John Edmonstone, foi um dos protagonismos obstaculizados negro que ensinou taxidermia a Charles Darwin e influenciou decisivamente um dos cientistas mais celebrados do planeta

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John Edmonstone, o escravizado liberto que ensinou taxidermia a Darwin e abriu caminho para teoria da evolução

O ex-escravizado que ensinou Charles Darwin
Um dos protagonismos obstaculizados é o de John Edmonstone, o negro que ensinou taxidermia a Charles Darwin e influenciou decisivamente um dos cientistas mais celebrados do planeta.

Em A Origem do Homem (1871), o segundo livro sobre a teoria da evolução de Charles Darwin, que é um dos textos mais estudados da história, cada detalhe foi examinado.

E há um que, apesar de não ser relevante para a compreensão de sua teoria revolucionária, intrigou os historiadores.

Após afirmar que, embora as raças humanas difiram em alguns aspectos, como um todo “elas se assemelham em alto grau” fisicamente e “de maneira igual e ainda mais marcada” mentalmente, ele observa:

“…durante minha estada entre os nativos da Terra do Fogo, a bordo do Beagle, fiquei profundamente impressionado com a observação de um grande número de traços característicos que evidenciavam como sua inteligência era semelhante à nossa; o mesmo me aconteceu com um negro de sangue puro de quem eu já fui próximo.”

Quem era aquele homem não identificado?

Uma pista estava nas notas autobiográficas do fim da vida de Darwin, na seção que descreve seus dias de estudante em Edimburgo (outubro de 1825 a abril de 1827), onde ele escreveu:

“Aliás, morava em Edimburgo um negro que tinha viajado com Waterton e ganhava a vida dissecando pássaros, o que fazia com excelência: ele me dava aulas em troca de um pagamento, e eu costumava sentar com ele muitas vezes, porque ele era um homem muito legal e inteligente.”

Era alguém que Darwin não tinha esquecido apesar de sua idade avançada, embora novamente não tenha citado seu nome… mas ele citou outro, Waterton, e esse era conhecido.

‘Foi a primeira e última vez que estive no lombo de um jacaré’, diz a legenda desta ilustração de uma famosa aventura de Waterton durante sua viagem a Demerara, Guiana, em 1820. Ele está acompanhado por indígenas e negros… um deles era aquele homem não identificado
© Science Photo Library

O excêntrico naturalista, conservacionista e explorador Charles Waterton (1782-1865) ficou famoso por suas expedições ao continente americano, de onde levou para a Europa o curare, o extrato vegetal paralisante que mais tarde foi usado como anestésico em operações cirúrgicas.

Waterton registrou suas experiências no livro Andanças pela América do Sul, o noroeste dos Estados Unidos e as Índias Ocidentais nos anos de 1812, 1816, 1820 e 1824, com Instruções Originais para a Perfeita Preservação das aves, &c. para armários de história natural, publicado em 1825.

A obra apresentou muitos britânicos, incluindo o próprio Darwin e seu colega pioneiro da teoria da evolução Alfred Russel Wallace, às maravilhas naturais dos trópicos.

E foi em uma dessas viagens, durante uma visita à plantação de seu amigo e mais tarde sogro Charles Edmonstone por volta de 1812, que Waterton começou a estudar e coletar espécimes da selva circundante.

Mas havia tantos exemplos de pássaros exóticos que ele queria preservar que não deu conta. Assim, como conta em seu terceiro diário, iniciado em 1820, ele procurou ajuda.

“Foi nesta colina, dias antes, que tentei ensinar John, o negro escravizado do meu amigo Sr. Edmonstone, a maneira correta de fazer pássaros.”

“Mas John tinha poucas habilidades, e levou muito tempo e paciência para incutir algo nele.”

“Alguns anos depois, seu senhor o levou para a Escócia, onde, sendo liberto, John o deixou e conseguiu um emprego no museu de Glasgow e depois no de Edimburgo.”

Seria ele aquele homem não identificado?

Numerosos historiadores concluíram que sim.

O nome do homem

Dos primeiros e últimos anos de sua vida, pouco se sabe.

Ele havia nascido escravizado na plantação de madeira do escocês Edmonstone na região de Demerara, no território que era então conhecido como Guiana Britânica, no norte da América do Sul.

Como era comum, John recebeu o sobrenome de seu proprietário e, em 1817, viajou para a Escócia com ele, onde, por lei, foi emancipado.

