João Cabral de Melo Neto, poeta, membro da Academia Brasileira de Letras e diplomata brasileiro

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Adeus sem rima

 

João Cabral de Melo Neto (Recife, 9 de janeiro de 1920 – Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1999), poeta pernambucano, membro da Academia Brasileira de Letras e diplomata brasileiro. Nasceu em Recife em 9 de janeiro de 1920. João Cabral, nunca é demais repetir, foi o último grande poeta brasileiro do século XX. O único que lhe fez sombra foi Carlos Drummond de Andrade. No panorama internacional, sua grandeza é também inegável. Só não foi reconhecida por causa da marginalidade em que vive a língua portuguesa. João Cabral costumava dizer que não tinha biografia, ou que esta se limitava às mudanças de endereço no cargo de diplomata que exerceu em boa parte da vida.

 

Mas é claro que há muito mais em sua história. Há as curiosidades, como um passado de futebolista ou uma enxaqueca que durou cinquenta anos (o que proporcionou uma ode à aspirina). Ou a vida amorosa, que passou por dois casamentos. Ou as amizades com nomes importantes da da arte brasileira e estrangeira, caso do pintor espanhol Joan Miró. Há também as inclinações políticas, que se sabia estarem à esquerda, embora o poeta sempre as tenha disfarçado. Há enfim material e até “segredos” à espera de um grande e aprofundado estudo biográfico. Desde que não se deixe em segundo plano a própria obra.

 

Talvez se possa dividir seu legado em três partes. Primeiro, ele desmitificou a poesia como fruto da inspiração e do “sentimento”. Esse trabalho já vinha sendo feito desde a Semana de Arte Moderna de 1922, passando depois por Bandeira e Drummond. Mas foi Cabral quem completou o ciclo. Inimigo declarado dos derramamentos e melosidades, ele fez versos secos, severamente controlados em seus efeitos. É uma poesia antilírica, no sentido de que nela a emoção é pensada, as imagens construídas e tudo que é supérfluo ou enfeitado de plumas, rejeitado. Como a melhor pintura moderna, uma de suas principais referências.

 

O segundo legado de Cabral está na poesia de cunho social, que reflete sobre o Brasil. A dureza em sua poesia não era apenas questão de gosto. Parecia-lhe a única maneira de retratar o cenário inóspito do Nordeste brasileiro, um de seus temas fundamentais. Há também algo de denúncia nesses textos. No entanto, eles jamais deslizam para o panfletário ou para a comiseração. Sua base é antes um humanismo exasperado, que, se por um lado acredita que “a medida do homem/ não é a morte mas a vida”, por outro se dá conta de que as pessoas precisam ser periodicamente despertadas para esse fato. “Falo somente para quem falo:/ quem padece sono de morto? e precisa um despertador/ acre, como o sol sobre o olho:/ que é quando o sol é estridente/ a contrapelo, imperioso/ e bate nas pálpebras como/ se bate numa porta a socos”, escreveu.

 

O terceiro aspecto importante do legado de João Cabral é sua preocupação em fazer uma poesia “participativa”, que busca a comunicação com o público. Ele refletiu profundamente sobre esse assunto. Um dos únicos ensaios críticos que deixou chama-se Da Função Moderna da Poesia, de 1954. Em seu centro, estão justamente pensamentos sobre “o abismo que separa o poeta de seu leitor” e a necessidade de encontrar formas para preencher esse vácuo. Alérm disso, em 1956, ao reunir seus poemas num volume chamado Duas Águas, o escritor redigiu uma nota para explicar o título. As “duas águas” correspondiam a “duas intenções”: de um lado, fazer textos para serem lidos em silêncio; de outro, “poemas para auditório, numa comunicação múltipla”. João Cabral (ao lado talvez de Vinicius de Moraes) foi um dos poucos poetas brasileiros a se preocupar com isso. Daí ter aproximado o verso da narrativa, em obras-primas como O Rio. Ou ter recuperado formas populares, em Auto do Frade e, é claro, Morte e Vida Severina, seu texto mais conhecido, musicado no palco por Chico Buarque de Holanda e utilizado pela TV.

