O primeiro western da história

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PRIMEIRO WESTERN DA HISTÓRIA

Ao apontar sua arma para a câmera há cem anos, o ator Justus D. Barnes tornava o público cativo de um gênero cinematográfico americano por excelência: o western. Estreado em 1º de dezembro de 1903, o filme “O Grande Roubo do Trem”, de Edwin S. Porter, é considerado o marco zero de um estilo cinematográfico que cristalizou no imaginário das platéias de todo o mundo a mitologia do Velho Oeste.
Western: o nascimento de uma nação. Aos cem anos, o gênero é a expressão mais perfeita do cinema e do imaginário americanos. O crítico francês André Bazin, padrinho da geração de diretores que levantou a nouvelle vague, era um entusiasta do cinema americano de gênero – o western, especificamente, chamava-lhe particularmente a atenção. Ao defini-lo como o “encontro de uma mitologia com um meio de expressão”, o intelectual buscou chamar a atenção para a posição central que o faroeste ocuparia no imaginário do povo americano.
Recriando (e inventando) a história da conquista do Oeste a partir de 1850, o cinema ajudava a estabelecer o nascimento simbólico da nação americana. E a mitologia de que fala Bazin é múltipla: as pradarias, os desertos rochosos, as paisagens selvagens onde um punhado de casas de madeira são o único e tênue gesto de civilização, povoadas por índios – eis o palco ideal para a encenação dos mitos fundantes de conquista, de civilização e de moralidade.
A primeira expressão cinematográfica desse mundo pioneiro – primeiramente cantado pelos minstrels, depois levado ao folhetim por autores como Ernest Haycox e James Warner Bellah – completou 100 anos neste mês: no dia 1º de dezembro de 1903, dois assaltantes renderam um operador de telégrafo, assaltaram um trem e protagonizaram o primeiro western da história. O Grande Roubo do Trem é um curta de 12 minutos, dirigido por Edwin S. Porter, adaptação de uma peça de 1897. O filme foi um sucesso de público, inovador em pelo menos dois aspectos: a seqüência da perseguição a cavalo aos bandidos, a primeira tecnicamente perfeita e eletrizante do cinema americano, e a cena em que o chefe dos bandidos aponta o revólver para a câmera, ameaçando toda a audiência, um plano ao mesmo tempo sensacionalista e metalingüístico.
Faltava ainda, porém, uma figura fundamental: o herói. Inspirados em personagens históricos do Oeste (que ainda não era tão “Velho” assim) como os pistoleiros Jesse e Frank James, Doc Holliday e Billy the Kid e xerifes como Wyatt Earp, os estúdios de Hollywood investiram em figuras como Tom Mix, William S. Hart, Harry Carey, Will Rogers e Hopalong Cassidy, protagonistas de aventuras de curta-metragem e seriados que pouco tinham a ver com a realidade rude dos caubóis de verdade.
Somente a partir da década de 1930, com a chegada do cinema falado, é que o gênero ganha em complexidade temática e narrativa, buscando retratar com alguma verossimilhança os acontecimentos históricos do Oeste em filmes como Bandoleiro do Eldorado (1936), de William A Wellman, Aliança de Aço (1939), A Volta de Frank James (1939), de Fritz Lang, e No Tempo das Deligências (1939), de John Ford. Era uma espécie de preparação para a chegada da época de ouro do western nos anos 40, quando os grandes clássicos do estilo virão renovar e questionar as convenções.
Se a Grande Depressão de 1929 já obrigara os westerns enfocar mais seriamente as contingências sociais, as décadas seguintes empurrarão o estilo para zonas de incerteza, onde os suspeitos são sumariamente julgados e injustamente enforcados (Consciências Mortas, 1943, de William Wyler), os índios já não são tão malvados assim (Flechas de Fogo, 1950, de Delmer Daves), os pistoleiros têm problemas de consciência (Os Brutos Também Amam, 1953, de George Stevens) e o xerife tem medo dos vilões (Matar ou Morrer, 1952, de Fred Zinnemann). O bangue-bangue virara coisa séria.
