Pela primeira vez, o dólar ganha o rosto de uma mulher

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Pela primeira vez, o dólar ganha o rosto de uma mulher.

A executiva Rose Rios, que foi do governo de Barack Obama, fala sobre sua trajetória e luta por representatividade

 

Em março, a ex-secretária do Tesouro dos EUA no governo de Barack Obama, Rose Rios, recebeu um presente que para muitos pode parecer inusitado, mas que a deixou muito feliz. Ela ganhou o primeiro quarter (moeda de 25 centavos de dólar) com a imagem de Maya Angelou, uma de suas poetas favoritas e a primeira mulher negra a aparecer nessa moeda. “Eu já tenho a minha, mas ela vai chegar a qualquer segundo para vocês”, disse em entrevista ao Valor. Mais do que simbólica, a emissão dessa moeda é a concretização de uma luta que ela vem travando há 14 anos e envolve trazer mulheres importantes da história americana para notas, moedas, estátuas e lugares onde quase não havia representatividade feminina. Na semana em que se comemora o Dia da Mulher, sua história é uma inspiração e mostra que é possível dar mais visibilidade para as conquistas femininas, de várias maneiras diferentes.

 

 

Rios foi chamada para trabalhar no governo em 2008 para fazer parte da equipe de transição de Obama no auge da crise econômica. Ela vinha de uma bem sucedida carreira como executiva em uma empresa de gestão de ativos imobiliários da Califórnia, de US$ 22 bilhões. “Eu era a única mulher latina dessa equipe”, lembra. Foi a primeira também a ser confirmada pelo Senado no Tesouro no ano seguinte. Com a nomeação, passou a acumular o cargo de CEO do Bureau of Engraving and Printing do Fort Knox, a casa da moeda americana. E foi lá que percebeu que há um século não havia nenhuma mulher estampada em uma cédula americana. “Pesquisando, vi também que havia um padrão. Todas as imagens que encontrei de mulheres eram alegóricas e não de mulheres reais, como a da Estátua da Liberdade, enquanto os homens representados eram membros do gabinete, fundadores e presidentes”, conta. Naquele momento, decidiu que mudar isso seria uma das bandeiras de sua gestão.

 

 

Para conseguir trocar as imagens nas cédulas, ela precisaria convencer Tim Geithner, que na época ocupava um cargo equivalente a ministro das Finanças, o único com poder para autorizar a mudança. “Perguntei a ele por que nunca tivemos mulheres antes, e perguntei ao seu vice e todos deram a mesma resposta separadamente: porque ninguém nunca mencionou isso”, conta. Ela o convenceu, mas depois disso seguiram-se anos de debate, incluindo uma pesquisa com 600 mil pessoas, até se chegar ao consenso sobre quem deveria estar na nota de US$ 20. A escolhida foi Harriet Tubmam, ex-escrava, abolicionista, que viveu no século 19. Mas como nada é simples, quando se trata da moeda mais disputada do planeta, Tubman ainda não chegou ao bolso dos cidadãos. O processo de substituição da imagem do ex-presidente Andrew Jackson na nota emperrou no governo Trump e só foi retomado com Joe Biden. “É um trabalho em andamento”, explica Rios, que participou como voluntária na equipe de transição no Tesouro do novo governo.

 

 

Todas as imagens que encontrei eram alegóricas, como a Estátua da Liberdade, e não de mulheres reais

 

 

“Não se tratava apenas de mudar uma moeda, mas de trazer uma consciência sobre como pensamos a nossa própria história, porque isso influencia como pensamos sobre o nosso presente e certamente como pensamos o nosso futuro”, enfatiza. O que mais empolga Rios quando conta sua jornada foi que ao longo dessa busca por mulheres históricas foram levantado levantados mais de 300 nomes, que agora figuram no banco de dados no site do Tesouro americano. “Tornou-se um documento público e uma base para os professores incluírem essas figuras da história em suas aulas. Se você está falando sobre Albert Einstein, por que não falar de Grace Hopper?”, referindo-se à criadora da programação de computadores a da linguagem Cobol.

 

 

Foi conversando com um ex-professor seu do ensino médio, que ligou para ela depois de ouvir sua proposta na TV, que Rios teve a ideia de expandir sua iniciativa na forma de um programa educacional mais estruturado. “Ele me disse que depois de 36 anos ensinando história tinha percebido que não havia um retrato de uma mulher nas paredes da sala de de aula”, lembra. Então, quando estava para deixar o governo em 2016, ela fundou a “Empowerment 2026”, uma iniciativa que visa dar reconhecimento e visibilidade a mulheres históricas dos EUA. E foi por meio dela que surgiu o projeto “Teachers Righting History”, para que mais professores tivessem acesso a esse banco de dados, com incentivos para que experimentassem aproveitá-lo usando diferentes linguagens. Ela também lançou o “Notable Woman”, outra ação educativa de realidade aumentada em parceria com o Google.

