Charlotte Delbo, sobrevivente de Auschwitz

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Charlotte Delbo (1913-1985), escritora e sobrevivente de Auschwitz. Autora francesa, fez de suas obras em prosa, poesia e dramaturgia um memorial lírico e pungente para as vítimas do Holocausto

Em 24 de janeiro de 1943, 230 mulheres foram deportadas de trem pelo exército alemão. Nenhuma era judia. A detenção era motivada por sua resistência à ocupação nazista da França na Segunda Guerra Mundial. Após três dias de viagem, as portas dos vagões se abriram, revelando o destino final: o campo de concentração Auschwitz-Birkenau. Do total de passageiras do chamado “comboio 31000” , apenas 49 sobreviveram. Entre elas estava Charlotte Delbo, marcada pelo número “31661” tatuado no braço e pelas memórias dos 27 meses vividos no campo de extermínio.

“Há uma rua para as pessoas que chegam, e uma rua para as pessoas que partem. Há um café que se chama ‘Na chegada’, e um café que se chama ‘Na saída’. Há pessoas que chegam, e pessoas que partem. Mas há uma estação na qual aqueles que chegam são justamente os que partem. Uma estação na qual aqueles que chegam nunca chegaram, e na qual aqueles que partiram nunca voltaram. É a maior estação do mundo para as chegadas e as partidas”, escreveu Delbo no longo texto de prosa poética que abre o livro “Nenhum de nós voltará”, primeiro volume da trilogia “Auschwitz e depois”, publicada entre 1965 e 1971, inédita no Brasil.

Seu período no campo nazista foi o mote de uma produção literária original, desenvolvida em mais de uma dezena de títulos de prosa, poesia e dramaturgia, sempre marcados por uma sensibilidade própria e pela convicção da linguagem. “Alguns disseram que a deportação não podia entrar na literatura. (…) Eu estive lá, por que não teria o direito de escrever sobre isso? Não há palavras para descrever? Então que se vá encontrá-las. Nada deve escapar à linguagem”, disse numa entrevista.

Rejeição a rótulos

Delbo nunca escondeu a ambição de “transformar Auschwitz em literatura”. No centenário de seu nascimento, ela é tema de vários eventos, como colóquios internacionais, encenações de suas peças, exibições de filmes e lançamentos de livros, como a biografia “Charlotte Delbo”, escrita a quatro mãos por Violaine Gelly e Paul Gradvohl.

— Charlotte Delbo fez literatura de sua experiência. É clara a sensibilidade de mulher em seus escritos, e também o fato de que fala sempre em “nós”, quase nunca usa o “eu”, como faz Primo Levi, por exemplo. É uma diferença essencial em relação aos demais relatos dessa natureza — diz Gelly.

Ao contrário de outros autores que abordaram em suas obras a vivência dos campos, como Primo Levi, David Rousset, Robert Antelme, Jean Cayrol e Jorge Semprún, Delbo nunca teve o reconhecimento merecido, na opinião de seus biógrafos. As explicações aventadas para esse esquecimento são variadas: sua aversão à exposição e à autopromoção, o pouco caso dado ao papel das mulheres na história da resistência francesa, e também o fato de ser uma mulher escrevendo sobre mulheres.

— O sofrimento das resistentes que foram presas, deportadas e depois retornaram não foi reconhecido como o dos homens. Delbo, com suas palavras, com a forma pela qual coloca em cena a carne, o corpo, a mulher, confrontou o leitor com esta realidade. Mas os homens daquela geração tinham dificuldade em ver isso — sustenta Gelly.

Embora sua obra seja hoje objeto de análises feministas e estudos de gênero na academia, Delbo sempre rejeitou o rótulo de “escrita feminina”: “Não sou uma mulher quando escrevo. Não há experiência diferente entre os homens e as mulheres nos campos. Apenas um sofrimento comum. O sistema concentracionário garantia uma perfeita igualdade entre homens e mulheres” disse certa vez, ironicamente.

Libertada pela Cruz Vermelha em abril de 1945, após passar pelos campos de Raisko e Ravensbrück, Delbo foi repatriada para a França, via Suécia, em junho do mesmo ano. Embora tenha começado a escrever de imediato, sua primeira obra, “Nenhum de nós voltará” — concluída em apenas um mês —, só foi publicada 19 anos depois.

Segundo Delbo, isso ocorreu porque ela desembarcou num país devastado pela guerra, com pessoas arrasadas pela destruição e pelo luto: “A infelicidade delas, mesmo que — é preciso admitir — não pudesse ser comparada com a nossa, era presente, enquanto a nossa estava distante”, disse.

Antes da deportação para Auschwitz-Birkenau, Delbo sofreu com a morte do marido, Georges Dudach. Os dois se conheceram em 1934 na universidade operária organizada na Sorbonne pela União dos Estudantes Comunistas. Em 1942, o casal integrante da Resistência foi detido em seu esconderijo em Paris.

Condenado à morte, Georges foi fuzilado em menos de três meses, aos 28 anos. Minutos antes da execução, Delbo pode lhe dizer adeus. No último verso de um poema incluído no segundo volume de sua trilogia (“Um conhecimento inútil”), recordou o trágico momento: “Vocês não podem compreender/ vocês que não escutaram/ bater o coração/ daquele que vai morrer”.

Em Auschwitz, Delbo procurava dissimular de suas camaradas a dura realidade do campo recitando versos, relembrando personagens da literatura e da dramaturgia, de Electra a Don Juan. Em Paris, havia sido assistente do inovador diretor de teatro francês Louis Jouvet. Com a trupe do Théâtre de l’Athénée, comandada por Jouvet, fez uma turnê na América do Sul em 1941, com apresentações no Rio, São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu.

Muitas de suas colegas mais próximas em Auschwitz morreram na tortura nazista. Prevendo o fim antecipado, elas costumavam lhe dizer: “Você, que sabe escrever, um dia contará tudo”.

No livro “Comboio de 24 de janeiro”, de 1966, uma minuciosa pesquisa por meio de fichas biográficas, Delbo construiu um memorial com o nome e a história de todas as 230 mulheres levadas no mesmo trem da França para Auschwitz naquele janeiro de 1943. “Ao fazer este livro”, explicou, “eu queria apenas responder à questão: quem eram essas mulheres que estavam comigo? O que elas fizeram? Na maioria dos casos, nós não sabíamos, e elas morreram antes de nos dizer”. Delbo sobreviveu e, à sua maneira, contou.

 

(Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/03/16 -489918 – CULTURA – Por Fernando Eichenberg, de Paris16.03.2013)

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