Se tornou a primeira executiva trans do Brasil

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A executiva trans que deslanchou na carreira após a transição

Danielle Torres, sócia da consultoria KPMG, fala sobre sua trajetória até se tornar a primeira executiva trans do Brasil

Para Danielle Torres, a transição de gênero foi um fato relevante da sua vida

(Crédito da fotografia: Cortesia Alex Silva/ REPRODUÇÃO/ DIREITOS RESERVADOS)

Danielle Torres entrou como trainee na KPMG, uma das maiores consultorias do mundo, aos 21 anos, em 2005. Hoje, 18 anos depois, é sócia da empresa, que a levou a assumir cargos de liderança em São Paulo, Nova York e Londres. Danielle é uma mulher trans e construiu uma carreira de sucesso em um país onde apenas 4% dessa população têm trabalho formal e a expectativa de vida é de 35 anos. “Chega um momento da nossa vida profissional que a gente adquire um repertório próprio, e ser ou não transgênero toma uma dimensão muito pequena na vida, que é o meu caso”, diz Danielle.

Ser uma mulher trans hoje já não é algo determinante no seu dia a dia profissional, mas por muito tempo foi. No ano passado, a executiva publicou o livro “Sou Danielle: como me tornei a primeira executiva trans do Brasil”, em que fala sobre suas jornadas pessoal e profissional, que foram atravessadas por dificuldades, mas não definidas por elas. “A história mostrou que eu estava certa e muitas pessoas estavam erradas porque eu desenvolvi muito a minha carreira após a transição.”

Hoje (29), no Dia da Visibilidade Trans, a Forbes conversa com Danielle Torres sobre sua trajetória como primeira executiva trans do país e sobre como o mercado de trabalho é diferente do que ela encontrou no início da carreira – mas ainda tem muito a evoluir.

Forbes: Em 2022, você lançou a autobiografia “Sou Danielle: como me tornei a primeira executiva trans do Brasil”. Então, como você se tornou a primeira executiva trans do Brasil?

Daniele Torres: Me tornar a primeira executiva trans do país nunca foi uma meta, muito pelo contrário, foi algo que é fruto de um conjunto de fatos, eventos e até coincidências. Eu tinha desenvolvido uma carreira de sucesso até um pouco antes da minha transição social de gênero. Estava ingressando num grupo executivo sênior, prestes a ser promovida a diretora e foi nesse momento que eu comuniquei a empresa que eu assumiria publicamente o meu gênero. E tudo o que eu construí na minha carreira executiva foi após essa transição. Agora, o que me levou a chegar ali, a assumir o meu gênero, foi o resultado de um transtorno de pânico que eu desenvolvi ao longo da vida, mas que atingiu o seu auge quando eu estava próxima aos meus 30 anos de idade. Isso aconteceu em 2015, há oito anos, e a transição de gênero não marcou a pessoa que eu sou, foi um fato relevante, mas que não definiu a minha carreira.

F: Quais as dificuldades e responsabilidades de ocupar esse lugar?

DT: Acho que as dificuldades se concentraram muito no começo da transição. Primeiro porque a discussão corporativa sobre pessoas transgênero era extremamente incipiente, não raro eu fui conhecida como a primeira executiva abertamente trans do nosso país. Então naquele momento foi muito difícil porque tinha muito diálogo a se realizar. Existe um caminho enorme para a compreensão da pessoa trans hoje, mas naquele momento era muito maior. Então eu tive que realizar muito desse diálogo, fiz muitas palestras para que as pessoas compreendessem que o fato de eu ser trans não mudava a profissional que eu era, o histórico que eu havia construído. Tive que lidar não só com a minha transição, mas com a transição de todos que estavam à minha volta. A responsabilidade continuou por um pouco mais de tempo, porque eu
acho que uma grande curiosidade que havia ao meu respeito era se eu conseguiria continuar a desenvolver a minha carreira do ponto de vista executivo técnico. Porque muitas pessoas até de uma maneira um tanto transfóbica colocavam que aquele era o fim da minha carreira. E eu tinha uma responsabilidade muito grande de provar o contrário, então me candidatei para posições fora do país, em Nova York, e trabalhei lá por alguns anos.  

F: Quais desafios você enfrentou pessoal e profissionalmente para chegar até aqui?

DT: Os desafios profissionais são em grande parte comuns ao que eu ouço de muitas colegas executivas cisgênero. O sentimento de uma necessidade de se provar muito mais, de nem sempre ser ouvida, de ter que mostrar uma dedicação enorme para atingir um reconhecimento que talvez esteja só na média. Esse sentimento sempre foi muito forte ao longo de toda a minha carreira, não dá pra separar minha carreira entre masculina e feminina. Atualmente, um grande desafio para mim e acho que para qualquer executivo ou executiva da minha geração é manter-se atualizado, porque o mundo está num processo de aceleração muito grande. Não raro eu fui buscar estudos na área de inteligência artificial, sou mestranda na Georgia Institute of Technology em inteligência artificial. Já no âmbito pessoal, os desafios foram quase intransponíveis, a minha vida esteve em risco mesmo pela enorme quantidade de violências que eu capturei desse social. Comparada a muitas pessoas trans, a minha vida foi uma vida de privilégio, mas eu não deixei de experimentar a violência especialmente psicológica que leva ao nosso adoecimento. 

F: O que você gostaria de ter ouvido no início da carreira que teria facilitado a sua jornada?

