Emiliano Di Cavalcanti, um dos principais pintores do modernismo brasileiro

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Di Cavalcanti: um pedaço de Brasil e um temperamento singular

“Sou um gênio, um velho, uma glória nacional. Não me aborreçam.”

Emiliano Di Cavalcanti (Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1897 – Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1976), um dos principais pintores do modernismo brasileiro.

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo (1897-1976), um dos principais pintores do modernismo brasileiro. Enfrentou o dia-a-dia: com garra e força. As mesmas que o transformaram, em exatamente sessenta anos de carreira, numa espécie de protótipo de pintor brasileiro por excelência, não só pela obra como também pelo comportamento pessoal.

Eterno Cantor – Em termos de um público mais amplo, Di Cavalcanti se tornou inevitavelmente associado a dois dados, um, histórico (a Semana de Arte Moderna de 1922), outro, etnográfico-pictórico: as mulatas de seus quadros. No caso da Semana, foi efetivamente um de seus maiores artífices, senão o formulador da própria ideia. Numa reunião em casa de Paulo Prado, um dos mecenas da época, dona Marinete, sua esposa francesa, lembrara uma Semana Modernista que andavam realizando em Deauville. Di – carioca, ligado aos grupos renovadores do Rio de Janeiro, mas ex-estudante em São Paulo e uma espécie de pombo-correio cultural entre as duas cidades – pegou a deixa: “Por que não fazemos uma aqui?” E foi, sem dúvida, o principal artista plástico a tomar parte no evento, oficialmente datado como o nascimento da arte contemporânea no Brasil.

Já no caso das mulatas, ocorre uma excessiva generalização. Di as retratou obsessivamente, não há dúvida, sobretudo na segunda metade da carreira, quando já se transformara obrigatoriamente no “pintor das mulatas”, e resolvia com total facilidade os poucos problemas propostos pelo tema. Mas sua obra compreende vários outros: raras paisagens, algumas vistas de morros com personagens, natureza-mortas festivamente tropicais, belíssimas marinhas e pescadores, muitas cenas populares de dança, samba e carnaval. E sobretudo mulheres, mulatas ou não. Elas estão quase sempre presentes nos quadros desse eterno e apaixonado cantor da beleza feminina, cuja sensualidade seria mais um dos traços a torná-lo prototipicamente brasileiro.

Marxismo emotivo – Nascido a 6 de setembro de 1897, num casarão da rua Riachuelo pertencente a seu tio José do Patrocínio, Di teve uma infância rica, do ponto de vista cultural. Ouvia-se música na casa, discutiam-se ideias libertárias, liam-se versos de Victor Hugo ou Castro Alves. Foi um menino bem dotado (sabia ler aos 5 anos) e de múltiplo talento, chegando a estudar piano. Na adolescência, começou a desenhar, como autodidata, e logo se profissionalizou, como caricaturista da revista Fon-Fon. Pouco depois de sua primeira exposição (num salão de humor, em 1926), decidiu estudar Direito em São Paulo, interrompendo logo o curso. Data já dessa época sua capacidade de ser amigo de todos e brilhar indiferentemente em salões e cabarés. No Rio de Janeiro, subia o morro para visitar os sambistas Donga, Pixinguinha e Sinhô. Em São Paulo, ligou-se à alta burguesia do café – Paulo Prado, dona Olívia Guedes Penteado – e a intelectuais da elite, como Guilherme de Almeida e Júlio de Mesquita Filho.

