O primeiro escritor brasileiro a publicar um conto na prestigiosa revista americana The New Yorker

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EMILIO FRAIA, DO MANDAQUI A MANHATTAN

Escritor criado em bairro da zona norte de São Paulo é o primeiro brasileiro a ter um conto publicado na “The New Yorker”
Uma “alegria tipográfica”. Com essas palavras, Emilio Fraia, de 37 anos, descreveu o que sentiu quando soube que seria o primeiro escritor brasileiro a publicar um conto na prestigiosa revista americana The New Yorker.

Antes dele, só o poeta Affonso Romano de Sant’Anna publicara versos na revista nova-iorquina, que completará 95 anos em fevereiro de 2020 e alavancou as carreiras de escritores como J.D. Salinger, John Updike e Truman Capote.

“O que me dá mais felicidade é a possibilidade de ser lido e continuar escrevendo. E há também a alegria de ver uma história que eu escrevi na tipografia da New Yorker”, disse Fraia a ÉPOCA numa segunda-feira atipicamente fria de dezembro, num café paulistano com uma infindável playlist de MPB: Gal Gosta, Tulipa Ruiz, Rubel.

 

“Agosto”, o conto que aparecerá na edição da New Yorker a partir de 10 de dezembro, é a última das três narrativas curtas de Sebastopol , livro publicado em outubro de 2018 pela Alfaguara, selo da Companhia das Letras.

No início do ano, Luiz Schwarcz, presidente do Grupo Companhia das Letras, onde Fraia trabalha como editor, se reuniu com a editora de ficção da New Yorker , Deborah Treisman, para apresentar-lhe alguns escritores brasileiros. Schwarcz entregou a Treisman uma tradução de “Maio”, um dos contos de Sebastopol , que narra a passagem de um enigmático peruano-brasileiro por uma pousada decadente. “Ela gostou muito de conto, mas pediu desculpas por não publicá-lo porque era muito longo”, contou Schwarcz. “Falei que havia outros dois contos e que traduziríamos um deles se ela se interessasse em ler. Ela topou, mas sem compromisso.” Depois de meses em silêncio, veio a resposta: a New Yorker publicaria. “Ao ser brindado com essa publicação, o Emilio abre as portas da New Yorker para outros autores brasileiros”, disse Schwarcz.

Em novembro, de volta a Nova York, Schwarcz recomentou os contos de Fraia à editora Barbara Epler, da New Directions, que publica Clarice Lispector e Raduan Nassar nos Estados Unidos. E acrescentou que um dos contos seria publicado pela New Yorker . Os editores da New Directions leram as traduções e, duas semanas depois, propuseram publicar Sebastopol. “É muito legal ser publicado por uma editora grande nos Estados Unidos porque o caminho dos escritores latino-americanos no mercado americano ainda é difícil”, disse Fraia, que respondia atenta e cuidadosamente às perguntas, com poucos gestos e alternando goles de um suco de laranja e um café americano. “Eu pensava que o ciclo do livro já tivesse terminado, mas ele ganhou uma nova chance.”

“Agosto” é narrado por Nadia, uma universitária que vive sozinha em São Paulo, e ajuda Klaus, um fracassado diretor teatral, a montar uma peça sobre Bogdan Trúnov, um pintor russo que viveu em Sebastopol nos tempos da Guerra da Crimeia (1853-1856). Ao pesquisar a vida e obra de Trúnov, Nadia se impressiona por não encontrar, em suas telas, campos de batalha ou soldados ensanguentados: “Seu foco era a vida comum dos soldados quando não estavam no front, os intervalos, os tempos mortos quando nada estava acontecendo”. Trúnov é inspirado no francês Jean-Antoine Watteau (1684-1721), que pintava os intervalos da guerra, o estranho sossego entre uma batalha e outra.

O conto menciona as ruas hipsters do centro de São Paulo e os eventos culturais realizados em prédios ocupados por movimentos de luta por moradia. As referências paulistanas não intimidaram a tradutora canadense-americana Zoë Perry, que já verteu para o inglês Mia Couto, Julián Fuks e outros lusófonos. “Morei em São Paulo e sou casada com um paulistano. Eu me sinto muito em casa ao traduzir um texto ambientado na cidade. O Emilio sempre esteve disposto a tirar qualquer dúvida minha”, disse. “A qualidade da escrita também facilitou meu trabalho. É muito mais fácil traduzir o texto de um escritor cuidadoso.”
“Fraia criou uma atmosfera de desespero e falta, que mostra como é se sentir completamente desconectado da cultura em que se vive, um sentimento comum a leitores de qualquer país. Os dois personagens principais, cada um perdido a sua maneira, tentam responder a perguntas sobre o sentido da vida contando histórias”, afirmou Treisman, da New Yorker . “Como editora, o que procuro num conto, não importa a língua em que tenha sido escrito, é uma história que assuma riscos, sejam eles estilísticos ou psicológicos, e que continue comigo depois da leitura.”