Embora Waterton observe que Edmonstone trabalhou em museus em Glasgow e Edimburgo, pesquisadores dos Registros Nacionais da Escócia (a agência de registros e arquivos da Escócia), consultando arquivos de correios, encontraram um John Edmonstone, “empalhador de pássaros”, que em 1823 abriu uma loja no número 37 da Lothian Street, perto da Universidade de Edimburgo.

De qualquer forma, tudo indica que ele vivia da arte da taxidermia que Waterton havia lhe ensinado — uma habilidade requisitada na época, não só para fins científicos, mas também para decoração.

E era essa arte que o jovem Darwin queria aprender — aos 16 anos, ele chegou até Edmonstone solicitando seus conhecimentos em troca de “um guinéu (moeda de ouro) por uma hora todos os dias durante dois meses”, como contou em carta à irmã Susan.

Pássaros empalhados

Para Adrian Desmond e James Moore, especialistas na obra de Darwin e autores de A causa sagrada de Darwin, Edmonstone deu mais do que palestras técnicas sobre como um caçador refinado como ele poderia conservar seus pássaros como troféus.

Em suas conversas, provavelmente contou a ele sobre as emocionantes aventuras de Waterton, sobre interessantes buscas por espécimes raros e sobre aquele mundo exótico que ele só descobriria se atravessasse o Atlântico.

Falou também sobre a terrível cultura escravista de Demarara, tema de particular interesse para alguém que, como Darwin, vinha de uma família abolicionista, acreditava que todas as raças pertenciam à mesma família humana e condenava a escravidão como pecado.

Na época, Darwin estava ficando desiludido com seus estudos de medicina, enquanto sua paixão pela história natural crescia.

E acredita-se que os relatos de Edmonstone sobre a vida nas florestas tropicais da América do Sul ajudaram a consolidar seu interesse pelo naturalismo.

Isso é provável, embora impossível de comprovar.

O fato é que o que ele aprendeu sobre taxidermia foi essencial para preservar os espécimes que Darwin coletou em sua viagem de cinco anos a bordo do Beagle.

E esses espécimes perfeitamente preservados foram fundamentais para formular a teoria que mudou nossa visão do mundo e nosso lugar nele como nenhuma outra.

Um dos protagonismos obstaculizados é o de John Edmonstone, o negro que ensinou taxidermia a Charles Darwin e influenciou decisivamente um dos cientistas mais celebrados do planeta.

Nascido no final de 1790, em Demerara, na Guiana, John Edmonstone trabalhou alguns anos numa empresa de corte de madeira. Filho de escravizados, perdeu os pais logo cedo e foi criado por companheiras e companheiros de cativeiro. Arrancados à força da África, cerca de 403 mil desafortunados cruzaram o Atlântico para serem escravizados nas fazendas agrícolas, sobretudo açucareiras, que funcionavam na então Guiana Britânica, território colonizado pelos ingleses no extremo norte da América do Sul.

A maior parte do comércio da região era controlado pelos escoceses, donos das maiores fazendas de açúcar, café, algodão e madeira – principais produtos exportados para Europa. Entre os proprietários era Charles Edmonstone, arrendatário da fazenda onde John nasceu. Como era expediente comum na época, John recebeu o sobrenome de seu senhor e foi batizado como John Edmonstone.

A Guiana atraía pencas de europeus, entre eles cientistas, pintores, naturalistas, viajantes e aventureiros interessados em conhecer as particularidades do domínio britânico nos trópicos. Em meados de 1812, um excêntrico expedicionário desembarcou na região decidido a caminhar pela selva e coletar informações para seus estudos botânicos. Tratava-se de Charles Waterton, genro mais novo de Charles Edmonstone, senhor de John, e figura que mudaria decisivamente a vida de nosso personagem.

A passagem de Waterton pela Guiana foi marcada por situações insólitas. Numa delas, o cientista montou num crocodilo para testar a força do réptil. Além disso, conversou com insetos, mergulhou na lama e reverenciou formigas. Mas não foi apenas pelo exotismo que Waterton ficou conhecido. Ele foi o responsável por levar a curare para Europa, um extrato de planta paralisante usado por grupos indígenas guianenses, que posteriormente serviu de anestésico em operações cirúrgicas.

Durante as visitas que fazia ao sogro, Waterton aproveitava para conversar com John Edmonstone e trocar informações sobre a floresta enquanto o escravizado cortava madeira. Até que John, autorizado por seu senhor, passou a integrar as expedições de estudo e coleta de espécies, especialmente pássaros, organizados pelo excêntrico visitante. Para preservar o maior número de aves possíveis, que seriam expostas em seu museu, Waterton aplicava taxidermia, técnica bastante utilizada na época que consistia em encher de palha um animal morto a fim de conservar suas características.