Em 1924, colhidos os frutos da Semana da Arte, viajou pela primeira vez a Paris, elegendo a cultura francesa como sua fonte alternativa. Tornou-se de esquerda, embora reconhecesse, mais tarde, que seu marxismo “era mais um sentimento humano e emotivo que partidário”. Isso se torna mais claro comparando-se as atitudes e as obras de Di Cavalcanti e Portinari – outro pintor politizado. Enquanto Portinari, em sua época de maior glória oficial, ousaria responder a um escandalizado duque de Windsor não saber pintar rosas mas apenas miséria – fixando-se em seus retirantes esquálidos -, Di preferiu mostrar seu amor ao povo retratando mestiças opulentas. E afirmaria mais tarde: “Como pintar dramas e tragédias no Rio de Janeiro? A fome e a miséria brasileiras não tem nenhuma tragédia porque ainda são submissas”. Bastante características foram, também, sua maneira incuravelmente boêmia de viver, sua alegria de estar no mundo, sua ironia próxima à sátira. “Sensual, mulherengo, bom prato, bom copo – e um papo fabuloso. Positivamente, nunca seria um juiz, um bispo, um casto, mas saberia respeitá-los”, resume, com brilho, o crítico Jayme Maurício. O poeta Vinicius de Moraes, por sua vez, escreveu outras definições: “A imagem da antifossa”, “o antídoto maior contra a chatice”. O mesmo Vinicius registrou para a História um episódio memorável. Certo dia, há mais de vinte anos – quando Di deslizava, portanto, na curva perigosa dos 60 -, uma amiga comum foi visitá-lo. Ao entrar de surpresa, ouviu um vigoroso ruído de água espadanando, e descobriu Di alegremente mergulhando em sua banheira, jogando água para cima como uma criança, e aos gritos: “Di Cavalcanti! Di Cavalcanti!” Era sua maneira de curtir uma recente dor-de-cotovelo.

Bússola e fonte – Esta, a imagem do homem. E a obra? Do memso modo que Tarsila, e ao contrário de Alfredo Volpi ou Rubem Valentim (alguns de seus companheiros presentes ou futuros na História), o maior mérito de Di como pintor parece ter sido não a invenção de uma linguagem plástica pessoal – mas sim a transposição, sem pastiche, de linguagens existentes. Utilizou-as habilmente (a palavra não é pejorativa) em função de assuntos e tipos humanos nacionais. Impossível não ver, ao longo de sua muito prolífera carreira, reflexos diretos do que se passava na arte européia, e que ele desde cedo conheceu.

As caricaturas e os desenhos de figuras femininas dos primeiros tempos, por exemplo, evocam os traços maneiristas do art-noveau ou um clima decadentista do fim de siècle parisiense que o artista – um temperamento também cosmopolita – não tentava evitar. Já nas pinturas dos anos 30, quando o cubismo deixara de ser uma vanguarda e se transformara em estilo consagrado, Di admitiu suas sugestões, mesmo para retratar morros, sambistas e mulheres. Surge, em outros momentos – inclusive por motivos de convergência política -, um certo parentesco com o muralismo dos grandes mexicanos, como Orozco e Rivera. Nos anos 40, finalmente – sem a menor sombra de dúvida o período culminante da carreira -, Picasso se transformou em sua bússulo e fonte, sem servilismo, mas também sem a menor preocupação em disfarçar.

Ora o Picasso das formas capitosas, arredondadas, Greco-renascentistas, da fase neoclássica (surgida na década de 20 e trinfante na segunda metade da década de 30), e refletido por Di em obras-primas das mais incontestáveis, como “O Nascimento de Vênus” (1940). Ora o Picasso inventor do duplo retrato superposto, de frente e de perfil, que Di não hesita em empregar mesmo num trabalho tão brasileirista quanto “Nossa Senhora da Guia” (1945). O estilo, após os meados dos anos 50, se torna de um ecletismo especificamente di-cavalcantiano, cheio de idas e vindas e – como observa o crítico Roberto Pontual – “com a perda de sua melhor força, diluindo-se em repetições de fórmulas que quase nada lhe acrescentaram de bom”.

Inacabamentos – Essa questão do julgamento qualitativo de um pintor como Di Cavalcanti, aliás, é bem complexa – e divide posições. Há quem considere impossível ver fragmentariamente um conjunto de obra tão maciço: “A arte de Di não envelheceu e não envelhecerá nunca. Com o passar do tempo, seu trabalho apenas se enriqueceu”, opina o crítico Clarival Valladares, respeitado autor de um livro sobre o artista. Parece absurdo negar, contudo, a óbvia queda da factura, do nível técnico, mesmo do desenho e do colorido, o que poderia resultar de pressa no produzir, e redundou num tipo de quadro (incomodamente frequente nos últimos dez anos) em que o artista passava a vender sobretudo a assinatura, tornada ilustre.

