Pier Paolo Pasolini, grande personalidade do cinema. Genial e polêmico diretor italiano.

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Pier Paolo Pasolini (Bolonha, 5 de março de 1922 – Óstia, 2 de novembro de 1975), cineasta italiano, grande personalidade do cinema. Genial e polêmico diretor italiano, o cineasta militante do amor pelo excluído, pelo fora da ordem, que escandalizou para mostrar os pontos cegos da civilização.

Através de Giovanni Pascoli (1855-1912), ele descobriu a alma camponesa e o dialeto da Friula, no qual compôs suas primeiras rimas. Pelo marxismo de Antonio Gramsci foi levado para bem longe dos circulos aristocráticos em que iniciara sua carreira de intelectual. Quando chegou ao cinema – depois de haver escrito uma quantidade razoável de poesias, romances e ensaios -, um novo mestre lhe moldava o espírito: o Rossellini de “Francisco, Arauto de Deus”, a quem aliás homenageou abertamente em “O Evangelho segundo São Mateus” (1964), sua sexta criação cinematográfica. Mas ele próprio admitia outras influentes admirações, equitativamente distribuídas entre o dinamarquês Dreyer, o japonês Mizoguchi, o anglo-americano Chaplin e o francês Godard.

Cinco mestres, cinco nacionalidades diversas. Um berço pequeno-burguês em Bolonha renegado por uma adolescência voluntariamente proletarizada – Pasolini, o eterno insatisfeito. Um dia, ao decidir-se que não mais escreveria romances nem poesia em sinal de protesto contra a sociedade italiana, cogitou mudar de nacionalidade. Menos por razões estritamente políticas que por uma necessidade neurótica de começar tudo de novo num idioma diferente. Daí a paixão pelo cinema, que o absorveu até a morte. E que ele definia como o encontro de uma sensibilidade (a sua), fascinada pelas formas vivas da natureza, com uma arte de linguagem “transnacional”, dotada de um sistema de signos universal. Mais que isso, seria uma fórmula especial – “objetual”, como apreciava dizer – de reproduzir a realidade. Foi o bastante para fazer dele um praticante e um teórico apaixonado.

UM CRÍTICO – Sua primeira experiência cinematográfica não se realizou dentro de uma sala escura, mas dentro de sua casa. Devia ter quase 4 anos quando se impressionou com o anúncio de um filme, no qual um tigre aparecia devorando um homem. Seu pai não o deixou assisti-lo mas aquela imagem, misto de canibalismo e masoquismo, foi afinal exorcizada em “Porcaria” (1969), o último filme do cineasta exibido no Brasil. E com desconto: no filme, uma intricada parábola sobre canibalismo, zoofilia e antigermanismo, o filho (Pierre Clémenti) confessa tremer de alegria ao matar o pai e devora-lhe as entranhas.

Pasolini desperdiçou boa parte de sua vida hostilizando o pai, um oficial de Infantaria falecido em 1959, que ele considerava um fascista por temperamento. Contudo, jamais escondeu que, no fundo, essa diferença tinha raízes quese que exclusivamente eclipianas. À sua mãe, por sinal, com a qual viveu até a morte, dedicou poemas e uma homenagem bastante significativa: o papel de Virgem Marias em “O Evangelho segundo São Mateus”. De resto, sua conduta pessoal lhe valeu repetidos envolvimentos com a polícia e a Justiça italianas.

PORNÔ ENGAJADO -– Como cineasta, sempre foi, acima de tudo, um excelente crítico. Criticou a burguesia, que dizia odiar ferozmente (“Tudo o que ela toca, apodrece”) – e não há melhor exemplo desse ódio em sua filmografia do que “Teorema” (1968). E criticou o cinema, que dividia em duas vertentes: de prosa e de poesia. O seu, assim como o da maioria dos autores que admirava, era de poesia. “Não vou fazer filmes e, sim, vou filmar ideias”.