DT: No começo da minha carreira eu gostaria de ter ouvido que tudo bem ser diferente. Só que essa é uma frase que não era possível eu ter ouvido porque no início dos anos 2000 não era tudo bem ser diferente. Muitos de nós, eu inclusive, tivemos que buscar uma conformidade muito grande para trabalhar no mercado corporativo, especialmente na área financeira. Eu gostaria de ter contado com apoio psicológico ou mesmo orientação de carreira que me levassem a uma reflexão de que talvez eu devesse buscar outra forma de sucesso, em outras áreas e inclusive em outros países que naquele momento estavam muito adiantados em relação à pauta transgênero.

F: E o que você diria para outras mulheres e homens trans que querem seguir carreira corporativa?

DT: Para homens e mulheres trans que estão ingressando no mercado corporativo ou já estão se desenvolvendo, o que eu sempre digo é: não esperem que será um ambiente fácil. É só a gente ver o quanto ainda falta para a nossa inclusão plena na sociedade em termos de direitos básicos. Você vai encontrar barreiras, não tem como dizer que não, mas uma vez isso colocado, eu acho fundamental encontrar uma organização que tenha um match grande com os seus valores, que acredita na diversidade e que promova práticas para tanto. Porque é difícil esperar uma transformação plena de um local. A própria empresa em que eu trabalhei toda a minha carreira sempre teve a diversidade como um valor muito forte, senão o tivesse, provavelmente eu não estaria aqui e a minha história teria sido mais um final triste como tantas outras.
Chega um momento da nossa vida profissional que a gente adquire um repertório próprio, e ser ou não transgênero toma uma dimensão muito pequena na vida, que é o meu caso. Isso já não é determinante no meu dia a dia. Mas para chegar nesse caminho, numa sociedade que ainda é tão excludente como a nossa, é uma jornada longa e a gente vai depender em algum momento de trabalhar em um ambiente que nos propicie aquilo que a gente mais quer, que é ser enxergado pelo nosso mérito, pela nossa competência, e ser avaliado dentro de situações equitativas e que nada tenham a ver com o nosso gênero, mas sim com quem somos.

F: Muitas empresas hoje buscam trazer talentos diversos. Você enxerga um ambiente diferente do que encontrou no início da carreira?

DT: O ambiente é completamente diferente, não tenho nem palavras para descrever a diferença. Não é mais incomum a gente ter pessoas diversas integrando as organizações nas categorias “de base”, pessoas que estão iniciando suas carreiras em posições mais júnior, e à medida que a gente vai subindo para a liderança está se tornando mais comum. Agora o que é sempre importante a gente ter em mente é o quanto existe pela frente, porque pode até ser que esteja melhor, mas está muito longe do ideal, os esforços de inclusão e diversidade estão somente começando.

F: No Brasil, apenas 4% da população LGBTQIA+ ocupa vagas no mercado formal de trabalho. O que falta para de fato inserir essas pessoas, e especialmente pessoas trans? 

DT: A inclusão da pessoa trans vai além da inclusão no âmbito corporativo. É uma população que ainda discute a integração de direitos humanos básicos. Reflita tudo isso ao longo da vida escolar da pessoa, do âmbito de formação acadêmica, como se dão as relações familiares das pessoas trans. E aí chega o momento de ingressar numa organização, como a gente vai falar de uma competição em igualdade de alguém que precisou enfrentar um universo completamente distinto em termos de direitos humanos? Atuar em prol da inclusão da pessoa trans no mercado de trabalho vai exigir toda uma reflexão da própria inclusão dessa pessoa no social. É algo urgente e que diz respeito a todos nós, e não só a um grupo. 

F: Quais os benefícios de construir carreira numa mesma empresa, como você fez?

DT: Acho que o benefício principal é a gente ser bastante conhecida. Ao longo de muitos anos você adquire muitos dos valores da organização e lida com o território que lhe é familiar. Ao mesmo tempo, em uma empresa do âmbito e dimensão como uma KPMG, as oportunidades são plenas. Eu trabalhei no Brasil, em São Paulo, em Nova York, tive muita participação em Londres também. Você acaba trabalhando em diferentes culturas, realidades, práticas de trabalho e isso agrega muito para a sua carreira. Eu sempre me senti muito desafiada ao longo da minha carreira no sentido de aprender, agregar, começar de novo e experimentar novas realidades. Então uma empresa que oferece esse universo de oportunidades acaba beneficiando aqueles que desenvolvem uma carreira de longo prazo.

F: Você é sócia de uma das maiores consultorias do mundo, tem quatro pós-graduações e é também maquiadora. Como você enxerga a relação entre o pessoal e o profissional na sua vida?

DT: Era muito difícil para mim ser uma pessoa no trabalho e uma pessoa na vida pessoal – não raro isso acarretou no meu adoecimento no final dos 20 anos. Eu acho que a gente é uma pessoa só e isso está ficando cada vez mais claro para todo mundo. O gerenciamento de tempo é algo complexo e envolve muita disciplina. Eu, pessoalmente, gosto muito de fazer atividade física, costumo ir antes do trabalho e à noite também. Muitas vezes me perguntam, ‘qual é o segredo de gerenciar esses dois universos de uma forma exitosa?’, e eu falo que envolve a disciplina de determinar aquilo que você quer fazer e lutar por isso, porque sempre vai existir um caminho mais fácil.

(FONTE: https://forbes.com.br/carreira/2023/01 – CARREIRA/ por Fernanda de Almeida – 29 de janeiro de 2023)

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