Em defesa de Di manifesta-se então Jayme Maurício: “Há quem veja a qualidade no apoio artesanal, na limpeza, no bom acabamento, na harmonia das estruturas. Eu acredito mais na noção de qualidade que resulta na mutação. Nesse sentido, a qualidade da obra de Di é total, inclusive quando se permite a liberdade de ser inacabada. Pois permanece o fruto de um temperamento absolutamente singular no caldeirão cultural brasileiro”.

Fica explícita, contudo, na defesa, a admissão de inacabamentos – isto é, incorreções formais nas quais escorregou o velho Di, outrora pintor tão magistral. A que atribuí-las? Ao sucesso de mercado, onde ele mantinha seus recordes de preço? É possível. “Quando conheci Di Cavalcanti, ele já tinha 55 anos, morava num quarto-e-sala em Copacabana e vendia com dificuldade, pois tudo era Portinari. Vi, mais tarde, quando ele, para viver – ou para dar de presente, graças a Deus -, trabalhou em joias para Lucien. O mercado chegou para Di Cavalcanti há mais de dez anos, quando ele já se habituara a pintar só quando estava ‘em estado de criação’. E o mercado deixou o patriarca num terrível mau humor.” A esse mau humor específico pode-se somar, sem dúvida, o peso da idade: “O fato biológico há de influir à sua maneira no fato estético”, lembra Pontual.

Um criador – Independentemente dele, entretanto, é certo que Di Cavalcanti, mesmo no fim, enquanto pintou, o fez sempre com prazer. Era seu momento de privar com o eterno modelo, a mulata, talvez de se entregar ao chiste, ao erotismo outonal, de retomar os instrumentos de trabalho de toda a vida e de exercer, de pleno, sua missão sobre a Terra. Pois o intelectualizado, o lúcido, o politizado, o irônico, o amargo, o risonho, o brincalhão, o calidoscópico Di Cavalcanti alimentava para uso próprio um conceito romântico de artista: “O artista é feito a Graça, nasce com Ela. Por isso, tudo o que existe no artista é imponderável. Até sua própria criação lhe foge das mãos, é inconsciente. A única salvação possível, para ele, é sentir intensamente a realidade e enfornhar-se nela. Se isso não se dá, ele pode ser um místico ou um executor, mas nunca um criador”.

Não há dúvida de que a História lhe assegurará esse status tão prezado. Terá Di Cavalcanti sido o gênio que se proclamou em 1967? Por enquanto, a tendência geral é concordar. O tempo pode ou não amenizar o entusiasmo. Mas nunca apagará a certeza de que com Di Cavalcanti morreu um pedaço do Brasil – o pedaço antropofágico, desorganizadamente criador, indisciplinado e produtivo, nascido, mais ou menos, com o ideário de Oswald de Andrade. Tal Brasil nunca mais será visto, daqui para a frente, com os mesmos olhos buliçosos, concupiscentes, o mesmo langor tropical, nem será retratado por pequenas mãos gorduchas e sardentas, invulgarmente dotadas pela Graça.

Apesar do triunfo, de seus cansaços e incômodos, Di Cavalcanti terá morrido em paz consigo próprio e com a vida? Não chegou, é verdade, a realizar seu último sonho, confidenciado há cinco anos, em francês, quando sua cirrose se declarou irreversível: voltar para Paris e mourir dans les beaux lits de France – leitos que certamente frequentou em outros tempos, com sua peculiar vitalidade. Também já não pintava há cinco meses, quando se operou, pela segunda vez. E se queixava da solidão que o estado de saúde lhe impunha, pois já não tinha condições de conversar com os amigos habituais.

