Iberê Bassani Camargo (1914-1994), artista plástico gaúcho, não gostava de rótulos

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Iberê Bassani Camargo (1914-1994), expressionista, abstrato ou figurativo? Na verdade, Iberê, artista plástico gaúcho nascido em Restinga Seca em 1914, não gostava de rótulos. Sua pintura foi entendida pela crítica como um misto das influências recebidas do brasileiro Guignard, do italiano De Chirico ou do francês André Lothe, artistas com os quais se iniciou na arte pictórica.

Foi ainda associada aos traços de Maurice Utrillo, Goya, Francis Bacon ou Willen de Kooning, pintores pelos quais nutria admiração. Mas um de seus mais pessoais atributos, a forma como transmitia dramaticidade, o levaria a ser considerado o maior nome do expressionismo brasileiro.
Desde sua primeira exposição, em 1942, no Palácio Piratini, até sua morte, decorrente do câncer, em agosto de 1994, Iberê expôs em países como Estados Unidos, México, Peru, Japão, Itália e Suíça.
Recebeu prêmios no Salão Nacional de Belas Artes em 1945 e 1947 e na Bienal Internacional de São Paulo, em 1959. Foi professor na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro, onde também ensinou técnicas de duas outras vertentes de sua arte, o desenho e a gravura. Algumas de suas obras são Paisagem de Santa Tereza (1956), Dentro da Mão (1942), Núcleo (1965) e Espaço com Figura III (1965).
Iberê Camargo, o artista que se tornou conhecido por pintar emoções, e não apenas figuras, morreu em 9 de agosto de 1994, no Rio de Janeiro.

(Fonte: Zero Hora – Porto Alegre, 30 de dezembro de 1999 – N° 12.551 – Século 20/Rio Grande – O artista plástico – Pág; 37)

 

 

 

A Guerra dos Cem Anos

O gaúcho Iberê Camargo atacava suas telas com duas armas: excelência técnica e vigor emocional

Com o pincel na mão, ele partia para o ataque fulminante às telas. Por vezes, de jeito literal: após concluir as obras gigantes que deram o tom grave da fase final de sua carreira, nas quais figuras informes de olhos vazios fitam o expectador com arrepiante apatia, o pintor raspava a tinta sem dó, em ataques de fúria que podiam culminar na destruição das telas.

O artista conhecido pelos carretéis, pelos ciclistas e pelas já citadas figuras amorfas a que ele dava o nome de “idiotas”.

Esqueça o modernismo brejeiro de Tarsila do Amaral ou as bandeirinhas pueris de Alfredo Volpi: o mestre da arte nacional do século XX, ao homem com sua devida estatura foi: Iberê Camargo.

As centenas de óleos sobre tela, guaches, gravuras e desenhos testemunham como o pintor, entrincheirado em seu ateliê, travou uma guerra monumental contra tudo o que era brandido como regra pelos luminares das artes de seu tempo.

Solitárias eram, quase sempre, tais batalhas. Nascido em Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, em novembro de 1914, Camargo começou sua trajetória como um estranho num mundo essencialmente provinciano. Mais tarde, ao se mudar para a então capital do país, o Rio de Janeiro, o viés melancólico de sua obra destoava da irreverência e do colorido ufanista abraçados por boa parte dos medalhões do modernismo (nisso, tinha um único gêmeo espiritual: o gravurista Oswaldo Goeldi (1895-1961), que captava cenas de um Rio de Janeiro sorumbático bem distante do lugar-comum da “cidade maravilhosa”).

Quando o barco virou para o lado dos concretistas, nos anos 1950, Camargo resistiu de forma heroica a ser levado de roldão por esse modismo de vanguarda. “É preferível ser um verme mas ser você mesmo”, dizia. Ignorando os embates enfadonhos dos críticos sobre a suposta oposição entre a pintura abstrata e a figuração, ele trafegava de uma a outra conforme lhe dava na telha.

A obsessão em pintar os carretéis com que brincava na infância foi inaugurada com o isolamento em seu ateliê carioca, em razão de uma hérnia de disco, em 1956. De repente, porém, os carretéis como que se desfizeram no ar, dando lugar a telas feitas de uma convulsão de cores e pinceladas grossas.

No fim da vida, veio outra guinada extraordinária: ele passou a retratar patéticos ciclistas que transitam do nada a lugar nenhum, além das fantasmagóricas idiotas.

Embora tenha obtido sucesso em vida, seu temperamento irascível o condenaria a ser um eterno outsider. Negando-se a fazer concessões ao gosto mediano, Camargo certa vez censurou um amigo por pintar quadros com motivo florais.

“Flor foi um acesso de frescura que Deus teve”, tascou. Pai de uma única filha, fruto de uma paixão da juventude, o artista se irritava com crianças. Incomodado com a algazarra de uma quadra ao lado de seu ateliê, transformou-o num bunker à prova de som. Paranoico com a violência do Rio de Janeiro, tinha porte de arma e envolveu-se num incidente que mancharia sua biografia.

Em dezembro de 1980, o sexagenário pintor saiu de casa com sua secretária para comprar cartões de Natal. No caminho, teria sido agredido por um engenheiro – e matou o sujeito com dois tiros. O trágico dos trópicos, ironicamente, tinha algo em comum com o trágico-mor da pintura, o italiano Caravaggio (1571-1610): o estigma de assassino. Depois de um mês na cadeia e da absolvição por legítima defesa, ele voltou para seu estado de origem. É em Porto Alegre, num prédio estupendo projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza, que hoje funciona a Fundação Iberê Camargo.

As razões que alçam Camargo a um lugar superior perante seus rivais nativos: Ele tinha uma fé inabalável  na excelência técnica. Foi aluno do pintor metafísico Giorgio de Chirico, na Itália, e do reputado André Lothe, na França.

E seu nome era trabalho: passava não raro mais de catorze horas por dia em busca da composição perfeita. Nesse ponto, sua obra tem muito a dizer ao Brasil atual. Inimigo do clima de esculhambação geral de que se via cercado, Camargo moveu uma cruzada pela redução de impostos para a compra de boas tintas importadas.

Era ácido ao denunciar a “mediocridade do país gigante com cabeça de galinha”. Mas o que torna seu trabalho arrasador e atemporal é aquela centelha que só os grandes artistas possuem. Camargo exprime suas angústias com tal transparência que estar diante de suas telas é como levar uma paulada. Como o próprio explicava: “Eu não nasci para enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói.”

(Fonte: Veja, 7 de maio de 2014 – ANO 47 – Nº 19 – Edição 2 372 – ARTES & Espetáculos/ Por Marcelo Marthe – Pág: 112/113)

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