Al Capp, cartunista americano criador de Ferdinando e do imaginário território de Brejo Seco.

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Capp: de liberal a conservador

Al Capp (New Haven, Connecticut, 28 de setembro de 1909 – South Hampton, Nova Hampshire, 5 de novembro de 1979), cartunista americano criador de “Ferdinando” e do imaginário território de Brejo Seco. No auge do sucesso, nos anos 40, ela aparecia em 1 500 publicações. Em 1977, porém, esses números caíram para 400. Deprimido, Capp fechou seu estúdio.

Desde 1935, quando Ferdinando foi publicado pela primeira vez, e ao longo de mais de quadro décadas, Al Capp foi compondo, com suas tiras, um ácido painel dos valores americanos consagrados. Ele ridicularizou a empáfia dos líderes, a ganância pelo lucro, a exploração do patriotismo, o grotesco do matriarcado e vergastou, acima de tudo, como gostava de frisar, a burrice e o embuste. Fiel a um código de valores muito pessoais, Capp despertou indignações primeiro à direita e depois à esquerda. A indiferença que vinha cercando sua historieta nos últimos tempos, porém, era-lhe sem dúvida absolutamente insuportável.

TIO IMAGINÁRIO – Nascido em New Haven, Connecticut, a 28 de setembro de 1909, Al Capp aprendeu a desenhar com seu pai. Esse aprendizado aprofundou-se especialmente durante os dois anos em que Al teve que ficar de cama, recuperando-se de um atropelamento por um bonde. Em consequência desse acidente, aos 12 anos teve que amputar uma das pernas, substituindo-a por outra de madeira. Enquanto se recuperava, ia lendo desornadamente tudo que encontrava na biblioteca do pai, especialmente os romances de Charles Dickens (1812-1870) e Mark Twain (1835-1910). De Dickens, ficou-lhe o fascínio pelas personagens falsas e hipócritas. De Twain, a visão de um sul encantado, perpetuamente aberto à aventura.

Foi em busca desse sul que Al partiu, tão logo completou 15 anos. Vivendo com um tio, num pequeno vilarejo do Tennessee, se não se tornou um Tom Sawyer, encontrou, em compensação, os subsídios que depois cristalizaria em suas histórias em quadrinhos: um ambiente humilde e atrasado, habitado por gente pobre, rapazes fortes, embora não muito inteligentes, e moças bonitas, mas cujo objetivo supremo na vida era conseguir um marido. Mudando-se depois para Boston e posteriormente para Nova York, Al Capp aprimorou seu talento frequentando vários cursos de arte sem, porém, concluir nenhum, em geral por falta de dinheiro para pagar as anuidades. Para conseguir as matrículas, inventou um imaginário tio rico, “que mandaria dinheiro no fim do ano, depois no ano seguinte, depois…”

NASCE FERDINANDO – O primeiro contrato de Al Capp para um trabalho profissional ocorreria em 1932, em Nova York, e propiciado por um acidente digno de conto de fadas. Ele andava pela rua, com alguns originais debaixo do braço, quando foi atropelado por um carro. Não se feriu, mas deixou cair uma pasta. Para sua felicidade maior, o ocupante do carro era o desenhista Ham Fischer, criador da tira de “Joe Palooka” (Joe Sopapo, no Brasil), que viu os desenhos espalhados pelo chão e imediatamente contratou seu jovem autor. Capp trabalhou para Fischer durante dois anos até o momento em que se sentiu cansado do que fazia.

Animou-se então a apresentar um seriado próprio à distribuidora King Features, que se interessou pelo trabalho e ofereceu-lhe 250 dólares semanais – desde que atribuísse um mínimo de matreirice a sua personagem principal. Capp recusou-se a fazer alterações e acabou vendendo sua tira a outro sindicato, a United, por 50 dólares semanais, mas mantendo a integridade de sua criação.

