Iberê Camargo, grande pintor, um dos maiores artistas plásticos do Brasil

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Iberê e Solidão: sem enfeitar o mundo

“A vida dói”

Um dos maiores artistas plásticos do Brasil. Para Iberê Camargo, a arte sempre foi um discurso contundente sobre a desumanização do mundo.

 

Iberê Camargo (Foto: Mathias Cramer /Divulgação)

 

Iberê Camargo (Restinga Seca, 18 de novembro de 1914 – Porto Alegre, 9 de agosto de 1994), pintor gaúcho, consagrado como o grande mestre do expressionismo no país, um dos raros pintores brasileiros cujo talento se pode chamar de assombroso, que ao longo de sua formação viveu na Europa e estudou com artistas do porte de André Lhote (1885-1962) e Giorgio de Chirico (1888-1978).

Grande pintor que influenciou várias gerações e consagrou-se como autor das telas mais caras do mercado. Filho de ferroviários nascido em Restinga Seca, que em meados da década de 30, passou a trabalhar na Secretaria de Obras Públicas do Estado. Entediado pelo cotidiano de funcionário público, pintava para valer e, em 1942, ganhou uma bolsa para estudar pintura no Rio de Janeiro, na Escola Nacional de Belas Artes. Paisagens de becos habitam suas telas cariocas dos anos 40. Com uma delas, o óleo Lapa (1947), venceu o prêmio do Salão de Arte Moderna e ganhou uma viagem à Europa. Foi lá, dividindo-se entre Roma e Paris, que fortaleceu a formação. Na Itália estudou com o surrealista De Chirico, de quem admirava a pegada metafísica, e na França teve aulas com André Lhote.

De volta ao Rio de Janeiro, em 1950, começou a trilhar um caminho pessoal após descobrir os carretéis. Críticos estrangeiros, ao observarem as obras desse período, tendem a traçar analogias com o expressionismo abstrato de De Kooning e Pollock. Mas Iberê gostava era dos mestres – dos renascentistas, de Goya, de Rembrandt – e, entre os contemporâneos, preferia associar seu espírito criativo ao de Picasso, pelo desejo de retornar aos clássicos e dar a eles uma roupagem moderna. O artista era inseparável de sua obra, que nada tinha de simpática ou agradável. Os quadros de Iberê não repousam na parede para decorar, mas para buscar verdades. “Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói”, disse em 1993.

ANGÚSTIA – Iberê se consagrou ao transportar, com impecável rigor, a dor de várias fases de sua vida para as telas. Até os 40 anos, foi um aluno aplicado de mestres como o brasileiro Guignard e o italiano De Chirico. Pintava paisagens e cenas de rua. No final dos anos 50, levou para seus quadros os carretéis de linha vazios – único brinquedo de que dispunha na infância pobre passada em Restinga Seca, no interior do Rio Grande do Sul, onde nasceu. Depois, adensou as camadas de tinta e simplificou os traços em busca de um abstracionismo carregado de impacto e tragédia. Nos últimos anos, pintava figuras com rostos a um só tempo torturados e zombeteiros.

Iberê retornou à figuração há catorze anos, quando espelhou nas telas a maior tragédia de sua vida: o assassinato que cometeu em 1980, no Rio de Janeiro. Iberê vinha andando na rua com sua secretária, quando viu o projetista Sérgio Alexandre Esteves Areal brigando violentamente com a mulher. Areal virou-se para Iberê e o ameaçou por estar observando a cena. Empurrou a secretária do pintor e, depois, ele próprio. Agredido, Iberê puxou de uma pistola e desferiu dois tiros certeiros. Ficou preso um mês e, no julgamento, foi absolvido com a tese de legítima defesa. Depois disso, Iberê produziu telas carregadas de angústia, muitas delas auto-retratos. Os últimos trabalhos, sempre em grandes dimensões, chegavam a custar 46 000 dólares, preço maior do que o cobrado por outros artistas nacionais, como Tomie Ohtake ou Arcângelo Ianelli. Nem sempre apareciam compradores, mas os críticos concordam em que eram as melhores telas à disposição nas galerias, entre a produção brasileira recente.

No dia 9 de agosto, no ateliê de largas vidraças que mantinha em Porto Alegre, o pintor Iberê Camargo encerrou duas batalhas. Na primeira delas, naquela em que todos são vencidos, saiu derrotado: o câncer, que desde 1984 moía o esôfago, os pulmões e, finalmente, o cérebro, matou-o aos 79 anos. Da segunda batalha, aquela que ao final separa os grandes artistas dos comuns mortais, Iberê saiu laureado de glória. Viveu em constante luta contra os ditames dos marchands, desenvolveu um estilo próprio que influenciou várias gerações e consagrou-se como autor das telas mais caras do mercado. Passa à História como um dos grandes nomes da arte brasileira de todos os tempos.

FIGURAS RUPESTRES – Iberê foi também uma espécie de unanimidade nacional entre os que conheceram sua obra e, embora costumasse despertar a ciumeira de alguns artistas, que consideravam suas telas excessivamente sérias ou densas, foi aclamado por nomes de peso de todas as gerações. Não apenas sua obra atravessou com brilho todas as marchas e contra-marchas da arte nas últimas décadas como também chegou com vigor e uma inventividade raros de se encontrar nos novos artistas.

Iberê passou seu último dia num hospital, com insuficiência respiratória aguda. Foi no ateliê, porém, que ele escolheu passar o que sabia ser seus derradeiros dias. Como companhia, tinha sua mulher, Maria, e seus pincéis. Continuou pintando furiosamente e deixou concluída uma obra final, Solidão. Já acamado, convocou a imprensa para praticar sua retórica favorita, investindo contra o que chamava de “a mediocridade do país gigante com cabeça de galinha”. Chamou os donos de galerias de “débeis mentais” e identificou, na arte brasileira atual, “só bugigangas”. Eram declarações típicas de um artista que nunca frequentou as badalações das artes. “Se quiserem me ver de mau humor é só me convidar para um coquetel: não vou”, costumava avisar.

