Ocidente viu surgir em pleno Renascimento o primeiro gênio romântico da história

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Ocidente viu surgir em pleno Renascimento o primeiro gênio romântico da história

Para a humanidade

Michelangelo: quase 75 anos de criação
Michelangelo Buonarroti (Caprese, 6 de março de 1475 – Roma, 18 de fevereiro de 1564), escultor, pintor, arquiteto, poeta, só pela falta de maior interesse pelas ciências Michelangelo deixou de disputar, com Leonardo da Vinci (1452-1519), o título de “o gênio múltiplo”, do Renascimento. Seria, contudo, inexato ver em tal diversidade de talentos um caso excepcional de aptidão. Entre os séculos XV e XVII era normal a interpretação entre essas áreas. Numa época em que os papas saíam armados à frente de seus exércitos, metiam-se com frequência nos assuntos temporais e sua palavra neles era quase tão lei quanto os dogmas de fé, coube a Paulo III (pontífice entre 1534 e 1549) definir a exata medida de um seu contemporâneo. Chamava-se Michelangelo Buonarroti, era cidadão florentino e tinha, àquela altura, 60 anos. Tornara-se famoso muito cedo. Mas nunca recebera, até então, uma consagração oficial a tão alto nível. “É o mais ilustre escultor, pintor e arquiteto de todo o mundo”, proclamava o papa em 1535, num decreto. “Nomeio-o encarregado desses setores no Vaticano.”

Anos mais tarde, quando diversas interferências começaram a incomodar o irritável artista (então encarregado de prosseguir a construção da Basílica de São Pedro), o papa foi mais longe. “Tendo em vista que nosso amado filho Michelangelo, membro de nossa casa e nosso companheiro regular de mesa, refez da melhor forma o projeto da Basílica, por meio deste decreto aprovamos e confirmamos tal projeto. Ainda mais, confiando na boa fé, experiência e extremo cuidado do próprio Michelangelo, nomeamo-lo para o cargo enquanto viver. E lhe asseguramos a autoridade de mudar, reformular, aumentar ou diminuir o edifício, como lhe parecer melhor, sem ter que pedir permissão a quem quer que seja.”

Diversidade de talento – Em sua época se tornara um dos maiores gênios conhecidos. Próximo a Florença, na minúscula cidadezinha de Caprese (onde nascera a 6 de março de 1475), são realizadas as comemorações, comovido, o mundo inteiro homenageia o nascimento ano após ano, daquele que é o mais ilustre escultor, pintor e arquiteto de todo o mundo. Embora poucos o lembrem, Donato Bramante (1444-1514), o maior arquiteto do período, deixou também uma obra pictórica. E mesmo Rafael Sanzio (1483-1520) antecedeu Michelangelo como arquiteto-chefe da Basílica de São Pedro.

Sete estátuas – A excepcionalidade de Michelangelo residiu, antes, no altíssimo nível de qualidade que alcançou em todos os setores. Leonardo da Vinci (1452-1519), por exemplo, ficou ilustre sobretudo pela parte pictórica: nenhuma tela disputa, a aura incontestável da “Mona Lisa”. Já em Michelangelo é difícil definir com rigor que artista é maior. Para muitos, seria o pintor dos afrescos da Capela Sistina – obra monumental, que inclui um teto de 520 metros quadrados de área e uma parede fronteira com o “Juízo Final”. Para outros, o escultor de obras-primas como a “Pietà”, o “Davi”, o “Moisés”. Ou, enfim, o arquiteto da Capela Medici, em Florença, que enfeixa as várias áreas, criando o prédio, os túmulos de Lorenzo de Medici, duque de Nemours, e Giovanni de Medici, duque de Urbino, e ornamentando-os com um comovente e poderoso conjunto de sete estátuas.

A julgar pela opinião do próprio artista, contudo, ele terá sido antes de mais nada um escultor. Assim se denominou no instante mesmo em que anotou num diário o início da pintura da Sistina. E em 1510, depois de descrever a um amigo as dificuldades que a tarefa lhe ia custando, pedia-lhe por carta: “Defende, Giovanni, aminha obra, e defende a minha honra; pois a pintura não é comigo. Não sou pintor”.

De fato, foi como escultor que ele se impôs, ainda muito cedo. Sua mais famosa “Pietà” – a do Vaticano – é, por incrível que pareça, obra de um jovem de 21 anos. “Asseguro que ela será mais bela que qualquer outro trabalho atualmente visível em Roma, e que nenhum outro mestre de nossos tempos será capaz de produzir outra melhor”, rezava uma cláusula assinada pelo intermediário do contrato. E a história lhe deu razão.