Os pássaros coletados por Waterton precisavam de preservação rápida devido ao calor insuportável da Guiana e, carecendo de ajuda, escalou John como auxiliar. Numa passagem de suas memórias, o naturalista descreve:

“Foi nesta colina, antigamente, que tentei pela primeira vez ensinar a John, o escravo negro do meu amigo Sr. Edmonstone, a maneira correta de empalhar pássaros. Mas John tinha poucas habilidades e exigia muito tempo e paciência para digerir qualquer coisa. Alguns anos depois, seu mestre o levou para a Escócia, onde, ao se tornar livre, John o deixou e foi empregado em Glasgow [..].” (Waterton, Charles. Wanderings in South America, the north-west of the United States, and the Antilles in the years 1812, 1816, 1820 and 1824. London, 1825, p. 153 – 154)

Relatos apontam que Waterton era intempestivo, tinha temperamento explosivo, muito rabugento e raramente elogiava as pessoas – John não era exceção. No entanto, embora tenha descrito John como pessoa de “poucas habilidades”, fez inúmeras incursões com o auxiliar. E foi justamente as andanças pela selva, a observação atenta, as conversas intermináveis e a curiosidade aguda que fizeram John aprender o ofício taxidérmico. Essa arte fará dele um profissional qualificado e respeitado.

Na primavera de 1817, temendo as sucessivas rebeliões de escravizados que assolavam Demerara, Charles Edmonstone fugiu às pressas para Escócia. Junto consigo, migrou a família, alguns pertencentes e seu escravizado, John Edmonstone. A condição jurídica de John mudou pouco tempo depois do desembarque no Reino Unido. Após alguns meses, o cativo negociou o valor de sua liberdade e comprou a alforria com recursos juntados ao longo de anos de serviços prestados. Sozinho no Velho Mundo, alugou uma casa modesta na cidade de Glasgow onde morou até meados de 1823.

Durante o século XIX, a taxidermia encantou diversos europeus que corriam aos museus e zoológicos ansiosos por observar animais empalhados oriundos de diferentes lugares do mundo. Muitas pessoas faziam coleções de espécies taxidermizados, especialmente pássaros, como ocorreu com a Rainha Vitória do Reino Unido.

Aproveitando a “moda” vigente no Reino, a farta demanda por serviços e a carência de profissionais, John Edmonstone negociou contratos e prestou serviços com centenas de interessados. Como consequência do dinamismo e das habilidades taxidérmicas que dominava, galgou reconhecimento e prestígio na metrópole britânica. O serviço de naturalista possibilitou a mudança de cidade, a compra de uma vistosa casa e a abertura de uma loja na distinta 37 Lothian Street, vizinha à Universidade de Edimburgo. Nos registros do Scottinsh Post Office Directories, Diretório de Correios Escocês, John aparece recenseado:

Os negócios do naturalista decolavam. Diariamente, toda sorte de espécie chegava às suas mãos, trazidos por viajantes que atravessavam oceanos em busca de animais “exóticos” e desconhecidos na Europa. Nos idos de 1824, representantes do Museu Zoológico de Edimburgo foram à sua loja e compraram 15 jiboias, duas andorinhas, um tentilhão e algumas peixes – todos taxidermizados.

As incontáveis horas de trabalho, porém, não impediram que no dia 12 de dezembro de 1824, cercado de amigos, religiosos e alguns curiosos, celebrasse seu casamento com Mary Kerr, funcionária contratada como secretária de sua loja e pessoa com quem viveu por longos anos.

A mudança para Edimburgo trouxe consequências substantivas na vida de John Edmonstone. A fama do “naturalista negro” correu a cidade aponto do diretor do Museu Natural da Universidade de Edimburgo contratá-lo como auxiliar no setor de taxidermia. A função subalterna durou pouco e logo John assumiu a chefia do departamento.

Em 1825, meses depois de John ser promovido, um jovem estudante de Medicina ingressou na Universidade de Edimburgo. Aos 16 anos de idade, pejoso e introspectivo, Charles Darwin passava o dia assistindo palestras, realizando pesquisas, rascunhando ideias e devorando livros de história natural. O curso de Medicina, porém, pouco interessava o discente, que arrastou a graduação por dois anos até desistir da carreira clínica. Mas Darwin largou o estetoscópio para agarrar com afinco as ferramentas que auxiliavam seus estudos de naturalista e potencializam a paixão devastadora que nutria pelas ciências biológicas.

