Otto Maria Carpeaux, um intelectual que marcou nossa cultura como poucos pensadores brasileiros.

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Carpeaux: o mestre sem dogmatismos

Otto Maria Carpeaux (Viena, Áustria, 9 de março de 1900 – Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1978), escritor brasileiro nascido na Áustria. Significativamente, foi com um pedido de liberdade que se esgotou o esforço de um intelectual que não brigou por outra coisa, e que, sem ter nascido no Brasil, marcou nossa cultura como poucos pensadores brasileiros do século XX.

O brasileiro Carpeaux – E era uma prodigiosa, mitológica memória, à altura de uma cultura que se movimentava com segurança em domínios os mais diversificados. Em Viena, onde nasceu a 9 de março de 1900, Carpeaux se doutorara em matemática, física, química, filosofia e letras, e emepreendera estudos de História, sociologia e música. Sua formação acadêmica seria interrompida em 1938, quando a Alemanha de Hitler anexou a Áustria. Refugiado em Antuérpia, na Bélgica, Carpeaux lançou-se no jornalismo, e como correspondente visitou as principais cidades da Europa. Em 1939, pressentindo a guerra, veio, com sua mulher, Helena – com quem se casara em 1930 -, viver no Brasil. O sobrenome, Karpsen, foi mudado para Carpeaux. Durante esses duros primeiros tempos, numa fazenda paranaense e em seguida em São Paulo, aprendeu, sozinho, o português. Em 1941, levado pelo crítico Álvaro Lins, começou a escrever, em francês, artigos literários para o Correio da Manhã. Seu primeiro livro escrito em português (publicara, na Europa, outros cinco, que mais tarde renegou), “A Cinza do Purgatório”, saiu no ano seguinte. Quando, em 1944, se naturalizou brasileiro, seus escritos já lhe garantiam inabalável reputação.

Embebecido da melhor vanguarda europeia, foi Carpeaux o divulgador, entre nós, de ideias e escritores importantes, então pouco ou nada conhecidos, como Franz Kafka, Benedetto Croce, Giacomo Leopardi, Jorge Luis Borges e Antonio Machado. Ao mesmo tempo, no entanto – lembra Carlos Guilherme Mota, autor de “Ideologia da Cultura Brasileira” -, combatia a apressada e indiscriminada importação de modismos. Fustigou sem cansaço o estruturalismo, o nouveau roman e, no Brasil o concretismo. Anti-acadêmico, anti-dogmático, aberto ao novo e ao jovem, exerceu ponderável influência sobre intelectuais como Florestan Fernandes – e, mais recentemente, Alfredo Bosi, que lhe dedicou sua já clássica “História Concisa da Literatura Brasileira”. Escreve Bosi nesse livro: “A figura de Otto Maria Carpeaux aparece hoje como um divisor-de-águas entre modos de ler menores e, não raro, provincoanos, e uma consciência crítica poderosa da literatura como sistema enraizado na vida e na história da sociedade”.

Humanista completo – Convertido à nossa língua (que chegou a dominar amplamente por escrito, malgrado inconfundível “sotaque”) e a nossa literatura, soube Carpeaux reconhecer, na primeira hora, o peso de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, Aníbal Machado, José Lins do Rego. Dez anos depois de chegar ao país, publicava uma respeitável “Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira” – segundo Affonso Romano de Sant”Anna, uma obra de consulta obrigatória. Alceu Amoroso Lima resumiu a importância desse trabalho de Carpeaux: “A sua vinda para o Brasil pode ser considerada um marco para a nossa literatura. Estávamos saindo do Modernismo. Os escritores repeliam o academicismo, o passadismo, o lusitanismo, numa atitude que, se era positiva e saudável, levava também a certos exageros. Vindo de Viena, que é uma espécie de França do germanismo, Carpeaux, por não ser brasileiro, abriu nossos horizontes. Não era apenas um poliglota erudito, mas um humanista completo”.

O humanismo de Carpeaux se exerceu também no jornalismo político, sobretudo no Correio da Manhã e na Revista Civilização Brasileira, entre 1964 e o Ato 5. Suas tomadas de posição, aliás, lhe custaram processos e até a prisão, em fevereiro de 1969. “Não posso nem quero ser livre como intelectual quando existe a escravidão dos outros”, insistia. Não esteve à margem da realidade do país que adotou. Em 1968, por ocasião da morte do estudante Edson Luiz de Lima Souto, proferiu violento discurso nas escadarias da antiga Assembleia Legislativa, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, ao lançar uma coletânea de artigos, explicava numa “nota prévia”: o volume destinava-se “ao círculo de amigos da literatura”, do qual, naquele agitado momento, não se sentia integrante. “Minha cabeça e meu coração estão em outra parte.”

Na madrugada de sexta-feira, 3 de fevereiro, num último e vigoroso gesto, Carpeaux arrancou de si o emaranhado de tubos e sondas que atavam à vida seu corpo de 77 anos. “Mais liberdade”, pediu – e lentamente mergulhou na agonia que o levou à morte, no começo da tarde. Terminava aí, numa clínica de Botafogo, no Rio de Janeiro, a luta de seu coração batido por sucessivos enfartes, de seus rins doentes, de seus pulmões tomados por pneumonia dupla.

Desenganado pelos médicos desde 19 de janeiro, Carpeaux acabara de concluir seu último livro, uma biografia de Alceu Amoroso Lima, e revisada, para uma nova edição, as provas de sua monumental “História da Literatura Ocidental”. E, segundo os amigos, alinhava projetos – embora já se soubesse vencido (em sua última aparição pública em dezembro de 1977, no jantar pelos 70 anos de Oscar Niemeyer, comentara, num tom mais de constatação do que de queixa: “Que posso esperar agora da vida? Tive dois enfartes, estou com enfisema e não consigo parar de fumar”). Mesmo no hospital, já para morrer, fazia questão de manter-se em dia com a vida, lendo os jornais, e sobretudo lutava para não perder a lucidez e a memória: a todo momento, dizem os amigos, repassava trechos de músicas, títulos de livros, nomes de escritores. Levou consigo o reconhecimento do meio literário como “último intelectual da história literária brasileira capaz de trabalho ciclópico”. Carpeaux eram assim chamado por ter conseguido realizar um trabalho de esforço incomparável e desenvolver um olhar panorâmico sobre a nossa literatura.

(Fonte: http://www.caras.uol.com.br – 9 de março de 2009 – EDIÇÃO 801 – Citações)
(Fonte: Veja, 8 de fevereiro de 1978 – Edição n° 492 – LITERATURA/MEMÓRIA – Pág; 30)

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