Nascia, assim, “Abner Yokum”, ou Lil Abner, ou Ferdinando Buscapé, como acabou sendo conhecido no Brasil, um rapaz de 19 anos, forte mas obtuso, sempre obediente a sua mãe, a mal-humorada “Xulipa”, e sempre perseguido pela casamenteira “Violeta”. O sucesso foi imediato. Tanto que, para satisfazer à ansiedade do público, Capp casou finalmente Ferdinando e Violeta em 1952.

OS SHMOOS – Ao redor da família Buscapé, completada pelo pai, “Lúcifer”, um acomodado praticante, Capp foi desenvolvendo uma galeria de tipos na qual entravam tanto personagens reais – como políticos e artistas de cinema – quanto animais imaginários, como os shmoos, que criou em 1948, e que lhe renderam alguns dissabores.

Parecidos com focas, os shmoos surgiam em Brejo Seco como bichos cuja característica básica de temperamento era ficarem radiantes sempre que alguém pensava em comê-los. Nessas ocasiões, apresentavam-se já em fatias, temperados e acompanhados de batatas. Reproduziam-se em velocidade incrível e produziam tudo o que fosse necessário – manteiga, queijo, ovos -, satisfazendo assim a todos, com a natural exceção dos comerciantes.

Na historieta, o problema dos shmoos é levado ao Congresso, como grave ameaça à economia americana, e decide-se por sua extinção. O pessoal de Brejo Seco fica desolado mas, em nome do patriotismo, Ferdinando acata a decisão. Na vida real, a história dos shmoos, publicada em plena fúria macarthista, valeu a Al Capp a suspeita de que fosse um esquerdista, “pois punha em descrédito a sagrada lei da oferta e da procura”.

RUNO À DIREITA – “Sou apenas um liberal”, defendeu-se o desenhista, mas sua aura de irreverência parecia haver-lhe garantido uma cadeira cativa do lado oposto dos conservadores. Começou então a percorrer os Estados Unidos fazendo conferências em escolas. Na esteira desse sucesso, viu-se processado por uma estudante que o acusava de violação, sodomia e obscenidade.

Embora repelisse essas acusações, acabou condenado, pela primeira delas, a pagar uma multa de 500 dólares. “Isso foi uma armadilha armada pelos comunistas”, bradou Capp, na época, revelando um ódio até então secreto. Segundo ele, mesmo sua indisposição com o comitê McCarthy – onde jamais depôs – fora articulada pelos comunistas.

Na década de 60, as posições de Al Capp foram tendendo cada vez mais rapidamente para a direita. Ficou com Nixon contra Kennedy, passou a ridicularizar os hippies, os pacifistas, as feministas. Nessa época, adquiriu fama de azarento já que John Kennedy fora assassinado enquanto era satirizado nas tiras de Ferdinando, o mesmo acontecendo com Martin Luther King e Robert Kennedy.

É bem verdade que, ao mesmo tempo, Capp não poupava Rockefeller e outros representantes do big business, mas sua popularidade entre os meios liberais estava irremediavelmente abalada. E seu sucesso entrou em ocaso. O próprio Capp parecia não ter grandes ilusões a seu próprio respeito quando, alguns anos atrás, analisou sua trajetória, dizendo: “Nos primeiros anos, eu tinha fome. Depois, criei Ferdinando, ele se transformou num grande negócio, fiquei rico, engordei. Daí em diante, minha maior motivação tem sido a ganância.”

Em 1977, Alfred Gerald Chaplin, conhecido internacionalmente como Al Capp, o criador de “Ferdinando”, anunciou que encerrava suas atividades. “Estou velho demais para trabalhar”, disse ele então. “Mas não tão pobre que tenha que continuar trabalhando.” De fato, aos 68 anos, ele amealhara uma respeitável fortuna graças à venda de sua tira em quadrinhos aos jornais do mundo inteiro.

Doente, passou os últimos dois anos preso a uma cadeira de rodas. No dia 5 de novembro de 1979, depois de duas semanas de internamento, morreu num hospital de Cambridge, Massachusetts.

(Fonte: Veja, 14 de novembro de 1979 – Edição 584 – QUADRINHOS – Pág: 93/94)

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