Realizou o primeiro faroeste em que o índio viveu dramas humanos iguais ao dos conquistadores branco

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Realizou o primeiro faroeste em que o índio viveu dramas humanos iguais aos dos conquistadores brancos

John Ford: agora já não há mais poetas para filmar o faroeste

John Ford (Cape Elizabeth, Estado do Maine, na costa leste dos Estados Unidos, 1.° de fevereiro de 1895 – 1973), figura mítica, talvez não haja, no mundo, um cineasta cuja vida e obra estejam tão imersas num ambiente de lendas. O homem que consolidou o western. O inventor do Monument Valley. O grande narrador da história americana. O maior poeta da era de ouro de Hollywood. O polêmico e controverso conservador. O sujeito que, avesso a entrevistas, deixou que todo um folclore fosse construído a respeito de si, definindo-se sempre da forma mais simples (e enganosa) possível: “Meu nome é John Ford. Eu faço westerns.” John Ford recupera, enfim, o elemento que deu origem a toda uma lenda: seus filmes. Através de um vasto panorama de sua produção, composto dos mais diversos gêneros e períodos, todos poderemos atravessar a barreira do mito e experimentar o vigor e a beleza que o cinema de Ford conserva até hoje. Dentre as inúmeras lendas, verdadeiras ou não, que se impõem sobre o diretor, uma, no entanto, parece-nos especialmente acurada: ao ver sua obra em conjunto, entregando-se ao universo ao mesmo tempo primitivo e sofisticado que Ford constrói, é impossível não se tornar um verdadeiro fordiano.

Sua própria idade se perde em obscuras dúvidas como as origens de todos os mocinhos nos clássicos westerns. Depois d emais de cem filmes, realizados em 58 anos de cinema, “o velho irlandês sentimental”, como o próprio John Ford se autodefenia, sonhava filmar uma versão da “Odisséia” de Homero tendo por cenário as pradarias do faroeste americano – certamente com John Wayne no papel de Ulisses e Maureen O”Hara no de Penélope. O projeto, arquitetado em silêncio, nunca realizado, mas confessado mais de uma vez por um Ford sempre arredio às entrevistas, talvez tenha sido somente mais um mito do diretor que acumulou a mais completa – e sem dúvida mais bela – das mitologias do cinema.

Sua própria idade se perde em obscuras dúvidas como as origens de todos os mocinhos nos clássicos westerns. A certidão oficial registra seu nascimento a 1.° de fevereiro de 1895, em Cape Elizabeth, Estado do Maine, na costa leste dos Estados Unidos. Quase todos seus biógrafos, entre eles os dois principais – Jean Mitry e Peter Bogdanovich – aceitam essa data. Mas John Ford mesmo a contesta. Numa entrevista concedida em Paris, em 1968, ele afirmou: “Tenho mais de 80 anos”. Frase que reforça a tese de outros especialistas que o querem nascido na Irlanda antes de 1895.

O certo é que Sean Aloysius O”Feeney (seu nome de batismo) era o 13.° filho de uma família de imigrantes irlandeses que trocou a Europa pela América. E que, depois de trabalhar numa fábrica de calçados, atravessou o país para descobrir a nascente Eldorado do cinema: Hollywood. A partir disso, novamente a certeza histórica é menos rigorosa do que a força das lendas. Quantos filmes fez John Ford? Qual foi seu primeiro trabalho?

Aumento de salário – Segundo Bogdanovich, a filmografia fordiana começa com um western: “The Tornado”, realizado em 1917. Um filme curto, contando a história de um cowboy que salva a filha de um banqueiro de uma quadrilha e usa a recompensa para trazer sua mãe irlandesa aos Estados Unidos. Talvez uma história ingênua demais para ser notada por Jean Mitry em seus escritos, que relatam 125 filmes realizados por Ford desde 1917, quando ele se empregou como diretor da Universal, até 1966, quando realizou seu último filme para a Warner Bros.

De fato, já se disse que catologar sua obra completa é quase tão complicado quanto fazê-lo com a musicografia de Bach ou Mozart. E a razão dessa dificuldade está no tempo em que Ford trabalhou para a Universal, de 1917 a 1922. Contratado exclusivamente para dirigir os westerns de Harry Carey (1878-1948), um dos nascentes mocinhos do gênero, ele trabalhou intensamente. E em apenas cinco anos realizou pelo menos quarenta filmes. Um deles – “Three Mounted Men”, 1919 – pode ser considerado seu primeiro sucesso. Pelo menos lhe garantiu um substancial aumento de salário. Ford confessou que se equivocou e fez um filme de 45 minutos – a série, normalmente, tinha 30. O que desesperou os produtores. “Queriam mutilar o meu filme, mas eu provei a eles que não era preciso cortar nada.” John Ford estava certo – mesmo sendo um inexperiente diretor de 24 anos. O filme fez tanto sucesso que Harry Carey ganhou novo contrato. E o jovem Ford, que ganhava apenas 25 dólares por semana, foi aumentado para 65. Cinquenta anos depois ele afirmaria que, na Universal, definiu sua preferência absoluta pelos westerns, gênero que formaria o foco central de sua brilhante carreira.