Quando chegou em Edimburgo, Darwin foi morar num alojamento estudantil na 11 Lothian Street, duas casas antes de John Edmonstone. Informado sobre as habilidades do taxidermista, Darwin resolveu contratá-lo como professor particular. O imberbe queria aprender a técnica de empalhar pássaros que o notório afro-guianense dominava como ninguém. Numa carta endereçada à sua irmã, Susan Darwin, datada de 29 de janeiro de 1826, o cientista relatou o início da relação com John:

“Vou aprender a empalhar pássaros com um blackamoor [termo depreciativo adotado para nomear os negros], creio que um velho servo de D. Ducan. [Ele] só cobra um guinéu, por uma hora todos os dias por dois meses.” (Darwin Correspondence. Project. University of Cambridge. Disponível em: darwinproject.ac.uk/letter/DCP-LETT-22.xml)

As aulas começaram no escaldante verão de 1826, prolongando-se por quase três meses a pedido do tutorado. Toda tarde, John saía do museu e corria para casa onde o ansioso Darwin o aguardava. Após tomarem o chá preparado Mary Kerr, iniciavam as incursões ao sofisticado processo.

Nos primeiros encontros, John explicou a função que cada ferramenta cumpria e o momento correto de empregá-las durante o procedimento. A lista incluía pinças, facas, tesouras, alicate, arame, martelo, bolinhas de gude, fita métrica e outros acessórios. Cumpridas as etapas iniciais, as orientações avançavam para os componentes químicos usados no empalhamento. As aulas de alquimia serviram para Darwin aprender que o formol mantinha o tecido das aves conservados; o tetraborato de sódio secava e fixava a pele; o sal compunha a solução química aplicada no curtimento da pele, momentos antes do processo de enchimento. Além disso, Darwin descobriu que tinta e pincel eram fundamentais para realizar eventuais reconstituições na finalização da espécie taxidermizada.

Somente depois de aprender a função das ferramentas e a aplicação dos compostos químicos, John ensinava Darwin o mecanismo de empalhamento propriamente dito. Combinando técnicas de marcenaria, carpintaria e modelagem, habilidades manuais rebuscadas – diga-se de passagem – o professor guianense mensurava e anotava as principais medidas da ave. Em seguida, faca afiada em punho, extraía as vísceras e dissecava o interior do pássaro. Com cuidado, retirava a endoderme, fina membrana colada à pele, e encharcava o animal com produtos químicos. Após a secagem das penas, John preenchia todo o corpo com palha – por isso a palavra “empalhamento” – antes de aplicar formol. Na finalização, a tinta retocava a penugem deformada e duas bolinhas de gude ocupavam o lugar dos olhos. Por fim, bastava costurar e mais um animal havia sido taxidermizado.

Darwin observava e anotava todo o passo a passo, explicado pacientemente pelo dedicado tutor. No final de cada aula, antes de abrir a porta, o aluno desembolsava 1 guinéu (antiga moeda inglesa) pelos conhecimentos adquiridos que extrapolavam a taxidermia. John também ensinava ao inquieto aulista aspectos da fauna e flora da América do Sul, especialmente as florestas de Demerara que ainda perturbavam na memória.

Em uma passagem de sua autobiografia, escrita anos depois, Charles Darwin menciona timidamente o mentor intelectual:

“A propósito, havia um negro que morava em Edimburgo e tinha viajado com [Charles] Waterton. Ganhava a vida empalhando pássaros, o que fazia de forma excelente: ele me deu aulas […] e eu costumava sentar-me com ele, muitas vezes, pois era um homem muito agradável e inteligente.” (BARLOW, Nora. The Autobiography of Charles Darwin, 1958, p. 51).

Cinco anos após finalizar o curso, Charles Darwin, com então 22 anos, recém-formado pela Universidade de Cambridge embarca numa viagem memorável. Em dezembro de 1831, a bordo do veleiro HMS Beagle, a serviço da Marinha Real Britânica, o cientista partiu para o Hemisfério Sul. Na bagagem, além da curiosidade, do espírito aventureiro, das ferramentas de trabalho, da caderneta de anotações, levava os ensinamentos de seu professor John Edmonstone que foram providenciais à expedição.

