Dizzy Gillespie, homem que deu ao trompete torto a maior viagem que poderia fazer.

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O mago do trompete torto

Há 20 anos, jazz perdia Dizzy Gillespie, homem que deu ao instrumento a maior viagem que poderia fazer

Das duplas do século, Bird & Diz vieram antes de Tom & Vinicius e Lennon & McCartney. A revolução do jazz moderno foi desencadeada pelo saxofone de Charlie “Yardbird” Parker e pelo trompete de Dizzy Gillespie, que de sonso (“dizzy”) não tinha nada. O apelido surgiu na orquestra de Cab Calloway, quando ele sumiu do naipe de trompetes para dedilhar furtivamente o piano. Um dia, Cab e Diz tiveram uma briga, o trompetista cortou com um canivete o band-leader e foi demitido. A coisa boa da banda de Cab foi que nela Dizzy conheceu o trompetista cubano Mario Bauzá: juntos, fundiram suas músicas no Afro-Cuban jazz. (Dizzy compôs clássicos do idioma, como Manteca, Tin Tin Deo e Con Alma.)

John Birks Gillespie tinha 12 anos em 1929 quando ouviu a primeira gravação de Black and Blue por Louis Armstrong: “My only sin is in the skin./ What did I do to be so black and blue?”. (Meu único pecado está na pele./Que foi que fiz para ser tão preto e triste?) Nascido preto e pobre em Cheraw, Carolina do Sul, perdeu o pai aos 10 anos. Não lamentou muito: caçula de nove filhos, era o favorito das surras dominicais do velho. Operário de construção, o falecido ganhava uns trocados como músico nos fins de semana. Com a casa cheia de instrumentos, Dizzy salvou-se da marginalidade graças à música. Aos 12 já tocava trombone e trompete na escola.

Na autobiografia de 1979, To Be Or Not To Bop, 552 páginas de confissão pura, ele lembra: “No colégio, aos 15 anos, comecei a brincar com o piano e minhas ideias se expandiram muito. Desenvolvi uma atitude muito séria com relação à música”. Em 1940, conheceu um saxofonista de Kansas City. Trancaram-se num quarto de hotel e Charlie Parker tocou: “Nunca tinha ouvido aquilo antes, a maneira como ele jogava com as notas. Foi uma de minhas maiores emoções”. O próprio Dizzy era um malabarista do trompete – capaz de equilibrar várias notas no ar ao mesmo tempo. Diz e Bird eram velocistas. Ninguém tocava tão rápido – tão bonito e tão perfeito – quanto eles. Juntos criaram o bebop, um jazz novo e instigante. Bird era o gênio trágico, queimou todas suas energias e morreu em 1955, aos 34 anos. Dizzy foi o sobrevivente, armou-se de uma carapaça de clown para fazer frente às agressões do racismo e do comercialismo. Numa cena de Bird, a filmebiografia de Charlie Parker por Clint Eastwood, Dizzy dá uma bronca em Parker depois que ele vende o sax para comprar drogas e falta a uma gig: “É o que eles querem, que você faça o jogo deles, prove que o negro é incompetente e irresponsável. Temos de batalhar para provar que somos mais competentes e responsáveis do que eles naquilo que fazemos – música!”.

Na composição de sua persona, Dizzy apelou para adereços capilares (o goatee, a pera debaixo do lábio), para boinas bascas, óculos malucos e criou uma obra-prima do marketing: o trompete entortado, apontando para o céu. Na verdade, aconteceu por acaso: na segunda-feira, 6 de janeiro de 1953, aniversário de sua mulher, Lorraine, e dia de folga, Dizzy armou uma festança e, no calor das comemorações, alguém pisou no seu trompete. Muito zen, diante da campana entortada, Dizzy tocou mesmo assim. E gostou do que ouviu. Encomendou um trompete com a campana entortada em 45%. O pessoal da fábrica de instrumentos Martin achou uma loucura, mas produziu o trompete periscópico. Com a campana elevada, Dizzy ouvia as notas com maior antecedência, alcançava melhor o microfone e o público. E seus agudos, mortíferos para os tímpanos da plateia, eram amenizados.

Toda relação com Dizzy é fatalmente epidérmica. Chorei de emoção em Londres, numa noite de 1964, ao ouvir o grupo do Ronnie Scott”s tocar Pau de Arara, o clássico do Gonzagão que eu escutava ainda garoto nos tempos da Rádio Nacional. Resgate transcultural de Dizzy, com a ajuda do pianista hermano Lalo Schiffrin, na época em que também fez versões geniais de Desafinado e Chega de saudade (No More Blues).

Dizzy For President, nos desencantados anos 1970, foi a proposta de um movimento alternativo dos EUA, uma demonstração da força cultural do jazzista. Mas Dizzy preferiu a música à política e fundou a United Nation Orchestra, uma espécie de ONU do jazz. Dizzy Gillespie morreu de câncer do pâncreas em 6 de janeiro de 1993, exatamente 40 anos depois de inventar o trompete entortado no aniversário de sua mulher.

Dizzy faz falta, 20 anos depois? Faz, com certeza, para o trompetista cubano Arturo Sandoval, que lançou em 2012 o CD Dear Diz (Everyday I Think of You). Eu também posso dizer sem exagero que, como muitos outros no mundo inteiro, penso todo dia em Dizzy Gillespie.

(Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer – Notícias > Cultura/ Por Roberto Muggiati, Especial para O Estado – 5 de janeiro de 2013)

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