Djanira da Motta e Silva, uma vida conquistada à morte, uma obra feita das cores do Brasil.

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Djanira: sem trair as origens

Djanira: trabalhando com fé até o final

Uma vida conquistada à morte, uma obra feita das cores do Brasil

Djanira da Motta e Silva (Avaré (SP), 20 de junho de 1914 – Rio de Janeiro (RJ), 31 de maio de 1979), pintora, desenhista, ilustradora, cartazista, cenógrafa e gravadora. Uma mulher cansada e enferma, em cujo rosto uma infância e juventude de miséria e doença deixaram profundas sequelas. Assim é a pintora Djanira, ex-tuberculosa, diabética. No mesmo rosto, contudo, reflete-se uma serenidade intensa e uma insuspeitada alegria quando ela empunha os pincéis para recriar, com amor e zelo, a paisagem física e humana de seu país. Possivelmente, nenhum outro artista nacional terá fixado, melhor do que ela, a fisionomia do Brasil e dos brasileiros.

Camponeses, pescadores, vaqueiros, operários, índios, negros, mulatos e brancos são os personagens de sua obra, povoada também, à vezes, por santos católicos e orixás africanos. Do mesmo modo, seduziram-na as cidades coloniais e as variadas paisagens que visitou no Maranhão ou em Santa Catarina, nas praias do litoral fluminense, ou entre os montes de Minas Gerais. Tudo isso ela viu pessoalmente, e tudo retratou, achando para cada tema a forma exata e o tom preciso. E parte do que realizou, em quase quarenta anos de carreira, foi exposto numa retrospectiva do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro: 122 pinturas, setenta desenhos e gravuras e uma tapeçaria, cronologicamente dispostos em nove amplas salas.

Angústias – Djanira nasceu em 20 de junho de 1914 em Avaré, pequena cidade da região cafeeira do Estado de São Paulo. Seu pai, dentista ambulante, era de origem austríaca. Nas veias maternas, corriam sangue de índios. Aos 4 anos, a menina foi levada pelo pai para Porto União, entre o Paraná e Santa Catarina, de onde sairia, já moça, para residir sozinha em São Paulo. Na metrópole, tornou-se vendedora de rua e viveu uma existência miserável, de privações e angústias. Logo surgiria a doença – e Djanira era internada no Sanatório Dória, em São José dos Campos, desenganada pelos médicos. Numa noite de solidão, realizou seu primeiro desenho: um Cristo na cruz, tosco e patético, que ela conservou entre seus bens mais preciosos.

Djanira venceria a tuberculose e não mais abandonaria o desenho. Já no Rio de Janeiro, abriu uma modesta pensão no bairro de Santa Teresa – forma de sobrevivência imediata. Mas passou a alternar essa atividade com o manejo das tintas que o magro orçamento lhe permitia comprar. Um de seus hóspedes na pensão era um estrangeiro, que a guerra na Europa espantara para o Brasil: o pintor romeno Emeric Marcier. Diante do evidente talento de Djanira, ele lhe propôs um negócio: casa e comida em troca de conselhos e orientação como artista. Durante cinco meses, Marcier tornou-se, por assim dizer, o professor de Djanira. Logo depois, contudo, ela começou a andar sozinha, fazendo grandes e visíveis progressos.

INCONFUNDÍVEL – Sua projeção começou aí. Nos cinco anos seguintes já havia exposto em vários países da América Latina e nos Estados Unidos. Foi também neste período que sua pintura amadureceu e ganhou a forma que teria até o fim. A pintura de Djanira, dizem todos os estudiosos, é antes de tudo brasileira. Ela não se fez rapidamente nem facilmente. Como é próprio de todos os habitantes do chamado mundo periférico, sua autenticidade nacional jazia soterrada, misturada com a infância na roça, enquanto ela buscava uma identificação com o que não era nacional.

Assim Djanira foi encontrar em outros artistas – especialmente no russo Marc Chagall – o impulso para que, pouco a pouco, fossem despontando em suas telas os verdes, os azuis, os rosas e os marrons da paisagem brasileira. E, um dia, Djanira saltou fora, à vista de todos, com suas qualidades e defeitos – mas inconfundível. Sua pintura se aproximou da linguagem dos artistas ingênuos ou ditos primitivos, muito embora fosse, de fato, uma sábia elaboração de tudo o que aprendera. Efetivamente, ela recuperou o contato primeiro com a realidade, despojou-se das exterioridades “modernas” e criou uma poética a partir do mais simples. Daí a originalidade e permanente frescor de sua arte.

Daí em diante, sua carreira rapidamente se construiu. Estreou em 1942, no Salão de Belas Artes. Entre 1945 e 1947, esteve nos Estados Unidos, numa viagem fundamental para a evolução de sua pintura. De volta, passou a viajar constantemente dentro do Brasil. E, na década de 50, estava finalmente consagrada, é a grande dama da pintura no país, respeitada pela crítica, que nela via um dos mais puros intérpretes do povo.

No ponto culminante – Um colorido triste e soturno dominava os primeiro quadros de Djanira, na década de 40. Pouco a pouco, a cor foi se avivando, e o desenho, a princípio rudimentar, se apurou. Mas o que definitivamente caracterizou a sua arte foi o senso de construção formal que parece tê-la acompanhado desde o início. De tal modo que muitos quadros se aproximam da abstração, sem por isso deixarem de representar formas conhecidas: um engenho, uma usina, um mecanismo. Embora baseada inteiramente na tradição popular, e tendo partido de uma visão ingênua dos seres e das coisas, Djanira atingiu, com o passar dos anos, uma depuração e uma contenção raras na arte nacional.

ETERNA – Casada desde 1950 com o professor José Motta e Silva, Djanira não deixou que sua saúde precária abafasse sua imensa curiosidade de conhecer pessoas e lugares. Assim, depois de correr o mundo, chegando até Moscou (e às obras de Chagall), percorreu a Bahia, Minas Gerais e Santa Catarina, onde desceu às minas de carvão. Passou seis meses, depois de viajar em lombo de burro, com os índios Kanela, procurando sua origem indígena. Tornou-se irmã leiga da Ordem das Carmelitas em 1970, quando esteve internada para mais uma de suas operações.

Não há dúvida de que Djanira foi sincera quando afirmava: “Como pintora, habito as ricas vertentes populares do Brasil, passando pelos sítios nacionalistas de mestres como Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Tenho raízes plantadas na terra, não traio minhas origens, nem me envergonho de ser uma nativa. Confio no desenvolvimento de uma arte autenticamente nossa.” A arte de pintar, para Djanira, era a arte de manter viva e eterna a menina da pequena cidade de Porto União.

(Fonte: Veja, 20 de outubro de 1976 – Edição n° 424 – ARTE – Pág; 152)
(Fonte: Veja, 6 de junho de 1979 – Edição n° 561 – ARTE – Pág; 113/114)

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