“‘AO SER BRINDADO COM ESSA PUBLICAÇÃO NA NEW YORKER DE DEZEMBRO, O EMILIO FRAIA ABRE AS PORTAS DA NEW YORKER PARA OUTROS BRASILEIROS’, DISSE LUIZ SCHWARCZ, PRESIDENTE DO GRUPO COMPANHIA DAS LETRAS, QUE PUBLICA O AUTOR NO BRASIL”

Sebastopol disputou prêmios literários importantes, como o Jabuti, o Oceanos e o Biblioteca Nacional. Os títulos do livro e dos contos são emprestados de Liev Tolstói. O russo, que foi segundo-tenente num regimento de artilharia na Guerra da Crimeia, escreveu os Contos de Sebastopol : “Sebastopol no mês de dezembro”, “Sebastopol em maio” e “Sebastopol em agosto de 1855”. Fraia não escreve sobre soldados ou trincheiras, mas reconhece que seu livro “está cheio de personagens amputados”. Um deles é Lena, a narradora de “Dezembro”. Ela sonhava em ser a primeira brasileira a alcançar o topo do Everest, mas um acidente nas alturas a forçou a abandonar o alpinismo e se reinventar como palestrante, dessas que contam histórias lacrimosas de superação para plateias corporativas.

O acidente de Lena ocorreu em 13 de junho de 2013, o dia em que Política Militar reprimiu violentamente um protesto contra o aumento das tarifas do transporte público em São Paulo. Fraia compareceu a essa manifestação, mas não pôde ir ao protesto seguinte, no dia 18, o maior das Jornadas de Junho, porque estava lançando Campo em branco , uma graphic novel ilustrada pelo artista plástico DW Ribatski. “Foi horrível! A cidade estava parada e muita gente não conseguiu ir. Fazer lançamento em épocas de grande agitação política causa problemas”, brincou. Em Campo em branco , dois irmãos não muito próximos se reencontram numa cidade estrangeira e resolvem refazer uma viagem de infância. Ribatski não foi o primeiro parceiro literário de Fraia — na verdade, Sebastopol foi o primeiro livro que ele escreveu sozinho. Em 2008, ele lançou O verão do Chibo , escrito a quatro mãos com Vanessa Barbara. No romance, um menino descreve suas férias de verão, embrenhado num milharal com seus amigos — ou seriam espiões da rainha da Bulgária?

 

O verão do Chibo foi indicado ao Prêmio São Paulo de Literatura e seus autores convidados para a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. “Vanessa e eu quase não nos encontrávamos. Mandávamos por e-mail o que tínhamos escrito e o outro respondia com comentários e sugestões que podíamos aceitar ou não. Quando um recusava as sugestões de mudança muitas vezes, o outro entendia que ali não era para mexer”, contou Fraia. “Toda a nossa conversa se dava no texto. Era no texto que um tentava entender o pensamento do outro. Não sabíamos aonde a história ia chegar. Só conversamos sobre uma estrutura quando tínhamos metade do livro escrito.” O verão do Chibo combina o humor de Barbara e o rigor de Fraia, que reescreve, reescreve e reescreve. Fraia e Barbara foram incluídos na lista dos 20 Melhores Jovens Escritores Brasileiros elaborada pela revista literária inglesa Granta, em 2012. O verão do Chibo foi dedicado ao Mandaqui, bairro da Zona Norte de São Paulo onde os autores viveram. Os Fraias se mudaram para a Zona Norte em busca do ar puro dos arredores da Serra da Cantareira.

Fraia sempre quis escrever. No final dos anos 1990, quando ainda estava na escola, passou a editar o fanzine Givago , que ele comandou até o segundo ano da faculdade de jornalismo. “Naquela época, todo mundo sabia um pouco de programação. O Givago teve 91 edições enviadas por e-mail. Conheci muita gente que escreve nessa época, gente que fazia zines também, como o Daniel Galera, que editava o Proa da palavra ”, recordou. Entre 2009 e 2013, Fraia trabalhou na finada Cosac Naify, onde editou autores como Alejandro Zambra, Enrique Vila-Matas e Valter Hugo Mãe. Desde 2017, ele edita quadrinhos e ficção literária na Companhia das Letras. “Também fui jornalista por muito tempo e percebo que é muito diferente ler um livro como escritor, como jornalista e como editor. A leitura do editor é um pouco utilitária, para ver se aquele livro funciona ou não. A do jornalista também, porque ele lê pensando em perguntas ou em temas para desenvolver. Como escritor, eu às vezes tenho vontade de passar o resto da vida só lendo e relendo três livros.” Quais? “Coleções de contos do ( Juan Carlos ) Onetti, do ( Anton ) Tchekhov e…” Silêncio. “Qual seria a terceira?”, perguntou a si mesmo. Depois de quase meio minuto em silêncio, pensativo, ainda não tinha encontrado uma resposta. “Não sei qual seria o terceiro, mas eu te falo depois”, prometeu. E cumpriu. “Sobre os três livros para ler pelo resto da vida: contos de Tchekhov, Onetti e ( Franz ) Kafka”, escreveu num e-mail.

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