não faltem versões de amigos – e ainda menos de inimigos – do casal. Segundo os primeiros, Isabel teria sido levada à casa que então ocupava Perón por um colega de trabalho, “Martincho”, para um encontro do caudilho com alguns argentinos residentes no Panamá. Silenciosa como de hábito, porém atenta, ela teria se fascinado com o tom didático e preciso das declarações políticas do general, e daí teria nascido um entendimento só quebrado dezoito anos depois.

Presença obrigatória – Segundo essa mesma fonte, Panamá foi, na verdade, apenas um reencontro, já que em 1951, com Evita ainda viva, Perón teria sido apresentado a Isabelita por Roberto Maschio, cunhado dela, quando, pilotando sua Harley Davidson, saiu para comprar os jornais e deteve-se a conversar com quem se encontrava nas redondezas. Ainda assim, a versão menos generosa de que Perón, numa de suas incontáveis rondas noturnas pelas boates panamenhas, teria detectado Isabelita no Happyland, pago uma quantia não específicada de dinheiro para libertá-la do contrato, e oferecido à jovem bailarina o posto de secretária particular embora ela desconhecesse a datilografia, continua circulando com igual vigor.

(Fonte: Veja, 10 de julho, 1974 – Edição n.° 305 – MEMÓRIA – Pág; 55)

Em 1º de julho de 1974 – Morre, Juan Domingo Perón, presidente da Argentina.
(Fonte: Correio do Povo – ANO 118 – Nº 274 – CRONOLOGIA/ Por Renato Bohusch – 1º de julho de 2013 – Pág; 19)

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