(Fonte: veja, 17 de agosto de 1994 –ANO 27 – N.° 33 – Edição 1353 – DATAS – Pág; 99)
(Fonte: www.mdemulher.abril.com.br – Reportagem: Jonas Lopes – Edição: MdeMulher – 08/09/2011)

(Fonte: veja, 22 de agosto de 1990 –ANO 23 – N.° 33 – Edição 1144 – ARTE – Pág: 118/119)

 

 

 

 

 

A Guerra dos Cem Anos

O gaúcho Iberê Camargo atacava suas telas com duas armas: excelência técnica e vigor emocional

Com o pincel na mão, ele partia para o ataque fulminante às telas. Por vezes, de jeito literal: após concluir as obras gigantes que deram o tom grave da fase final de sua carreira, nas quais figuras informes de olhos vazios fitam o expectador com arrepiante apatia, o pintor raspava a tinta sem dó, em ataques de fúria que podiam culminar na destruição das telas.

O artista conhecido pelos carretéis, pelos ciclistas e pelas já citadas figuras amorfas a que ele dava o nome de “idiotas”.

Esqueça o modernismo brejeiro de Tarsila do Amaral ou as bandeirinhas pueris de Alfredo Volpi: o mestre da arte nacional do século XX, ao homem com sua devida estatura foi: Iberê Camargo.

As centenas de óleos sobre tela, guaches, gravuras e desenhos testemunham como o pintor, entrincheirado em seu ateliê, travou uma guerra monumental contra tudo o que era brandido como regra pelos luminares das artes de seu tempo.

Solitárias eram, quase sempre, tais batalhas. Nascido em Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, em novembro de 1914, Camargo começou sua trajetória como um estranho num mundo essencialmente provinciano. Mais tarde, ao se mudar para a então capital do país, o Rio de Janeiro, o viés melancólico de sua obra destoava da irreverência e do colorido ufanista abraçados por boa parte dos medalhões do modernismo (nisso, tinha um único gêmeo espiritual: o gravurista Oswaldo Goeldi (1895-1961), que captava cenas de um Rio de Janeiro sorumbático bem distante do lugar-comum da “cidade maravilhosa”).

 

Quando o barco virou para o lado dos concretistas, nos anos 1950, Camargo resistiu de forma heroica a ser levado de roldão por esse modismo de vanguarda. “É preferível ser um verme mas ser você mesmo”, dizia. Ignorando os embates enfadonhos dos críticos sobre a suposta oposição entre a pintura abstrata e a figuração, ele trafegava de uma a outra conforme lhe dava na telha.

A obsessão em pintar os carretéis com que brincava na infância foi inaugurada com o isolamento em seu ateliê carioca, em razão de uma hérnia de disco, em 1956. De repente, porém, os carretéis como que se desfizeram no ar, dando lugar a telas feitas de uma convulsão de cores e pinceladas grossas.

No fim da vida, veio outra guinada extraordinária: ele passou a retratar patéticos ciclistas que transitam do nada a lugar nenhum, além das fantasmagóricas idiotas.

Embora tenha obtido sucesso em vida, seu temperamento irascível o condenaria a ser um eterno outsider. Negando-se a fazer concessões ao gosto mediano, Camargo certa vez censurou um amigo por pintar quadros com motivo florais.

“Flor foi um acesso de frescura que Deus teve”, tascou. Pai de uma única filha, fruto de uma paixão da juventude, o artista se irritava com crianças. Incomodado com a algazarra de uma quadra ao lado de seu ateliê, transformou-o num bunker à prova de som. Paranoico com a violência do Rio de Janeiro, tinha porte de arma e envolveu-se num incidente que mancharia sua biografia.

 

Em dezembro de 1980, o sexagenário pintor saiu de casa com sua secretária para comprar cartões de Natal. No caminho, teria sido agredido por um engenheiro – e matou o sujeito com dois tiros. O trágico dos trópicos, ironicamente, tinha algo em comum com o trágico-mor da pintura, o italiano Caravaggio (1571-1610): o estigma de assassino. Depois de um mês na cadeia e da absolvição por legítima defesa, ele voltou para seu estado de origem. É em Porto Alegre, num prédio estupendo projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza, que hoje funciona a Fundação Iberê Camargo.

 

As razões que alçam Camargo a um lugar superior perante seus rivais nativos: Ele tinha uma fé inabalável  na excelência técnica. Foi aluno do pintor metafísico Giorgio de Chirico, na Itália, e do reputado André Lothe, na França.

 

E seu nome era trabalho: passava não raro mais de catorze horas por dia em busca da composição perfeita. Nesse ponto, sua obra tem muito a dizer ao Brasil atual. Inimigo do clima de esculhambação geral de que se via cercado, Camargo moveu uma cruzada pela redução de impostos para a compra de boas tintas importadas.

 

Era ácido ao denunciar a “mediocridade do país gigante com cabeça de galinha”. Mas o que torna seu trabalho arrasador e atemporal é aquela centelha que só os grandes artistas possuem. Camargo exprime suas angústias com tal transparência que estar diante de suas telas é como levar uma paulada. Como o próprio explicava: “Eu não nasci para enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói.”

 

(Fonte: Veja, 7 de maio de 2014 – ANO 47 – Nº 19 – Edição 2 372 – ARTES & Espetáculos/ Por Marcelo Marthe – Pág: 112/113)

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