Edgar Degas, artista francês que fez parte do movimento artístico conhecido como impressionismo.

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Gênio do gesto fugaz, o artista do banal e do efêmero

Como Degas partia de bailarinas para captar a glória do banal

Edgar Degas (Paris, 19 de julho de 1834 – Paris, 27 de setembro de 1917), artista francês que não gostava das homenagens e que ao morrer, aos 83 anos, isolado, neurastênico e quase cego, teve, como pedira, apenas estas simples palavras pronunciadas em seu enterro: “Ele gostava de desenho.” Fez parte do movimento artístico conhecido como impressionismo, embora suas obras possuíssem fortes elementos do Realismo e do Renascimento italiano. Suas obras, sobretudo da última fase, apresentam elementos do Modernismo.

As Passadeiras, tem-se, nesta única obra, pintada entre 1884 e 1886, uma súmula das trivialidades que habitavam a cabeça deste artista estranho, cáustico, às vezes terno, outras engraçadas, e certamente meio maníaco, que foi Degas – um dos gênios da pintura no século 19. Enxergar motivo de beleza e reflexão na imagem de um quartinho onde duas passadeiras se entendiam com seu ofício – eis, por si só, uma revolução.

Mas há mais em As Passadeiras. Nele estão reunidos os dois principais temas, as linhas de força do trabalho de Degas – o banal e o fugaz. Com um bocejo na boca e um ferro na mão, Degas passeou pelo seu século, espalhando as brasas de um dos grandes movimentos se subversão da história da pintura. Degas gostava mesmo de desenho e, sobretudo, gostava de desenhar bailarinas. A linha era o forte desse filho de banqueiro, e em especial a linha que captura um movimento – seja o da perna de uma bailarina, seja o de um cavalo, outro de seus grandes temas. “Todos exploram as possibilidades da cor. Já eu digo sempre que explorem o desenho. É muito mais rico”, afirmava Degas. Outros pintores do período se impregnaram da cor a ponto de poderem ser identificados com elas – Van Gogh com amarelo, Cézanne com o azul. Degas é desenho, movimento – e o que há de mais espetacular num movimento. Degas era fascinado por todas as formas de equilíbrio.

Olhando o fenômeno pelo avesso, mas afinal reforçando a mesma constatação, o poeta francês Paul Valéry, que foi amigo de Degas, ressaltava a importância do ponto de apoio em que os personagens de Degas realizam seus movimentos vertiginosos e dizia: “Degas é dos raros pintores que deram ao chão sua importância”. Não é que o chão apareça sempre em sua obra – muitas vezes, ele apenas se adivinha. Mas ele é sempre o obrigatório ponto de referência. É a lei da gravidade – e o que se pode fazer, contra ou a favor dela – o que fascinava Degas.

MOVIMENTO GREGO – A impressão consagrada de que Degas era apenas o pintor das bailarinas, que no entanto, era mesmo o pintor das bailarinas. A presença massacrante desse tema na obra do artista revela-se pelo fato de que pelo menos durante quarenta anos ele lhe foi fiel e dedicou-lhe mais de 1 500 obras. Por que tanta insistência nas bailarinas? “Porque é a única forma de tentar reencontrar o movimento dos gregos”, respondeu Degas certa vez. Em outra ocasião, disse: “Será que não percebem que minha bailarinas são só pretexto para o movimento?”

As bailarinas começam a aparecer na obra de Degas de forma discreta, como pano de fundo – como ocorre no quadro A Orquestra da Ópera, pintado por volta de 1870, quando o autor tinha 35 anos. Esse quadro é várias coisas ao mesmo tempo, em primeiro lugar um retrato de Désiré Dihau, um amigo de Degas – músico que aparece tocando fagote no primeiro plano. Em segundo lugar, o quadro mostra os retratos suplementares de diversos outros amigos e conhecidos do autor, músicos de verdade ou fingindo sê-lo. Enfim, além de ser uma das primeiras obras-primas do Degas livre do academicismo e dos temas clássicos de sua formação, A Orquestra da Ópera tem a importância histórica de proporcionar a entrada em cena das bailarinas – ainda que relegadas apenas a um grupo de pernas e saiotes imprecisos no fundo da composição.

Em breve, elas farão sua irrupção plena na obra do artista – bailarinas de costas e de frente, de pernas abertas ou fechadas, bonitas e feias. Diante de tamanho batalhão de bailarinas, porém, o espectador pode sofrer a tentação do paradoxo e se perguntar outra vez: afinal, se ele era o pintor das bailarinas, por que elas nem sempre dançam? Há pelo menos tantas bailarinas em repouso, na obra de Degas, quanto em movimento – bailarinas sentadas, cansadas, nos bastidores esperando o momento de entrar em cena, lendo um jornal. No quadro Os Ensaios de um Balé no Palco, pintado em 1874, há um grupo que, ao fundo, realmente executa movimentos de balé, sob o olhar de um diretor sentado. Mas o destaque é para o grupo da esquerda – à espera de sua vez ou talvez já dispensado de seu ato. Ali, uma das bailarinas amarra as sapatilhas, outra coça as costas, uma terceira se espreguiça e boceja como a passadeira de roupa. Esse, sem dúvida, é o balé que Degas realmente quer mostrar. Ele está lembrando que mesmo seres tão delicados e elegantes como as bailarinas são movidos por compulsões animais, como o ato de se coçar ou bocejar. Está-se agora mais perto do que parece da verdade do autor. Não, Degas não é apenas o pintor das bailarinas, mas o artista do banal e do efêmero.

