Lourenço Carlos Diaféria era um cronista em estado puro. E como um cronista nato, cortava fatias…

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Lourenço Carlos Diaféria (1933-2008) era um cronista em estado puro. E como um cronista nato, cortava fatias da vida e as dissecava em palavras. Diaféria falava do paulistano como um regionalista falaria de um sertanejo. Seu objeto de estudo era o homem comum, o cidadão anônimo. Tentaram fazer dele um mártir da “luta contra a ditadura militar”, mas esse foi apenas um desvio doloroso em sua vida. E descrever o que dele apreendia. Dito assim parece tão fácil.
Nasceu no paulistaníssimo bairro do Brás, em 23 de agosto de 1933. Com 23 anos, já era “preparador de matérias” na Folha da Manhã (depois da Folha de São Paulo). A hierarquia da redação, mas em 1964, aos 31 anos, descobriu que sabia fazer crônica. Não parou mais. Era um teórico de sua arte e ofício: “O cronista precisa fingir que faz crônicas por divertimento e que trabalha por não ter o que fazer”.
Sua carreira na Folha – e sua própria vida – sofreu uma trombada em 1º de setembro de 1977. Diaféria escreveu uma crônica chamada “Herói. Morto. Nós”. Sua inspiração foi um acidente ocorrido naquele ano no zoo de Brasília: um garoto caiu no poço das ariranhas, que atacaram o “invasor” com fúria incontrolável. Um sargento do Exército saltou no recinto, salvou o garoto e teve uma morte horrível no contra – ataque dos animais.
A crônica tinha o seguinte trecho: “Prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias. O Duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua”. Escreveu mais: “o povo urina nos heróis de pedestal”. Diaféria foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, sofreu processo e foi condenado a oito meses de prisão. Cumpriu em casa Em protesto, a Folha deixou o espaço da sua coluna em branco. Ele só seria inocentado em 1979.
A vida depois da folha incluiu crônicas para o Jornal da Tarde, o Diário Popular, o Diário do Grande ABC, quatro emissoras de rádio e a Rede Globo de televisão. Diaféria reuniu esse oceano de crônicas em um livro com nomes intrigantes como A Morte sem Colete (1983), A Longa Busca da Comodidade (1988), O Invisível Cavalo Voador (1990), e Papéis Íntimos de um Ex – Boy Assumido (1994).
Diaféria não se afastava de seu território: São Paulo, capital. “Não existe nada mais fácil para mim do que explicar o que vem a ser uma megalópole”, afirmou numa entrevista no ano de 200. “Megalópole é um molusco invertebrado com várias pastas. É uma espécie de gelatina que respira. (…) Megalópole é o mesmo que um x – tudo de pedra, aço, cimento e vidro com bastante mostarda e ketchup.”
Lourenço Diaféria se afastava das crônicas para escrever ensaios sobre suas grandes paixões. Católico praticante, escreveu um livro sobre dom Paulo Evaristo Arns (A Caminhada da luz). Descreveu seu bairro (em Brás: sotaque e Desmemórias). Participou de uma coletânea sobre a bela estação ferroviária central de São Paulo em Um Século de Luz. Era também corintiano fanático – e escreveu um livro em homenagem a seu time e ao futebol em geral.
Entrou em 2008 já com um sério problema cardíaco, mas sem parar de trabalhar. Lançou uma coletânea de crônicas chamada Mesmo a Noite sem Luar Tem Lua. No dia 16 de setembro, ás 22 horas, Lourenço Carlos Diaféria encontrou seu ponto final num infarto fulminante. Tinha 75 anos e deixou a mulher, Geiza, cinco filhos e três netos.
Não faltou humildade na visão que tinha da própria obra. “No jornal, a crônica é o intervalo do grande espetáculo. Não resolve nada”, escreveu ele no Jornal da Tarde. “Crônica só serve para dar um tempo de o sujeito ir lá fora, comprar amendoim, tomar café, espreguiçar-se. Talvez até seja uma inutilidade”. Ou talvez se torne presença quase obrigatória em livros escolares e de todos os níveis.

(Fonte: Época – Nº5501 – 1/12/2008 – Editora Globo – Por Dagomir Marquezi – Pág; 110)

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