Em “Édipo Rei”, tomou tantas liberdades com a tragédia original que decepcionou os críticos mais ortodoxos. Primeiro, substituiu o coro de Sófocles por cantos populares e música kabuki (para dar uma ideia de destino); depois, fez da esfinge o inconsciente de Édipo. Não satisfeito em apresentar do mito todas as interpretações encontradas nos manuais de psicanálise (de Freud e Jung, passando por Karen Horney), configurou-o no epílogo como um moribundo esperançoso de reencontrar o mundo de sua infância na primeira relva em que se deitou, ao lado da mãe.

Seus últimos filmes – “Decamerão”, “The Canterbury Tales”, “Salò e os 120 Dias de Sodoma”, davam sinais de franca decadência. Aos 53 anos de idade, o inquieto e revoltado Pasolini parecia não ter mais o antigo senso de medida entre os seus objetivos político-teóricos e sua crescente obsessão pelo sexo. Fazia, segundo os críticos menos transigentes, apenas um pornô vagamente engajado para escandalizar seu principal desafeto, a burguesia.

Morte na caçada noturna
O herói do primeiro filme de Pier Paolo Pasolini (“Accatone”, 1961), um menor corrompido pela miséria e delinquente fracassado, acabou morrendo sob as rodas de um carro, a poucos metros de um amontoado de sórdidos barracos fincados nas imediações da praia de Ostia, a 30 quilômetros de Roma. Neste mesmo cenário, também descrito por Pasolini em dois romances (“Ragazzi di Vita” e “Una Vita Violenta”), e em idênticas circunstâncias, o cineasta italiano encontrou a morte, aos 53 anos, numa madrugada de domingo – cumprindo, de certa maneira, a trágica profecia de um de seus poemas, no qual se identificava como “um gato pisoteado pela roda de um trem”.

“Na verdade, Pasolini só não previu o dia e a hora de sua morte. Naquele sábado, Pasolini havia trabalhado durante a manhã e a tarde na versão francesa de seu novo filme, “Salò e os 120 Dias de Sodoma”, a ser apresentado pela primeira vez no Festival Internacional de Cinema de Paris em novembro de 1975. E, à noite, pouco após as 20 horas, ele saiu de sua casa na Via Eufrates, em Roma, onde morava com a mãe e uma prima, para jantar na trattoria Pommodoro com o jovem ator Ninetto Davoli – uma de suas muitas revelações.

Durante o jantar, curiosamente, Pasolini e Ninetto passaram boa parte do tempo debatendo o tema da crescente violência na Itália, impressionados com o recente assassínio de duas menores no subúrbio romano de Circao. Antes das 23 horas, e após combinar novo encontro com Ninetto para o dia seguinte, Pasolini saiu da trattoria dizendo que voltaria para sua casa no subúrbio romano de Eur. Na verdade, porém, ao volante de sua Alfa GT 2000, ele tomou a direção oposta e rodou para o rumo clássico de tantos homossexuais romanos – a stazione Termini, no centro da cidade, a essa hora habitualmente frequentada por vagabundos e marginais da periferia da cidade.

Frango e spaguetti – Ali, o procedimento foi o de praxe. Ao estacionar numa das transversais da estação ferroviária, Pasolini avistou um grupo de jovens do qual fazia parte o menor Giuseppe Pelosi, de 17 anos, alto, esbelto. Giuseppe imediatamente reconheceu o cineasta. Pasolini fez-lhe um sinal, foi correspondido e o garoto, já conhecido da polícia romana por envolvimento em furtos e drogas, entrou no carro. Depois de conversar alguns instantes com o cineasta, ele desceu, voltou à calçada e anunciou a seus companheiros que Pasolini iria deixá-lo “em casa”.

Para Pasolini, começaria então a viagem final – iniciada, como tantas outras do gênero, com uma escala para alimentar o parceiro. Após deixarem a estação, pararam num restaurante da Via Ostiense, 178, onde Pasolini era velho cliente, e Giuseppe foi visto devorando um spaguetti ao alho e óleo seguido de frango. Em seguida, tomaram uma estrada para fora de Roma. E no último posto de gasolina, antes de chegar a Ostia, Pasolini ainda abasteceu sua Alfa Romeo, sendo reconhecido ali pelo motociclista Ubaldo de Angelis – que mais tarde afirmaria à polícia não saber se além do cineasta e Giuseppe havia outras pessoas no carro.

