A primeira advogada do Brasil

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Primeira advogada do Brasil foi mulher negra que denunciou maus tratos e abusos

Era o ano de 1770 quando uma jovem de 19 anos de idade, negra e escravizada, chamada Esperança Garcia resolveu romper o silêncio e pedir o mínimo de dignidade para sobreviver em uma fazenda no interior do Piauí.

Ela escreveu uma carta à mão para o então governador da província de São José do Piauí denunciando maus tratos e abusos físicos que vinha sofrendo de seu senhor, o Capitão Antônio Vieira Couto.

Duzentos e nove anos depois, em 1979, uma cópia da carta foi encontrada nos arquivos públicos do Piauí pelo historiador Luiz Mott, durante sua pesquisa de mestrado. Acredita-se que o documento original está em Portugal.

Em 25 de novembro de 2022, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada do Brasil.

E sua carta é considerada uma das primeiras petições jurídicas nacionais de que se tem conhecimento.

Quem foi Esperança Garcia?

Esperança Garcia trabalhava com seu marido, Ignácio, na Fazenda dos Algodões, em Oeiras (PI), sob tutela dos padres jesuítas, quando foi obrigada a se mudar com os dois filhos pequenos para trabalhar como cozinheira para o Capitão Antônio Vieira Couto.

A cidade de Oeiras hoje corresponde ao município de Nazaré do Piauí, que fica a cerca de 300 km da capital Teresina.

O que dizia a carta de Esperança Garcia?

“Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”

Trecho final da carta transcrita pelo Instituto Esperança Garcia

A carta de Esperança Garcia traz um relato em primeira pessoa sobre a dor e sofrimento cometidos diariamente na fazenda contra ela, seus filhos e outras mulheres escravizadas no local.

Ela pedia para ser transferida de volta à fazenda Algodões, onde morava com seu marido e filhos, solicitava o direito de conseguir batizar a filha dela e das outras escravizadas e para se confessar com um padre, o que não fazia havia 3 anos.

Diz ainda que já tinha tentado fugir outras vezes do local, mas que foi castigada por isso e já seria praticamente um “colchão de pancadas”. Seus filhos, por sua vez, sofriam “trovoadas de pancadas” com frequência como parte da punição.

Ela poderia ter endereçado a carta ao capitão da fazenda, mas optou por escrever nominalmente ao governador do Piauí, que era Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, representando uma força e uma coragem que não eram comuns às mulheres daquela época, muito menos às em situação de escravidão.

Por que a carta é importante?

A carta de Esperança Garcia é datada de 6 de setembro de 1770, mas só foi encontrada 209 anos depois pelo historiador, antropólogo, professor e ativista paulistano Luiz Mott.

De acordo com O Instituto Esperança Garcia, a estrutura argumentativa com que a carta foi escrita reflete o que hoje é considerado uma petição inicial jurídica.

Em outras palavras, possui remetente, destinatário, relata um fato, possui fundamentos do direito civil e um pedido.

Em 2017, após dois anos de estudos sobre o teor e elementos da carta, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Piauí acatou a solicitação da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra, (entidade criada pela OAB para fazer um resgate histórico do período escravocrata brasileiro e discutir formas de reparação) e reconheceu a carta de Esperança Garcia como um dos primeiros documentos jurídicos escrito por uma mulher no Piauí.

O estudo se tornou um dossiê, intitulado “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de resistência na luta pelo direito”, e foi publicado em 1º de fevereiro daquele ano, em Teresina, resultando no reconhecimento de Esperança Garcia como a primeira advogada piauiense.

Em 25 de novembro de 2022, a OAB Nacional lhe concedeu o título de Primeira Advogada Brasileira. O Conselho aprovou ainda a construção de um busto da advogada em homenagem a ela, que deverá ser colocado na sede do Conselho Federal, em Brasília-DF.

Desde 1999, o estado do Piauí instituiu o dia 6 de setembro, data em que a carta de Esperança foi escrita, como o Dia Estadual da Consciência Negra, com a publicação da Lei 5.046, artigo 5º, de 7 de janeiro de 1999.

Como ela aprendeu a ler e a escrever?

Historiadores dizem que, provavelmente, Esperança aprendeu a ler com os padres jesuítas.

Naquela época eles tinham a tutela para alfabetizar homens de alta casta social, mas eram proibidos de fazer o mesmo com os escravizados, correndo risco de serem severamente punidos.

Para se ter uma ideia, nem mesmo as esposas dos senhores costumavam ter acesso à alfabetização.

O que aconteceu com ela?

Não há um consenso histórico sobre o destino de Esperança depois da carta.

Sabe-se apenas que em 1778, oito anos após a data da carta, que na relação dos trabalhadores escravizados em outra fazenda de algodão constava um casal de nome Ignácio e Esperança.

Ele estava com 57 anos e ela com 27 anos, e estavam juntos com os seus sete filhos. Atribui-se a eles o desfecho da história.

Leia a carta escrita por Esperança Garcia:

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada.

“Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.

“A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos.

“E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia.
(Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2023/01/03 – ECOA / NOTÍCIAS/ FIZERAM HISTÓRIA/ por Tainara Rebelo / Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) – 03/01/2023)

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