Das muitas espécies coletadas por Darwin durante os cinco anos de navegação, quase 500 eram peles de pássaros taxidermizados com as técnicas de John. Esses pássaros, recolhidos sobretudo nas Ilhas Galápagos, foram fundamentais para teoria que o cientista desenvolveria anos depois. Ao observar as aves, Darwin acreditava que tinham um ancestral comum, mas evoluíram em ambientes distintos: os que sofreram mutações vantajosas para seu meio sobreviveram e transmitiram as características aos seus descendentes. Os que não se adaptaram foram desaparecendo.

Em 1859, Darwin publicou seu livro mais famoso: A Origem das Espécies. Nele, o autor afirmava que todas as formas de vida na Terra – vivas ou extintas – tinham algum parentesco entre si. Isso significava que todos os seres vivos tinham, em algum momento do passado, um mesmo ancestral. Além disso, tecia considerações sobre a seleção natural, resumidamente entendida como a “sobrevivência do mais apto”. Nesse volumoso compêndio, Darwin reafirmava as hipóteses que os pássaros taxidermizados das Ilhas de Galápagos haviam sinalizado.

Mas a maçã envenenada do pensamento de Darwin seria servida em 1871, quando lançou A Descendência do Homem e a Seleção Sexual. Esse livro inaugurou as bases científicas da eugenia darwiniana, cuja epígrafe escolhida para esta missiva evidencia: “as raças humanas civilizadas irão […] exterminar e substituir […] as raças mais selvagens”. O trecho corroborava o vaticínio da “sobrevivência do mais apto”, divulgada 12 anos antes, mas emanava uma diferença nevrálgica: a teoria, antes restrita a determinadas espécies, agora seria aplicada aos seres humanos.

Charles Darwin forjou a moldura de suas teorias na fornalha racista do século XIX, sofrendo influências e propagando preconceitos. Uma passagem de A Descendência do Homem escorre toda sordidez do veneno eugenista:

“Entre os selvagens, os mais fracos física ou mentalmente são logo eliminados; e aqueles que sobrevivem geralmente são portadores de um estado vigoroso de saúde […]. Nós homens civilizados, por outro lado, fazemos o máximo que podemos para reprimir esse processo de eliminação; construímos asilos para os imbecis, os mutilados e os doentes; instituímos leis para beneficiar os pobres; e nossos médicos gastam suas habilidades mais extremas para salvar a vida de qualquer um, até o último instante. […] E eis que os membros mais fracos de uma civilização propagaram suas crias. Ninguém que já tenha se dedicado à criação de animais domésticos pode duvidar que isso é extremamente ofensivo à raça humana. É surpreendente o quão cedo a ausência de cuidados, ou o mau direcionamento dos cuidados pode degenerar a raça de um animal doméstico; mas, exceto no caso da procriação da própria espécie, raramente um homem é tão ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzam.” (DARWIN, Charles. A Descendência do Homem e a Seleção Sexual. São Paulo: Hemus, 1974. (1871), p. 168.)

A causa primeva da regressão na escalada evolucionária da civilização, portanto, ocorria devido ao “mau direcionamento dos cuidados”. Em outro trecho, Darwin assegurava que se “as várias limitações […] não forem capazes de prevenir que os desocupados, os viciados e outros membros inferiores da sociedade cresçam em maior escala e rapidez que a classe dos melhores homens, a nação irá regredir”. Visivelmente preocupado, alertava seus homólogos: “Devemos nos lembrar de que o progresso não é uma lei invariável”. (Ibid., p. 177)

A eugenia era uma ciência pragmática, experienciada de maneira prática. Dentre as alternativas, os ideólogos defendiam que os seres humanos poderiam ser criados como animais de fazenda. Os melhores elementos do criadouro (“civilizados”) deveriam gerar filhos, enquanto os piores (“selvagens”, “inaptos”) seriam eliminados. Em outros termos, somente algumas mulheres e homens inteligentes, saudáveis e aptos teriam descendentes a fim de gerarem uma raça perfeita, enquanto os que escapavam dos padrões seriam exterminados.

Entre os séculos XIX e XX, a semente eugenista achou terreno fértil na Alemanha nazista, embora tivesse germinado em outras paragens da Europa e das Américas pela ação de cientistas comprometidos com os estudos de Darwin. Não por acaso, portanto, os nazistas foram os principais propagadores da teoria darwiniana sustentando que a própria natureza favorecia os mais aptos e renegava os mais fracos. Além disso, afirmavam que a sociedade deveria contribuir com a seleção natural, eliminando qualquer mecanismo de proteção aos mais fracos e deixando-os sucumbir a própria destruição.

