O burguês revolucionário
Édouard Manet (Paris, 23 de janeiro de 1832 – Paris, 30 de abril de 1883), artista que teve papel único e brilhante na história da pintura
A extraordinária trajetória de Manet, foi um dos gigantes da pintura francesa e mundial do século XIX, de personalidade rica e privilegiada, onde teve-se, paralelamente, o retrato completo e acabado de uma época (o século XIX) e um local – (Paris) que concentraram um dos mais férteis períodos de produção cultural da história do Ocidente.
Suas lições eram simples, claras como a luz que ilumina Le Déjeuner sur l’Herbe, um de seus quadros mais famosos, cortantes como a nudez da modelo que aparece na mesma obra. “A concisão é na arte uma necessidade e uma elegância”, dizia Manet. “Procure a grande luz e a grande sombra – o resto virá naturalmente.”
O conselho de Manet para que se saiba distinguir a “grande luz” e a “grande sombra” certamente não valeu apenas para a arte. Trata-se de algo que se aplica igualmente à política, à economia – e à vida em geral. Ao mesmo tempo, com tantas obras, de contemplação inimaginável, tem-se o itinerário completo de uma aventura humana marcada pelo desejo de extrair beleza, emoção e perenidade de acontecimentos marcantes de sua época.
Obras-primas como a execução do imperador Maximiliano, no México (registrada numa tela de 1867), assim como de banalidades como as festas populares de Paris ou um exótico piquenique nos arredores da capital francesa, tema a que afinal se reduz o Le Déjeuner sur l’Herbe (1863), ou outra célebre criação de Manet, a Olympia – tela do mesmo ano de 1863 em que a modelo exibe sua sensual nudez reclinada sobre um sofá, à maneira da Maja Desnuda, de Goya, Le Déjeuner dans l’Atelier – obra de 1868, ou, então, Un Bar aux Folies-Bergère, quadro de 1882, penúltimo ano de vida do pintor.
Un Bar aux Folies-Bergère, seria uma espécie de súmula de seu talento, uma recapitulação de sua obra.
Manet nasceu de uma família parisiense de boa origem, boa fortuna e boas posições. Seu pai era um magistrado, sua mãe a filha de um diplomata – e inicialmente ele estava destinado à carreira do pai. Depois surgiu a ideia de integrá-lo à Marinha – e, nesse intento, Manet passou seis meses a bordo do navio Le Havre et Guadalupe, na qualidade de aprendiz de piloto. A longa viagem compreendeu inclusive o Rio de Janeiro, onde o futuro pintor passou uma prolongada temporada, em 1849.
De volta a Paris, no entanto, Manet sofreria duas reprovações sucessivas na Escola Naval. E esse repetido insucesso significou a rendição dos pais: finalmente ele obteve permissão para estudar pintura, seu verdadeiro desejo. Os seis anos que passou em seguida no ateliê do pintor Thomas Couture (1815-1879) foram desastrosos: “Tudo sob nossos olhos é ridículo”, diria Manet.
“A luz é falsa, as sombras são falsas. Quando chego ao ateliê, sinto-me entrando numa tumba.” A obsessiva procura da “grande luz” e da “grande sombra” – já presente no espírito do pintor – se revelaria mais frutífera em suas pesquisas no Museu do Louvre. Ali, Manet encontrou verdadeiros mestres nos soberanos da pintura espanhola, Goya e Velázquez, suas primeiras e, pela vida afora, mais fortes influências. Manet, no Museu do Louvre, copiava incansavelmente os Goyas e Velázquez que tinha diante dos olhos. Sua primeira obra de sucesso Le Chanteur Espagnol, de 1861, era diretamente inspirada nos mestres.
“VOCÊ É UM BURGUÊS” – Ao mesmo tempo, nesse mesmo Le Chanteur Espagnol, já se sentiam as pinceladas vigorosas e as cores fortes, distantes do acabamento delicado exigido pelo gosto da época, que caracterizariam a obra de Manet. Ele começava a seguir sua trilha revolucionária. Se foi revolucionário na arte, contudo, continuava, e continuou sempre, burguês na vida.
Sua aspiração eram as honrarias oficiais, era essa a única trilha que entrevia para o sucesso. Isso explica sua insistência em ser acolhido no Salão de Belas Artes e sua negativa sistemática de perfilar ao lado dos deserdados que se refugiavam no Salão dos Recusados. Explica, também, seu gosto por outras honrarias bem comportadas e perfeitamente abençoadas pelas instituições, como a própria Legião de Honra.
Certa vez, quando o colega e amigo Degas fazia comentários desairosos a um conhecido comum que havia aceito a Legião de Honra, Manet comentou: “É sempre bom ter tudo o que enriqueça o nome. Nesta maldita vida cheia de luta, nós nunca estamos suficientemente armados.” Degas interrompeu para exclamar: “Naturalmente… Não é de hoje que eu sei a que ponto você é um burguês.”
Em 1870, durante o cerco que as tropas prussianas impõem a Paris, Manet engaja-se no Exército, como oficial de artilharia. Logo, porém, muda de função. “Deixo a artilharia para entrar no Estado-Maior”, escreveu à mulher. “O primeiro ofício era muito duro.” Nada mais burguês. Ou, mais burguês que isso, talvez seja sentir-se com a honra ferida a ponto de jugar necessário bater-se em duelo, como se exigiria para os melhores cavalheiros da época. Pois Manet também não deixou de bater-se em duelo, nesse mesmo ano de 1870, com o crítico Duranty, do Paris Journal, que havia escrito um artigo desfavorável à sua obra. Duranty saiu ferido da empreitada.
No entanto, esse burguês amante das honrarias e do reconhecimento oficial nunca os teria por inteiro, em vida. “As injúrias chovem sobre mim como granizo”, escreveu ele, certa vez, a Baudelaire. “É evidente que há alguém que se engana.” Hoje, o objeto de uma homenagem das proporções que lhe ofereceram o Grand Palais de Paris, foi mais do que evidente que quem se enganava eram os contemporâneos. Manet conseguiu distinguir sua verdade entre “a grande luz” e “a grande sombra”. O restante surgiu naturalmente.
(Fonte: Veja, 11 de maio de 1983 – Edição 766 – Arte/ Por Marco Antônio de Rezende, de Paris – Pág: 108/113)