Rude e empoeirada – Naquela época já havia substituído seu nome de batismo pelo que o tornaria famoso: John Ford, em homenagen a um dramaturgo elizabetano (1586-1639). Essa estranha declaração de amor ao teatro clássico num cineasta que dirigia seus olhares, sua câmara e suas histórias para a empoeirada pradaria americana não foi ocasional. Se é certo, como diz Joh Wayne, que Ford era um poeta, parece ainda mais verdadeiro que ele tenha descoberto a poesia do oeste americano. Seus westerns, sempre centrados nos dramas individuais que surgem num grupo acossado por um perigo iminente ou pela morte violenta, foram construções ao mesmo tempo rudes e emotivas capazes de sugerir, às vezes, até a inspiração nas situações dramáticas de Shakespeare. Em várias de suas histórias, inclusive, Ford fez questão de citar o poeta de “Romeu e Julieta”. Em “My Darling Clementine” (“Paixão dos Fortes”, 1946), por exemplo, um ator decadente (Alan Mowbray) tenta recitar o monólogo de “Hamlet”. Não consegue, e a declamação acaba concluída por Doc Holliday (Victor Mature).

Um leve humor – O western, enfim, representa a síntese da obra de John Ford. Ele deu ao gênero a dignidade de uma grande narrativa dramática. Inventou os maravilhosos grandes planos descritivos das pradarias americanas, nas quais uma caravana, um regimento ou uma diligência deslizavam sob a espreita de um perigo mortal – geralmente os índios. E em 1939, com “Stagecoach” (“No Tempo das Diligências”), chegou ao seu filme exemplar, o tema da redenção de um pistoleiro (Ringo Kid / John Wayne), uma prostituta (Dallas / Claire Trevor) e um jogador (Hatfield / John Carradine), ao enfrentar um ataque dos índios. O cavalheirismo dos gestos, a poética dos olhares, além de um leve humor, foram desenvolvidos, em “Stagecoach”, até os limites da perfeição.

Com palmadas – A grandeza e a dignidade do cenário, habilmente mostrado em tomadas panorâmicas e longos travellings, também fizeram parte fundamental da obra de John Ford. E o elemento principal dos ambientes ásperos que ele descreveu foi sem dúvida o índio americano. “Eu os amo porque são honestos”, costumava dizer o diretor. Ele mesmo admitiu que nem Custer matou mais índios do que ele – no cinema, é óbvio. Alguns críticos tentaram ver, através desses morticínios, uma espécie de racismo fordiano. Ford, porém, imaginava exatamente o contrário. Queria lutas nas quais os adversários estivessem à mesma altura para que o combate fosse realmente respeitável e a vitória elogiada.

O árduo aprendizado das coisas fundamentais da vida foi outro tema constante de sua obra. Em quase todos os seus filmes, jovens afoitos e inexperientes pagam com fracassos as informações que recebem dos homens maduros. “The Horse Soldiers” (“Marcha dos Heróis”, 1959) é a versão mais bem humorada desse confronto, quando o coronel ianque (John Wayne) mostra, com palmadas, algumas regras da guerra para os cadetes imberbes convocados para defender uma dama sulista (Constance Towers). Em “Rio Grande” (“Rio Bravo”, 1950), a lição das virtudes guerreiras passa de pai (John Wayne) para filho (Claude Jarman Jr.), sob os olhares da mãe (Maureen O”Hara).

Dramas humanos – No entanto, embora o western quase se confunda com John Ford, suas mais importantes palmas cinematográficas foram conquistadas longe dos índios, cavalarianos ou cowboys. “The Informer” (“O Delator”, 1935, com Victor McLaglen), “The Grapes of Wrath” (“As Vinhas da Ira”, 1940, com Henry Fonda), “How Green Was My Yalley” (“Como Era Verde o Meu Vale”, 1941, com Walter Pidgeon e Maureen O”Hara) lhe garantiram o título de o diretor americano mais premiado com o Oscar: quatro vezes. Nnehum desses filmes, no entanto, foi tão John Ford quanto os westerns. Todos eles, no fundo, não passaram de extensões, em outros cenários, daquilo que ele aprendeu a amar e a filmar na pradaria: as árduas aventuras dos frágeis humanos.

Assim, quase ao final de sua carreira, ainda uma vez levou ele sua caravana cinematográfica para o seu tradicional cenário. E realizou o primeiro faroeste em que o índio foi apresentado vivendo dramas humanos iguais aos dos conquistadores brancos: “Cheyenne Autumn” (“Crepúsculo de uma Raça”, 1964, com Richard Widmark). A seguir, também crepuscular, fez seu último épico, uma história exclusivamente feminina: “Seven Women” (“Sete Mulheres”, 1966, com Patrícia Neal e Anne Bencroft).

Depois, já consumido por um câncer no pulmão, só ficou o projeto de voltar à pradaria navegando a história de Ulisses. E, finalmente, o silêncio. Já não há mais poetas filmando o oeste.

(Fonte: Veja, 12 de setembro, 1973 – Edição n° 262 – CINEMA – Pág; 120/121)

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