Contudo, duas semanas antes de morrer (dia 26 de outubro, no Rio de Janeiro, de insuficiência hepática e renal), permitiu a visita de repórteres, e os acolheu com um sorriso aberto, embora triste. E dizia: “Fotografem, fotografem”. Como se o momento fosse de triunfo e ele estivesse recebendo um grande prêmio, ou tomando um pileque com seu grupo, ou ainda abraçado a uma das belas mulatas – como a modelo Marina Montini – que povoaram seu ateliê, suas telas e sua existência.
(Fonte: Veja, 3 de novembro, 1976 – Edição 426 – ARTE/ Por Olívio Tavares de Araújo – Pág; 94/95/96/97)

(Fonte: Zero Hora – Almanaque Gaúcho/ Por Olyr Zavaschi – Hoje na História – 26 de outubro de 2010 – Pág; 46)

 

 

 

 

 

 

 

A grandeza popular de Di Cavalcanti

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo produziu uma obra tão caudalosa quanto irregular.

(Fonte: Revista Veja, 17 de setembro de 1997 – ANO 30 – Nº 37 – Edição 1513 – Arte / Por Marcelo Camacho e Angela Pimenta – Pág: 136/139)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Di Cavalcanti

Rio de Janeiro, RJ, 1897
Rio de Janeiro, RJ, 1976

“Era uma profunda e doida vida de artista a minha vida naqueles anos que precederam a Revolução de 30. Vida de artista possuído de uma grande inquietação humana dos problemas sociais.”
Di Cavalcanti, 1971
Após ter permanecido por dois anos em Paris, onde entrou em contato com os principais vanguardistas europeus e com a efervescência política do momento, retornou ao Brasil em 1925, marcado definitivamente por uma temática voltada ao social.

O ano de 1928 foi um marco; foi onde Di “oficializou” a tendência afetiva que o inclinava às questões sociais:
“Abri o portão de uma velha casa de cômodos… Ali morava preto Salvador. Tinha ido à Rússia. Éramos umas quinze pessoas ouvindo: operários gráficos, carpinteiros, duas mulheres… E foi naquela noite que assinei meu nome no Partido Comunista”. Di Cavalcanti.

Durante a década de 30 a obra de Di, por um lado se dedica à denúncia do Brasil da corrupção e da desordem política, e por outro, ao cortejamento dos aspectos sociais do país. A primeira vertente está representada essencialmente em seus desenhos, e a segunda, em suas pinturas.

Em 1931, participou do Salão Revolucionário da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde foram expostas obras tanto de acadêmicos como modernos. Em 1932, ao lado de Flávio de Carvalho, Antônio Gomide e Carlos Prado fundou o Clube dos Artistas Modernos, associação positivamente comprometida com as questões tangente ao homem, à arte e à sociedade. Em 1933 participa da 2 ª Exposição de Arte Moderna da SPAM. Entre 1935 e 1940 morou na Europa com sua então companheira Noêmia Mourão. Apesar da ausência no país, seu trabalho figurou no 2 º (1938) e 3 º Salão de Maio (1939).

Houve quem denunciasse o conteúdo social de suas pinturas como estático e a-político, o que de fato constitui uma grande injustiça, uma crítica que perpassa o viés anacrônico e não consegue reconhecer em Di, o que Mário Pedrosa muito bem identificou: “Sendo o mais brasileiro dos artistas, foi o primeiro a sentir que entre o interior, a roça, o sertão e a avenida, o “centro civilizado” havia uma zona de mediação -o subúrbio. No subúrbio vive o verdadeiro autóctone da grande cidade. Já não é caipira mas ainda não é cosmopolita. O que já se passa é autêntico, de origem e de sensibilidade…” Além deste conteúdo pioneiro nas artes plásticas, ainda reside em Di o lirismo de representar as classes populares através de sua dignidade e beleza e não de sua miséria.

Em 1951 participa como artista convidado da primeira Bienal de São Paulo. Participa de outras bienais, inclusive estrangeiras, ganhando medalha de ouro em 1960 na II Bienal Interamericana do México. Nesta década, Di se proclama um defensor fervoroso da figuração, tecendo críticas ferozes aos abstracionismos.

Deixou um legado, que é lírico e crítico, nas técnicas distintas. Escrevera certa vez: “Fui de esquerda, mas meu marxismo era mais um sentimento humano e emotivo do que partidário”. Mas certo é que esse engajamento, ainda que no plano da idealidade, refletiu-se com riqueza no seu trabalho.

Vanessa S. Machado
(bolsista IC / FAPESP)
Profa. Dra. Daisy Peccinini
(coordenadora do projeto)

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