Elizabeth Bowen, autora de mais de duas dezenas de livros (romances, contos, ensaios), teve o “azar” de ter sido contemporânea de Virginia Woolf

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Elizabeth Bowen, a escritora que teve o “azar” de ter sido contemporânea de Virginia Woolf

 

A Casa em Paris: um mundo, delicada e minuciosamente descrito, de domesticados exílios, decepções e perdas.

 

Elizabeth Bowen teve o “azar” de ter sido contemporânea de Virginia Woolf

Elizabeth Bowen teve o “azar” de ter sido contemporânea de Virginia Woolf

Elizabeth Bowen (Dublin, Irlanda, 7 de junho de 1899 – Londres, 22 de fevereiro de 1973), autora de mais de duas dezenas de livros (romances, contos, ensaios), teve o “azar” de ter sido contemporânea de Virginia Woolf, o que talvez explique por que razão só existia, até agora, um outro romance seu traduzido e publicado em Portugal, A Morte do Coração (1938). 

Uma das mais correntes declinações simbólicas da casa é aquela que a conjuga com a figura protetora da mãe: a casa é ninho, abrigo ou refúgio, lugar de regresso. Para Elizabeth Bowen, as casas também não são construções inanimadas e indiferentes ao destino das personagens. 

Adiante, a autora ensaia mesmo uma poderosa poética da casa, que justifica uma citação mais extensa: “Exige alguma cautela andar por uma casa estranha sabendo que iremos acabar por conhecê-la bem. 

Quando, a certa altura, uma delas, Karen, vai visitar uns tios a Cork, na Irlanda, enquanto o navio avança rio acima, “com árvores de ambos os lados, como se fosse a navegar numa avenida, […] as casas adormecidas com os seus olhos abertos viam o barco passar” (p. 69). Adiante, a autora ensaia mesmo uma poderosa poética da casa, que justifica uma citação mais extensa: “Exige alguma cautela andar por uma casa estranha sabendo que iremos acabar por conhecê-la bem. […] O nosso eu mais profundo coloca-se na defensiva; há sempre algo a apoderar-se de nós; nunca voltaremos a ser realmente os mesmos. […]

Nem desfiladeiros rochosos e inexplorados nem florestas virgens podem ser mais ardilosos do que o interior de uma casa, que nos mostra o que é a vida. Entrar nela é tão alarmante como seria nascer consciente, sabendo que iremos sentir; olhar em redor é como estar ainda consciente, mas morto: vemos um mundo sem a nossa presença…” (pp. 75-76). Entretanto, e muito significativamente, a casa parisiense a que se refere o título do presente romance é só lugar de passagem, hostil e alheio, é lugar de orfandade. Pior, atribui-se-lhe até um incerto poder maléfico. E se, para uma das personagens, as riscas do papel de parede “lembravam grades”, em relação a outra se diz que “A casa fatal em Paris ainda a possuía a tal ponto que nada do que acontecia fora dela era real.” (p. 194)

 

A Casa em Paris (Autoria: Elizabeth Bowen)

A Casa em Paris
(Autoria: Elizabeth Bowen)

 

A ação de A Casa em Paris decorre num único dia, entre a chegada, “numa manhã escura e morrinhenta de fevereiro”, de Henrietta, uma rapariguinha inglesa de 11 anos, à Gare do Norte, e a sua partida, ao fim da tarde, da Gare de Lyon, com destino ao sul de França. Henrietta, órfã de mãe, a caminho de casa de uma sua avó, passará o dia desejando, em vão, sair e ver Paris. A cidade, porém, manter-se-á exterior e ausente, e só se deixará avistar da janela de um táxi, no percurso entre uma estação de comboios e a casa e entre esta e a outra gare: “Uma pessoa podia viver numa estação, ir comer ao restaurante, dormir nos bancos, comprar cigarros e não partir para lado nenhum.” A rapariga cruza-se na casa de Paris com um rapaz dois anos mais novo, Leopold, que veio de Itália, onde vive com o casal americano que o adotou, para reencontrar a mãe biológica. Mas a mãe de Leopold não virá: “Ele esperava que ela lhe contasse o que realmente existe: maçãs e comboios, a raiva, o desejo de saber: existe mais alguma coisa?”.

Como sabemos, “os encontros que não se concretizam revestem-se de um carácter próprio. Perduram tal como estavam planeados.” A desilusão de Leopold será preenchida (talvez fantasiosamente?), na segunda e mais extensa das três partes do romance, por uma luminosa analepse, que nos fará recuar dez anos e avistar Karen, numa certa manhã de Abril, a bordo de um navio que demanda Cork. É a mãe de Leopold (ou virá a sê-lo). Leremos uma história breve, e finalmente trágica, de amantes com dinheiro mas infelizes. Magnificamente contada.

Como se, no trânsito entre melancólicas estâncias balneares das duas margens da Mancha, Henry James desse a mão a Marguerite Duras. Romance de chegadas e de partidas, de estranhamentos e ausências, de trânsitos e travessias, A Casa em Paris (publicado originalmente em 1935) lembra-nos que a vida passa “muito depressa, como uma peça de teatro sem intervalos”. Umas vezes faz-nos sentir como “um cão numa casa onde tudo está a ser encaixotado para mudança”. Outras, um “navio feliz por não ir a lado nenhum”.

A este mundo, delicada e minuciosamente descrito, de domesticados exílios, decepções e perdas não será alheia, certamente, a condição anglo-irlandesa de Elizabeth Bowen, que nasceu em Dublin em 1899 e morreu em Londres em 1973.

(Fonte: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/macas-e-comboios – CULTURA ÍPSILON / Por MÁRIO SANTOS – 01/03/2016)

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