Três dimensões – Com o correr dos séculos, tão fascinante quanto a obra, foi-se tornando também o homem que se escondia por trás dela. Poder-se-ia dizer que, com Michelangelo, a cultura e a arte do Ocidente viram surgir, em pleno Renascimento, o primeiro gênio “romântico” da história. Três séculos antes de se delinear a noção oitocentista de artista – um indivíduo torturado e solitário, incompreendido pelos semelhantes, criando em meio à angústia, compensando-a com a obra -, Michelangelo encarnou plenamente o papel. Para ele, a obra de arte era fruto de uma luta sem limites – e não uma floração borbulhante e espontânea, como nos criadores de tipo clássico: um Mozart, um Rafael. Vários foram seus erros e tentativas (no primeiro ano, na Sistina, o trabalho mofou, por deficiência técnica do afresco). Mas o gênio persistiu, nesses e noutros casos, até dominar a matéria rebelde e impor-lhe sua vontade de forma.

É também conhecido o lado titânico do artista – seu orgulho inquebrantável, sua ousadia para com os diversos papas que foram seus mecenas, suas dificuldades de convivência. Num momento de indulgência, o papa Júlio II (encomendante da Sistina, e um dos que mais o atormentaram) denominou-as “os humores desses homens de gênio”. No caso de Michelangelo, contudo, esses humores parecem ter sido particularmente complicados. Inúmeros foram os seus projetos nunca efetivados, ora por culpa dos patronos, ora da instabilidade do artista. Boa parte da obra escultórica ficou incompleta, inclusive peças fundamentais da Capela Medici. As três “Pietà” da velhice – sobretudo a primorosa Rondanini – pouco mais são que esboços em três dimensões. E, mais de uma vez, o escultor errou no cálculo de sua capacidade de produção, aceitando encomendas simultâneas para prazos em que não lhe seria possível entregá-las.

Um homem feio – O aspecto titânico da personalidade de Michelangelo, em verdade, mesclou-se sempre com súbitos mergulhos na impotência, com acessos absurdos de cólera e, sobretudo, com a melancolia e o pessimismo ter sido parte inelutável de seu temperamento. É muito provável que tal melancolia tenha nascido não das lutas do dia-a-dia – e sim de sua própria figura. Conhecedor supremo da beleza, capaz de recriá-la a cada gesto, Michelangelo era, apesar de tudo, um homem feio. Atarracado, musculoso, de estatura mediana, o tronco deformado pela profissão, tinha o rosto rude, onde se destacava o nariz, quebrado numa disputa adolescente. E embora não se possa dizer (como quiseram seus inimigos) que não passava de uma espécie de troglodita transplantado para a luminosidade quinhentista, pelo menos é certo que estava longe da elegância de um Leonardo ou da suave figura de um Rafael – ambos tidos por ele, aliás, na conta de rivais. Escrevia-lhe em 1520 um amigo: “O papa o tem em alta estima e fala a seu respeito como de um irmão, com lágrimas nos olhos. Mas deixou claro que você assusta até os papas.”

Ligação platônica – Terá sido tudo isso – inclusive a grandiosidade da própria obra – o resultado da falta de amor? Para os adeptos de uma explicação psicológica da história da arte, Michelangelo é um achado. Em tempos moralistas, pretenderam transformá-lo num asceta, capaz de sublimar, através das obras o potencial erótico frustrado. Acredita-se que outra era a verdade. Além da ligação platônica com a nobre dama Vitória Colonna (iniciada aos 61 anos), não se conhece outra mulher em sua vida. A beleza e a sensualidade do corpo feminino permanecem estranhas a seus trabalhos. Em compensação, a beleza viril – sobretudo a jovem – esplende no “Davi” e em obras posteriores. E, a exemplo de Shakespeare, vários de seus sonetos mais candentes foram inspirados por belíssimos rapazes. Pelo menos um – Tommaso dei Cavalieri – passou à história. De Tommaso é o único retrato jamais desenhado por Michelangelo. Diante dele, o velho mestre, que enfrentara papas e lhes impusera sua vontade, se humilhou. Chamou-o de “gênio poderoso, milagre, luz de nosso século”. E só lamentava “não lhe poder dar também o meu passado, para servi-lo por mais tempo. Pois o futuro será curto. Já estou muito velho”.

Passando-se anos, entretanto, não é isso o que importa. Das misérias de Michelangelo – reais ou fictícias, pois ele se queixava mesmo nos momentos de fortuna – sobrou, para a humanidade, seu tesouro de beleza extraído da pedra. Ao morrer em Roma, em fevereiro de 1564, foram 90 anos de vida – e quase 75 de trabalho. Três quartos de século, dos quais a humanidade – mais até que o próprio indivíduo – saiu absolutamente engrandecida.

(Fonte: Veja, 5 de março de 1975 – Edição n° 339 – ARTE/ Por Olívio Tavares de Araújo – Pág; 92/93)

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