 

De toda a rica herança de Cabral, só mesmo o rigor formal parece ter sido plenamente explorador pelos poetas que o sucederam. A poesia brasileira está hoje cheia de escritores competentes, virtuoses da palavra e do verso. A lição construtivista de Cabral, não há dúvida, foi prendida. Está viva na obra de um paulista como Regis Bonvicino ou de uma maranhense como Lu Menezes. São versos, porém, que não falam de nada, a não ser de eventos insiginificantes e objetos do cotidiano. Falsa magra, essa poesia esconde, por trás da silhueta sequinha, um barrigão que é quase parnasiano em seu fetiche pela forma. O viés social que João Cabral procurou imprimir à sua obra também ficou esquecido. Poucos se deixam assombrar por essa ideia, a de pensar o Brasil em rimas.

 

Finalmente, o o problema da comunicação poética foi sepultado. Os poetas concretos, justiça seja feita, o levaram em conta no início de seu movimento. Depois, perderam-se na erudição hermética. Na década de 70, a poesia marginal tentou restabelecer algum contato com o público. Mas logo veio a fenecer, sob o peso de sua mediocridade e inconsequência. Hoje, reina o nada. Os poetas brasileiros não falam a ninguém e parecem resignados com isso. Contentam-se em ser um mero “acúmulo de material rico em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito”. A frase é de João Cabral. Pertence a seu ensaio de 1954, mas descreve à perfeição o insosso cenário atual da poesia brasileira.

 

O poeta João Cabral costumava lidar com a morte no território em que mais se sentia à vontade: na própria poesia. Em seu livro Agrestes, de 1985, chegou a dedicar uma seção inteira ao tema. Sob a rubrica “A indesejada das gentes”, encontram-se textos em que o poeta olha a morte na cara, sem pestanejar, muitas vezes com um humor áspero. Mas a preocupação com o tema vinha de muito longe. Cabral era um obcecado pelo fim da própria existência. Culpava a educação católica por esse temor, que classificava de “primário e imbecil” e associava inclusive à ideia de inferno. Nos últimos anos, a cegueira o impediu de escrever, privando-o da principal arma para lidar com essa inquietação. Depois disso, ele ainda concluiu alguns poemas, como o que está reproduzido em anexo.

 

No cotidiano, enveredou pelo caminho das manias, das superstições. “Cabral jamais ficava deitado depois de acordar”, conta Marly de Oliveira, mulher do escritor. “Para ele, essa era uma atitude de quem está esperando o fim”. Ao mesmo tempo, Cabral, educado em colégio de padres maristas, foi buscar de volta os princípios católicos que tanto repudiara. “A oração voltou a ser um conforto, como em seus tempos de menino angustiado no Recife”, diz o poeta carioca Armando Freitas Filho, que foi amigo íntimo do escritor. Para Marly de Oliveira, a conversão seguiu as mesmas linhas. “Não seria absurdo afirmar que, com os anos, vieram à tona preocupações metafísicas que Cabral reprimiu, pois nao achava que fossem condizentes com sua poesia”, observa. João Cabral de Melo Neto morreu com 79 anos no dia 9 de outubro de 1999. De mãos dadas com a mulher, acabara de rezar um Pai-Nosso. João Cabral deixa um vazio insuperável na poesia brasileira.

Pedem-me um poema

Pedem-me um poema, um poema que seja inédito,
poema é coisa que se faz vendo,
como imaginar Picasso cego?

Um poema se faz vendo,
um poema se faz para a vista,
como fazer o poema ditado
sem vê-lo na folha inscrita?

Poema é composição,
mesmo da coisa vivida,
um poema é o que se arruma,
dentro da desarrumada vida.

Por exemplo, é como um rio,
por exemplo, um Capibaribe,
em suas margens domado
para chegar ao Recife,

onde com o Beberibe,
com o Tejipió, Jaboatão,
para fazer o Atlântico,
todos se juntam a mão.

