Samora Machel, presidente de Moçambique, liderou a luta de independência contra os portugueses.

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A queda do leão

Herói da guerra pela independência de Moçambique e centro de gravidade da vida política de seu país

Após a proclamação da independência, a 25 de junho de 1975, tornou-se o primeiro Presidente da República de Moçambique.

Samora Machel (Madragoa, Gaza, 29 de setembro de 1933 – Montes Libombos, 19 de outubro de 1986), presidente de Moçambique, figura carismática do chefe guerrilheiro que liderou a luta de independência contra os portugueses.
Samora Machel morre em desastre aéreo que leva países africanos a levantar suspeitas sobre responsabilidade da África do Sul
Um dos dez sobreviventes do desastre, o capitão Fernando Manoel João, do corpo de segurança de Samora Machel, relata que, a bordo, o ruído das turbinas perdeu a força e o avião começou a sofrer turbulência violenta, depois de um voo tranquilo, desde Lusaca, capital de Zâmbia, onde Machel participara de uma reunião de chefes de Estado do sul da África.

Desaparecia o legendário chefe guerrilheiro que, em 1975, levara suas tropas à vitória na guerra de independêmcia contra Portugal e o presidente que teve talento de estadista para conduzir articulações delicadas na África Austral, como as negociações para a independência da Rodésia e a tentativa de coexistência com a África do Sul. Samora Machel, de 53 anos, era o último dos comandantes guerrilheiros africanos no poder.

O Tupolev 134 do presidente Machel havia feito um acentuado desvio de rota para oeste e acabara caindo nos arredores da cidade de Komati Poort, na África do Sul, a poucas centenas de metros da fronteira e a apenas 2 quilômetros de Ressaeno Garcia, a cidade moçambicana mais próxima. O piloto soviético Iuri Novidran do governo de Moçambique era experiente e estava a serviço de Machel há vários meses. O governo da África do Sul demorou 6 horas para comunicar a Maputo que o avião caíra em seu território e Machel morrera. Essas circunstâncias imediatamente levaram autoridades em Moçambique e nos países vizinhos a levantar suspeitas sobre uma eventual sabotagem sul-africana contra o avião do presidente moçambicano.

Para o governo de Moçambique e para toda a África negra, a propagação da lenda de que um dos últimos grandes libertadores de nações foi morto pelo regime racista de Johanesburgo é um verdadeiro bálsamo político. Um desfecho desse tipo dá uma aura de martírio à morte de Machel e debilita a África do Sul junto à comunidade internacional.

O clima foi de luto em todo o país, dominado nos últimos onze anos pela figura carismática do chefe guerrilheiro que liderou a luta de independência contra os portugueses. Machel era um homem desinibido e expansivo que, ao se encontrar com Reagan na Casa Branca, em 1985, abriu os braços e exclamou em português: “Como vai, Ronald?”

Em 1975, quando o então chanceler e atual presidente de Portugal, Mário Soares, encabeçava uma reunião com líderes guerrilheiros das colônias africanas, Samora Machel não se impressionou ao ouvir que o novo regime instalado através da Revolução dos Cravos iria promover a independência. “Não é porque lavaram o porco que ele deixou de ser porco”, disparou ele. A mesma firmeza quase intransigente, desenvolvida em dez anos de luta, foi exibida meses mais tarde ao embaixador Ítalo Zappa, enviado a Moçambique para uma aproximação com Machel. O líder guerrilheiro vitorioso deixou claro ao embaixador que o Itamaraty descobriu tarde o fim do colonialismo português, referindo-se à relutância do governo brasileiro em votar na ONU em defesa da libertação de Moçambique e Angola e ao apoio que o regime militar brasileiro dera até então a Portugal, inclusive com armamentos e sonhos de uma delirante comunidade lusófona. Machel não só reclamou como deu o troco à sua maneira: os únicos convidados brasileiros para as cerimônias da independência foram Luís Carlos Prestes e Miguel Arraes, na época os mais notáveis exilados políticos do país.