“REALISTA” – O banal é elemento comum a toda a geração de impressionistas e serviu como uma das ferramentas com as quais esse punhado de pintores forçou as portas para aquilo que é identificado como arte moderna. Nenhum impressionista, porém, foi tão fundo como Degas – a ponto de se obcecar pela coceira que aflige os seres humanos. Ainda antes de pintar bailarinas Degas começou a pintar cavalos de corrida – o que também faria pela vida afora. Nisso há mais lógica do que faz supor o simples paralelismo entre o movimento das pernas dos cavalos e das pernas que dançam. Há também a lógica da animalidade – de seres movidos pelo instinto como são tantas vezes as bailarinas. No quadro Cavalos de Corrida Diante das Tribunas, da década de 1860, o último cavalo, ao fundo, executa um movimento improvável, quase despencando – como suas bailarinas despencam tantas vezes de cansaço e tédio. Degas, que não gostava de se dizer “impressionista” e sim “realista”, foi cruel com seus personagens – e só não foi criminoso porque os salvou aqui com uma pitada de humor, ali com a ternura. Sua própria relação com a arte traía algo de violência. “A arte é um vício”, dizia, “e não se casa com ela legitimamente. É preciso violá-la.”

Degas nunca se casou. Dizia ele que jamais poderia suportar a ideia de viver com alguém que se aproximasse de seu cavalete e dissesse: “Bonito isso que você está fazendo aí”. Em compensação, esposou manias – pelos cavalos, pelas bailarinas e, finalmente, por ordem de entrada em cena em sua obra, pelas mulheres tomando banho. O banal e o fugaz, aqui, passam a correr pela via expressa em que, fosse ele menos dotado pelo gênio, alguns veriam doença. As banhistas de Degas quase sempre estão de costas. A nuca é para ele um ponto de atração que, dir-se-ia, gera até vertigem. E o bailado dos gestos no banho supera o que já se vira nas bailarinas – numa hora a mulher ao banho lava as costas, na outra, enxuga os pés ou esfrega a perna, como em Mulher no Banho Lavando a Perna.

“As mulheres não gostam de mim porque as apresento sem nenhum enfeite, mas como bestas humanas que se ocupam de seus próprios corpos”, disse ele. O nu, tradicionalmente, na história da pintura, foi apresentado como uma glorificação da mulher, que mostrava seus esplendores pressupondo um público. Degas não sugere público – mas flagra suas mulheres. “É como se elas fossem observadas pelo buraco da fechadura”, confessava ele.

CONTRA DREYFUS – Degas, o artista aplicado que na juventude pintava quadros históricos, como era de rigor, e que aos 21 anos mostrou-se, num auto-retrato, como um perfeito burguês, acabou assim – com fama, que não fazia nada para desmentir, de misógino e até com a suspeita de ser um maníaco. “A mulher de Degas está reduzida à gesticulação de seus membros, ao aspecto de seu corpo, considerada como fêmea e expressa só em sua animalidade, como se se tratasse de um tratado de zoologia reclamando uma ilustração superior”, escreveu, entre admirativo e escandalizado, em 1894, o crítico Gustave Geffroy.

Na política, Degas foi mais do que a favor da ordem estabelecida – foi o modelo completo e acabado do reacionário, que fugiu da Comuna quando ela toou conta de Paris, em 1870. O auge de seu conservadorismo político foi quando, já com mais de 60 anos, ficou violentamente contra o capitão Alfred Dreyfus – o oficial de origem judaica que acusado injustamente de espionagem, transformou-se em centro de uma das maiores controvérsias que já agitaram a França. Degas se tornou violentamente anti-semita e por causa disso perdeu amigos como o pintor Claude Monet e o escritor Emile Zola, um dos maiores defensores de Dreyfus.

O velho irascível só pode ser resgatado de suas estripulias na banheira e da exacerbação de suas posições políticas porque era dotado de um gênio que, na arte, levou-o ao caminho da revolução. Mais uma vez ficou comprovado, como Karl Marx observara a respeito do escritor Honoré de Balzac, que as posições políticas de um autor – no caso, o conservadorismo de Balzac – podem nada ter a haver com a prática de sua arte. O bem-nascido Degas, criado nos valores estáveis e na abundância de meios, bem podia seguir os caminhos seguros ensinados pelo posto vigente e pelas normas da Academia de Belas Artes francesa. Em vez disso, como uma bailarina que arrisca o desequilíbrio, alinhou-se entre aqueles que vão arrombar as cercas dessa coisa meio indefinível e sempre perigosa a que se chama de modernidade. “A arte é o falso”, dizia ele. “Não é à toa que arte e artifício são palavras com a mesma origem.” Na arte, ao contrário da vida, em vez da segurança, ele procurava a provocação e, em vez da certeza, a experimentação. Amante da fotografia, que cultivou, Degas foi buscar nela a inclinação pelo flagrante imprevisto que legou aos amantes da imagem que se sucederiam. Ele transformou a pintura num clipe, e o fugaz e o banal que disso resultaram renderam-lhe a permanência na História.

Depois de sua morte, em 1917, cerca de 150 pequenos trabalhos de cera e argila foram encontrados no seu estúdio. Muitos deles estavam em tão mau estado que não puderam ser recuperados. Entre 1919 e 1921, porém, a Fundição Hébrard realizou 22 séries completas dos 72 originais selecionados pelos inventariantes. Apesar da qualidade da coleção, são muitos os críticos que sustentam que Degas nunca pretendeu fazer escultura, mas modelos para suas pinturas e desenhos. Afinal, a única escultura que ele mostrou em vida foi a Bailarina de 14 Anos, na exposição expressionista de 1881.

(Fonte: Veja, 24 de fevereiro de 1988 – ANO 20 – Nº 8 – Edição n° 1016 – ARTE/ Por Roberto Pompeu de Toledo – Pág; 126/129)

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