Poema é coisa de ver,
é coisa sobre um espaço,
como se vê um Franz Weissman,
como não se ouve um quadrado.
(Fonte: Veja, 20 de outubro, 1999 – Edição 1620 –Ano 32 –N.º 42 – Memória/ Por Carlos Graieb/Lucila Soares – Pág; 206/207)
(Fonte: Correio do Povo – Cronologia/ Por Dirceu Chirivino – 9 de outubro de 2010 – Pág; 16)
(Fonte: Época – N° 511 – 3 de Março 2008 – Editora Globo – Saúde & Bem-Estar – David Cohen, Amauri Segalla, Kátia Mello e Martha Mendonça – Pág; 84 a 91)

 

 

 

 

 

 

 

 

João Cabral de Melo Neto nasceu na cidade do Recife, a 9 de janeiro de 1920, filho de Luís Antônio Cabral de Melo e de Carmen Carneiro Leão Cabral de Melo. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, tomou posse de sua cadeira em 6 de maio de 1969.

Parte da infância de João Cabral foi vivida em engenhos da família nos municípios de São Lourenço da Mata e de Moreno. Aos dez anos, com a família de regresso ao Recife, ingressou João Cabral no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Maristas, onde permanece até concluir o curso secundário. Em 1938 freqüentou o Café Lafayette, ponto de encontro de intelectuais que residiam no Recife.

Dois anos depois a família transferiu-se para o Rio de Janeiro mas a mudança definitiva só foi realizada em fins de 1942, ano em que publicara o seu primeiro livro de poemas – “Pedra do Sono”.

No Rio, depois de ter sido funcionário do DASP inscreveu-se, em 1945, no concurso para a carreira de diplomata. Daí por diante, já enquadrado no Itamarati, inicia uma larga peregrinação por diversos países, incluindo, até mesmo, a República africana do Senegal. Em 1984 é designado para o posto de cônsul-geral na cidade do Porto (Portugal). Em 1987 volta a residir no Rio de Janeiro.

A atividade literária acompanhou-o durante todos esses anos no exterior e no Brasil, o que lhe valeu ser contemplado com numerosos prêmios, entre os quais – Prêmio José de Anchieta, de poesia, do IV Centenário de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio da União Brasileira de Escritores, pelo livro “Crime na Calle Relator” (1988).

Em 1990 João Cabral de Melo Neto é aposentado no posto de Embaixador. A Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, publica, no ano de 1994, sua “Obra completa”.

A um importante trabalho de pesquisa histórico-documental, editado pelo Ministério das Relações Exteriores, deu João Cabral o título de “O Brasil no arquivo das Índias de Sevilha”. Com as comemorações programadas neste final do século, relacionadas com os feitos dos navegadores espanhóis e portugueses nos anos que antecederam ou se seguiram ao descobrimento da América, e, em particular ao do Brasil, a pesquisa de João Cabral assume valor inestimável para os historiadores dos feitos marítimos, praticados naquela época.

Da obra poética de João Cabral podemos mencionar, ao acaso, pela sua variedade, os seguintes títulos: “Pedro do sono”, 1942; “O engenheiro”, 1945; “O cão sem plumas”, 1950; “O rio”, 1954; “Quaderna”, 1960; “Poemas escolhidos”, 1963; “A educação pela pedra”, 1966; “Morte e vida severina e outros poemas em voz alta”, 1966; “Museu de tudo”, 1975; “A escola das facas”, 1980; “Agreste”, 1985; “Auto do frade”, 1986; “Crime na Calle Relator”, 1987; “Sevilla andando”, 1989.

Em prosa, além do livro de pesquisa histórica já citado, João Cabral publicou “Juan Miró”, 1952 e “Considerações sobre o poeta dormindo”, 1941.

Os “Cadernos de Literatura Brasileira”, notável publicação editada pelo Instituto Moreira Salles – dedicou seu Número I – março de 1996, ao poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, com selecionada colaboração de escritores brasileiros, portugueses e espanhóis e abundante material iconográfico.

Faleceu no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro, aos 79 anos.

*Discurso proferido por Arnaldo Niskier, no “Salão dos Poetas Românticos” na Academia Brasileira de Letras, onde foi velado o corpo de João Cabral de Melo Neto.

(Fonte: www.academia.org.br)

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