CONDUTA RÍGIDA – O homem era um leão, ainda durante a luta pela independência, como médico de campanha. Ele aparecia de improviso nos acampamentos e não pensava duas vezes para chamar a atenção dos voluntários estrangeiros que não seguissem a rígida moral adotada por ele. Várias vezes citava nossos descuidos, apontando a devassidão dos brancos. A disciplina pautou a vida de Machel desde menino. Machel teve apenas seis anos de escola, o que fez dele o menos instruído dos líderes da Frelimo, afinados com o padrão intelectual da pequena elite negra que assumiu a frente da luta pela independência nas colônias portuguesas. Sua ascensão na Frelimo foi rápida. Em dois anos, ele passou de simples militante a comandante-em-chefe.

Em 1969, quando uma carta-bomba despachada por agentes da Pide, a polícia política portuguesa, matou Eduardo Chivambo Mondlane, presidente e fundador da Frelimo, Machel assumiu a liderança. Orador brilhante, ele considerava suas funções de chefe militar tão importantes quanto os discursos de doutrinação para a população – cujo apoio era vital para consolidar a ocupação do território pela guerrilha. Machel não aceitava lições de ninguém – nem sequer de Che Guevara, que foi de Cuba para a África com o seu manual de guerrilha. “Machel não poupou Che, dizendo que ele se achava dono da receita para revoluções de libertação colonial”, contou Kunio Suzuki, brasileiro ex-combatente da Frelimo, sobre um memorável encontro entre os dois líderes revolucionários.

A SUCESSÃO – Machel era a força catalizadora, o centro absoluto de gravidade da vida política de Moçambique, e o problema da sucessão começou a ser conduzido com cautela. O campo de escolha não era grande. O novo presidente deve sair da mais alta instância do partido, o bureau político, com seus nove integrantes. Em princípio, deve ser provavelmente um negro, o que diminui ainda mais a margem de escolha, aparentemente eliminando até o mulato Marcelino dos Santos, que ainda é o segundo homem da Frelimo, embora afastado da vice-presidência quando Machel embarcou num programa de reformas econô,icas e políticas do qual ele divergia. Marcelino é em geral tido como um dirigente de posições mais alinhadas com a ortodoxia marxista-leninista, sobre a qual Machel costumava observar: “Não nego que devemos estudar o marxismo. Mas onde está o nosso operariado?”.

O candidato natural à sucessão de Machel seria Joaquim Alberto Chissano, chefe militar que liderou o governo durante o difícil período de transição para a independência. Apontado como um “centrista”, Chissano ocupa o Ministério das Relações Exteriores, mas sua esfera de influência ultrapassa amplamente o campo diplomático. Para ele vai a torcida discreta do governo brasileiro. “Dos líderes moçambicanos, Chissano parece o mais capaz de dar continuidade à política de Machel, de abertura para o Ocidente e de pacificação do sul da África”, comentou em Brasília um diplomata do Itamaraty.

Em abril de 1986, Machel enviou ao Brasil Armando Guebuza, ministro sem pasta, para trazer uma carta sua para o presidente José Sarney. Nessa mensagem pessoal, Machel traçou um esboço das dificuldades enfrentadas por seu país, espremido entre a crise econômica – que se origina na situação de miséria crônica legada pelos portugueses, passando pelos fracassos da política econômica do governo e pela seca que se abateu sobre a África – e o movimento rebelde em luta para derrubar o regime. A crise se reflete, na escassez geral de alimentos, atualmente racionados.

Para um marxista-leninista convicto, não deve ter sido fácil abrir o país à iniciativa privada e aos investimentos estrangeiros como ensaiou Machel, para tentar tirar Moçambique da extrema pobreza.