A derrocada do Terceiro Reich alterou as peças do tabuleiro, obrigando parte dos cientistas a problematizarem e escamotearem a eugenia darwiniana. O fim da Segunda Guerra Mundial também engendrou esforços substantivos para descolar o nome de Darwin dos movimentos eugenistas, sobretudo porque Hitler levou a eugenia ao paroxismo e carimbou uma péssima reputação à teoria da seleção natural.

O pensamento eugenista era um desdobramento da “teoria da evolução” darwiniana, como ficou exposto na publicação sequencial de A Origem das Espécies e A Descendência do Homem e a Seleção Sexual. Feita a devida ligação histórica entre as obras, voltemos a John Edmonstone.

Afinal, o que nosso personagem tem a ver com tudo isso? Seria somente oportunismo deste escriba inferir, como feito até aqui, que John contribuiu tenazmente na formulação da “teoria da evolução” sem que fosse devidamente reconhecido. Isso é fato! Mas é preciso complexificar a suposição e devolver as vestes humanas do biografado, retirando-o do pedestal da exclusão e da injustiça a qual foi submetido.

Ajustemos as lentes do microscópio a fim de enxergar os elementos com mais acuidade. Ora, se a taxidermia ensinada por John foi fundamental para Darwin estabelecer o estudo comparativo de determinados animais que viveram em períodos e lugares diferentes, sobretudo porque a técnica conservou as espécies e possibilitou mensurar as mudanças sofridas por cada uma delas, o rescaldo também é verdadeiro. A “teoria da evolução”, que carrega em sua gênese os ensinamentos de John Edmonstone, pariu o pensamento eugenista darwiniano. Ainda que indireta e involuntariamente, portanto, as impressões digitais de John também estão registradas no pernicioso DNA eugenista. Uma teoria é continuidade da outra, irmãs siamesas impossíveis de serem separadas.

Com o passar dos anos, a “teoria da evolução” ganhou força científica e figura entre as ideias mais discutidas no mundo atualmente. O pensamento eugenista, embora abertamente refutado, continua sendo propagado por alguns cientistas, incluindo o prêmio Nobel James Watson, que em 2007 declarou ser “pessimista a respeito do futuro da África”, porque “todas as nossas políticas sociais são baseadas na suposição de que a sua inteligência (dos africanos) é a mesma dos brancos, quando todas as provas indicam que não é assim”.

Charles Darwin foi alçado ao panteão científico como referência suprema devido os estudos que realizou. O naturalista recebeu honrarias póstumas, nomeou centros de estudos, batizou museus, ilustrou cartazes em grandes avenidas e influenciou peremptoriamente o pensamento científico ocidental. Uma miríade de estudantes ostenta seus volumosos livros nos corredores universitários em diferentes partes do globo.

Enquanto isso, John Edmonstone foi tragado pelo anonimato e pela indiferença. Documentos apontam que até 1843, diariamente após o expediente, recebia legiões de jovens em sua casa interessados em aprender as técnicas de taxidermia. O velho professor ainda morava na mesma rua Lothian Street, número 37, na companhia da esposa Mary Kerr. Quinquagenário, assistiu do epicentro a ascensão da Era Vitoriana como expectador atento aos movimentos e transformações do Império Britânico.

Nada sabemos sobre seus últimos dias de vida e sua trajetória ainda carece de pesquisadores interessados em retirá-lo do ostracismo da memória. Assim como milhares de outros, John desceu a sepultura sem o devido reconhecimento, suas contribuições científicas foram radicalmente ignoradas e suas habilidades sequer perfilam nos manuais de biologia. Como prêmio, recebeu o desprezo da comunidade científica internacional.

A história de John Edmonstone e Charles Darwin é a metáfora perversa do racismo taxidermizado que atravessa séculos e tritura milhares de seres humanos nas implacáveis engrenagens da História.

Sobre Edmonstone, depois de 1843 não há vestígios.

Mas, embora não possamos contar a história completa de sua vida, os vislumbres recuperados pelos historiadores pelo menos o resgataram do esquecimento.

(Fonte: https://www.geledes.org.br – Questão Racial / Artigos e Reflexões / Por Luis Gustavo Reis, do Jornal GGN – 15/09/2021)
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios incendiários sobre um mundo normatizado (2021).
(Fonte: https://www.msn.com/pt-br/noticias/ciencia-e-tecnologia – NOTÍCIAS / CIÊNCIA E TECNOLOGIA / BBC News – 12/11/2022)
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63189447

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