 

 

 

Em meio a essa cruzada, a própria Rios acabou tendo sua imagem reconhecida. Foi a primeira ex-aluna latina de Harvard – ela é a sexta filha de nove irmãos de mãe mexicana -, a ter um retrato no hall da Windrop House, ao lado de B.J Novac e Ben Bernanke. Sua batalha nunca parou e continua a ganhar adesões. “Acabei de fazer check in aqui no hotel em Washington, para participar da inauguração de uma exposição de estátuas no museu Smithsonian, a convite de um grupo que se inspirou no meu trabalho”, empolga-se.

 

 

De volta à iniciativa privada como CEO da Red River Associates, empresa de consultoria de gestão imobiliária, Rios, que começou a carreira em uma seguradora, diz que quase sempre foi a única mulher nas mesas de negociação, mas isso nunca foi um problema. “Minha área sempre foi baseada em métricas e desde que atingisse meus objetivos era compensada”, explica. No Tesouro, ela conseguiu mais do que bater metas. Com um plano de gestão focado em eficiência, em cinco anos, economizou US$ 1 bilhão e triplicou a produtividade. “Passamos de 5 bilhões de moedas produzidas por ano para 16 bilhões”, orgulha-se. “Isso tendo que lidar com 18 sindicatos de trabalhadores e 21 unidades de negociação coletiva.”

 

 

Mas mais que resultados financeiros, ela conseguiu fazer o que parecia impensável em um departamento com funcionários visivelmente desmotivados. Ela fez subir o índice de satisfação entre os 4 mil empregados, aproximando-o aos da Nasa, órgão melhor ranqueado nas agências de classificação do governo federal americano. “Era um experimento social para mim, como fazer mais com menos”, conta. “Eu tinha três focos: aumentar a demanda de produção, economizar dinheiro e deixar os funcionários felizes.” Rios acredita que conseguiu tal feito combinando vários fatores. “Não acredito no tipo de pirâmide tradicional de gerenciamento executivo, mas em círculos concêntricos, onde o capital humano, os funcionários, estão sempre no meio e os supervisores, gerentes e equipe executiva estão ao redor para apoiá-los.” Ela implementou um amplo programa de reskilling ou retreinamento da força de trabalho. “Mesmo que seu conjunto de habilidades tivesse que mudar ou sua posição tivesse que ser eliminada, sempre haveria uma posição para você.”

 

 

 

As lições do setor público, para ela, valem para o privado. “Não existe um manual, mas para qualquer organização o importante é conhecer os funcionários, porque eles são o coração do negócio e vão formar a sua visão”, diz. Ela conta que no governo fez um estudo de visibilidade para entender a necessidade de creches in loco, por exemplo. “Vimos que essa não era uma questão apenas para as mulheres, muitos homens precisavam também.” Mãe de uma moça de 25 anos e uma rapaz de 21, ela diz teria sido um privilégio poder ter ficado mais próxima deles no trabalho no início da carreira.

 

 

Entender o que pensa e como atua a nova geração é um tópico que Rios decidiu estudar como visitante convidada em Harvard. “Eles gostam de nutrir mudanças e eu gosto de ver o mundo pelos olhos deles”, justifica. Ela diz que um dos aprendizados com a pandemia é que não podemos mais manter as coisas do jeito que sempre foram. “Houve um choque no sistema e agora com a guerra da Ucrânia muitos outros choque virão”, enfatiza. “Essa guerra eleva o nível de incerteza, mas não apenas econômica, ela vai criar um déficit de confiança. As pessoas estão com medo”, alerta. Mas Rios diz que a frente de oposição à invasão russa está unida, o que a deixa confiante. “Acho que a grande questão é quanto tempo isso vai levar e como será quando tivermos que definir o nosso novo normal”, afirma. O caminho dessa história, para ela, ainda é incerto.

 

 

Sobre a sua própria história, Rios diz que pretende continuar sua batalha pelo reconhecimento feminino, trabalhar com a nova geração e apostar em novas frentes de atuação. Ela aceitou este ano o convite para ser conselheira consultiva na Agi Inc, controladora que reúne negócios do ecossistema Agi, que surgiu a partir do banco digital brasileiro Agibank. “Eu sabia que queria fazer parte do conselho de uma fintech internacional”, diz.

 

Em relação ao próprio reconhecimento na história americana, ela não tem do que se queixar. Ganhou o prêmio Hamilton, a mais alta honraria do Tesouro americano, foi reconhecida como uma das mulheres do século pelo jornal “USA Today” e ganhou popularidade como co-apresentadora de um reality show onde se “caça unicórnios”. Mas sua maior marca veio com a própria assinatura, que hoje está em 1,7 trilhão de cédulas de dólar em circulação pelo mundo, um recorde mundial. E só por isso ela já deve entrar para a história.

(Fonte: https://valor.globo.com/carreira/noticia/2022/03/07- CARREIRA / NOTÍCIA / Por Stela Campos — De São Paulo 07/03/2022)
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