Se a desmistificação do western começara a se desenhar na virada da década de 40 para 50, os anos 60 levaram a polivalência do gênero ao paroxismo, tornando-se veículo de ideologias e estéticas muitas vezes estranhas à realidade do Oeste. A época, porém, rendeu os grandes “westerns crepusculares”, de títulos amargos como Os Desajustados (1961) – estrelado por Marilyn Monroe e Clark Gable e definido por seu diretor, John Huston, como um filme “sobre uma sociedade em que os cachorros comem cavalos”. Refilmagem de Os Sete Samurais (1954), de Akira Kurosawa, Sete Homens e um Destino (1960), de John Sturges, reúne pistoleiros atormentados em defesa de um povoado mexicano. Mas o toque de recolher do faroeste, é Pistoleiros do Entardecer (1962), em que o diretor Sam Peckinpah coloca em cena dois velhos caubóis vivendo uma derradeira aventura, interpretados pelos veteranos Randolph Scott e Joel McCrea.
O fascínio da mitologia brutal do western estva longe do fim – e o mesmo Peckinpah filmará um balé de sangue, atraente e repulsivo: o hiperviolento Meu Ódio Será sua Herança (1969). Essa mistura de cinismo e violência será a tônica dos faroestes rodados na Itália e na Espanha, estrelados por personagens como Sartana, Ringo e Django e interpretados por atores como Mario Girotti (rebatizado Terence Hill) e Giuliano Gemma (também conhecido como Montgomery Wood). Alguns atores de segunda linha de Hollywood foram importados para emprestar “autenticidade” a esses spaghetti western – o mais célebre deles foi Clint Eastwood, protagonista da trilogia Por um Punhado de Dólares (1964), Por Alguns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966), do italiano Sergio Leone.
Será esse ícone do western quem, ironicamente, dará o tiro de misericórdia no filão, depois de participar de clássicos do estilo como O Estranho sem Nome (1973) e O Cavaleiro Solitário (1985). Em 1992, Eastwood levou às telas um roteiro de David Webb Peoples sobre um ex-pistoleiro de aluguel que abandona sua criação de porcos para cumprir um último trabalho. Em Os Imperdoáveis, William Munny é uma triste figura: envelhecido, chafurdando em uma pocilga miserável, não consegue sequer montar no cavalo direito. A encomenda – matar a dupla de vaqueiros que mutilaram uma prostituta – aos poucos desperta a besta adormecida, levando-o de volta aos tempos em que matava “mulheres e crianças, quase tudo o que anda ou rasteja”. O filme se encerra com um possuído Will Munny protagonizando um massacre dentro de um saloon e restaurando a lei da força em Big Whiskey, cidadezinha mantida pelo xerife Lityle Bill (Gene Hackman) entre a civilização e a barbárie.
Os Imperdoáveis apresenta-se como antípoda de outro clássico do western, O Homem que Matou o Facínora (1962). Se no filme de John Ford o progresso representado pelo advogado Ransom Stoddard (James Stewart) alia-se ao pragmatismo tosco do vaqueiro Tom Doniphon (John Wayne) para eliminar a anarquia (o bandoleiro Liberty Valance), e assim dominar o ambiente selvagem, na obra de Clint Eastwood não há lugar para idealismo: o Oeste de Os Imperdoáveis subordina os princípios iluministas a sua brutalidade inata, gerando uma sociedade deformada, misto de democracia censitária e sociabilidade apática. Ford mostrou como as coisas deveriam ser; Eastwood revelou como elas realmente são.
Se o gênero não figura mais como um filão em Hollywood, isso não significa que sua influência tenha se esvanecido.

QUINZE WESTERNS QUE DEVEM SER PROCURADOS
No Tempo das Diligências (1939), de John Ford
Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks
Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann.
Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens
Vera Cruz (1954), de Robert Aldrich
Rastros de Ódio (1956), de John Ford
Sete Homens e um Destino (1960), de John Sturges
O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford
Pistoleiros do Entardecer (1962), de Sam Peckinpah
Três Homens em Conflito (1966), de Sergio Leone
Era uma Vez no Oeste (1968), de Sergio Leone
Meu Ódio Será sua Herança (1969), de Sam Peckinpah
O Pequeno Grande Homem (1970), de Arthur Penn
Cavaleiro Solitário (1985), de Clint Eastwood
Os Imperdoáveis (1992), de Clint Eastwood

(Fonte: Jornal Zero Hora – Segundo Caderno – CULTURA – Por Roger Lerina – Sábado, 13 de outubro de 2003 – WESTERN – Pág. 1/4/5)

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