ACORDO COM BOTHA – Mas muito mais difícil, com certeza, foi o dia 16 de março de 1984, quando o orgulhoso líder revolucionário negro encontrou-se com seu arquiinimigo, Pieter Botha, o chefe do regime racista da África do Sul. Numa clareira aberta na selva, às margens do Rio Nkomati, ou Rio dos Crocodilos, na fronteira entre os dois países e a algumas dezenas de quilômetros do ponto onde o Tupolev 134 se despedaçou. Machel atravessou a amarga prova de assinar um acordo de boa vizinhança com o único país do mundo onde a segregação racial é praticada oficialmente. O acordo de Nkomati estabelecia um duplo compromisso: Moçambique deixaria de abrigar bases do Congresso Nacional Africano, o movimento nacionalista em luta contra o regime racista, enquanto a África do Sul retiraria o apoio militar e financeiro que dava à Resistência Nacional Moçambicana – Renamo -, uma organização formada por soldados negros remanescentes do exército colonial português. Era a capitulação do guerrilheiro que andava pela mata com um surrado uniforme militar, aconselhada pelo chefe de Estado que, ao lado de Botha, vestia um colorido dólmã de general.

Manchel cumpriu à risca a sua parte. “Fui obrigado a sair de Moçambique, indicado numa lista que o próprio governo sul-africano elaborou e da qual constavam pessoas com grande atividade política”, testemunhou no Rio de Janeiro, onde fez um curso de relações internacionais, Edward Masoka, sul-africano obrigado a fugir de seu país em 1975, aos 19 anos, devido às perseguições que sofreu por sua militância no movimento estudantil negro.

PACIÊNCIA ESGOTADA – Apesar do preço alto pago por Moçambique, que abandonou o apoio concreto à luta contra o apartheid em nome do realismo político, o sacrifício não compensou. As assinaturas de Machel e Botha mal haviam secado nas atas do acordo quando a Renamo reiniciou as ações armadas, com o apoio da África do Sul. A paciência de Machel esgotou-se e ele resolveu virar a mesa. Se os sul-africanos não cumpriam sua parte no acordo, ele também estava livre para reiniciar a ajuda ao CNA. A situação renovada de confronto atingiu o auge no último dia 6 de outubro, quando um grupo de soldados sul-africanos saiu ferido com a explosão de uma mina supostamente colocada por militantes do CNA a poucos quilômetros da fronteira com Moçambique. A resposta de Pretória foi imediata, ordenando a repatriação dos 60 000 moçambicanos que trabalham nas minas do ouro sul-africanas. Além da humilhação de ser relembrado publicamente pela sobrevivência de uma das mais condenadas práticas do domínio colonial – a exportação de mão-de-obra barata para o vizinho racista -, Machel viu-se na iminência de perder os 75 milhões de dólares enviados anualmente de volta aos país pelos trabalhadores moçambicanos. Essa quantiarepresenta nada menos que um terço dos ingressos em moeda forte nos cofres moçambicanos – um retrato perfeito do estado de depauperação do país.

O processo de deterioração nas relações entre os dois países acelerou-se cada vez mais a partir daí. No dia 11 de outubro, as Forças Armadas moçambicanas foram colocadas em estado de alerta, à espera de um ataque da África do Sul. “Trata-se de uma manifestação de histeria que mostra claramente que Moçambique está à beira do colapso”, reagiu em Pretória o general Magnus Malan, ministro da Defesa. Três dias antes da queda do Tupolev 134, Carlos Cardoso, editor da agência de notícias de Moçambique, num artigo sobre o assassinato de Eduardo Mondlane, escreveu que “forças da mesma natureza parecem dispostas a seguir o mesmo exemplo e assassinar o presidente moçambicano. Profecia ou não, Cardoso arrematou: “Malan e seus associados parecem envolvidos numa operação destinada a se livrar não só de um obstáculo chamado Samora Machel comotambém de um estado soberano e independente que se recusa a seguir ordens”. Machel morreu em acidente aéreo no dia 19 de outubro de 1986, aos 53 anos.

(Fonte: Zero Hora – ANO 48 – N.° 16.815 – Almanaque Gaúcho – Hoje na História/ Por Ricardo Chaves – 19/10/11 – Pág; 46)
(Fonte: Veja, 29 de outubro de 1986 – Edição n° 947 – Internacional/ Por Guilherme Costa Manso, de Maputo – Pág; 56/59)

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