O que ocorreu em seguida na praia de Ostia ainda está por ser definitivamente apurado. Giuseppe em seu primeiro depoimento praticamente inalterado, insistindo que não houve participação de terceiros no crime. “Nós tínhamos um acordo preciso, mas Pasolini pretendeu ir muito além do combinado”, contou ele a polícia. “Diante de minha recusa ele me agrediu com um pedaço de pau. Fiquei fora de mim, apanhei uma tábua que se encontrava no chão e dei-lhe vários golpes. Pasolini tentou fugir, caiu e continuei a batê-lo. Depois, com o rosto coberto de sangue, peguei o carro e, sem perceber, passei por cima de seu corpo. Ao me dar conta do acontecido, parei o carro, acendi os faróis e vi tudo. Depois, fugi”.

Monge e gato – O certo é que Pasolini, como revelaria o exame médico legal, ainda estava vivo quando o carro foi acionado: sua morte se deveu ao esmagamento do tórax e do coração pelas rodas da Alfa Romeo. Pouco depois do crime, uma patrulha policial deteve Giuseppe por dirigir na contramão e em alta velocidade. E, na manhã de domingo, com a descoberta do cadáver de Pasolini, o carro – com os pneus manchados de sangue – era identificado como de propriedade do cineasta. Giuseppe revelou então o crime, tendo posteriormente acrescentado alguns detalhes deicados obscuros em sua primeira confissão.

Ele admitiu, então, ter praticado atos de felação com Pasolini antes de descer do carro. E a briga entre os dois só teria começado quando o cineasta exigiu de Giuseppe que os papeis se invertessem. Todavia, o depoimento do jovem não convenceu os familiares e amigos de Pasolini. Os primeiros, tendo à frente sua mãe Susanna Chiercossi, de 80 anos, já se insurgiram contra o processo aberto pela Justiça, alegando que o segredo da instrução foi violado mediante a revelação de fatos “de validade absolutamente duvidosa”.

Ao mesmo tempo, os atores Franco e Sergio Citti, além de Alberto Moravia, levantaram a suspeita de que Pasolini foi morto por mais de uma pessoa. No entender de todos, é inverossímil que o cineasta, bem mais forte que Giuseppe, não pudesse dominar seu agressor. E duvidam ainda que Pasolini tenha tomado a iniciativa da agressão. “É quase irreal”, explicava Moravia, “porque ele sempre contornara pacificamente todos os problemas de sua vida secreta.” “Trabalho todo o dia como um monge/ e à noite dou voltas como um gato/à procura de amor”, escrevera Pasolini em um de seus poemas.

Polêmica encerrada – De qualquer forma, a imprensa europeia em geral e a italiana em particular preferiram guardar uma discrição inusitada diante do episódio. De todos os jornais, o mais reservado foi obviamente o Osservatore Romano, que se referiu ao acontecimento em apenas seis linhas da última página de sua edição do dia 10 de novembro. Em compensação, as páginas de literatura e artes se cobriram de estudos sobre a obra e a personalidade de Pasolini. Segundo o flamante obituário do jornal francês Le Fígaro, ele teria encarnado todas as contradições de nossa época, pois, “em sua obra, Marx, Freud e Jesus compunham uma espécie de trilogia tão indissociável quanto a Santíssima Trindade”.

De todos os testemunhos, no entanto, o mais impressionante foi sem dúvida o do escritor Italo Calvino, com que Pasolini vinha mantendo uma polêmica sobre a violência na sociedade moderna e, mais precisamente, sobre os delitos cometidos por jovens na Itália. Na véspera do grandioso enterro do cineasta, ao qual compareceram mais de 10 000 pessoas -, sob o título de “Ultima lettera a Pier Paolo Pasolini”, o Corriere della Sera publicou a derradeira etapa da polêmica. “Aos amigos”, escreveu Calvino, “eu disse várias vezes que esperava apenas o próximo crime para responder a Pasolini. Mas já não posso: a vítima foi ele.”

(Fonte: Veja, 12 de novembro, 1975 -– Edição 375 -– ITÁLIA/ Por Sergio Augusto -– Pág; 40/41)

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