Astor Piazzola, revolucionou a música argentina e se tornou ídolo no jazz e nas salas de concerto.

0
Powered by Rock Convert

Piazzola: emprestando ao tango a nobreza das grandes tragédias

Astor Piazzola (Mar del Plata, 11 de março de 1921 – 4 de julho de 1992), bandoneonista e compositor.
O compositor que revolucionou a música argentina e se tornou ídolo no jazz e nas salas de concerto. Existem gêneros musicais que se renovam e acabam servindo de trilha sonora a várias gerações. Outros estilos aparecem e somem logo depois, e quando são revisitados servem apenas para evocar, com uma ponta de nostalgia, uma época que se perdeu. O tango pertence a essa categoria. Seus fãs mais radicais condenam até as regravações do gênero. Há quem ache que a voz de Carlos Gardel só pode ser ouvida num ancestral aparelho de 78 rotações, em meio a uma montoeira de chiados, para soar autêntica. O músico argentino Astor Piazzola dedicou sua vida a provar que o tango não estava morto, que não era um fóssil musical destinado apenas a embalar as lembranças dos velhos, e sim um gênero rico em possibilidades que podia ser revitalizado. Ao misturar a tristeza do tango com o virtuosismo do jazz e a ousadia da música erudita contemporânea, Piazzola fez muito mais do que renovar o tango. Atuou também na direção contrária, injetando influências portenhas no jazz e na música de concerto do século XX.

Aos 14 anos de idade, época em que era um aplicado estudante de bandoneon, foi convidado para acompanhar uma gravação do monstro sagrado Carlos Gardel. Nos estertores dos anos 40, o jovem Piazolla considerava o tango um gênero algo ultrapassado, mas mesmo assim não se fez de rogado. Tocou com o virtuosismo dos adolescentes-prodígio. Depois da performance, fez jus a um comentário de Gardel que o acompanharia como um estigma ao longo de toda a carreira. Disse o intérprete de Mi Buenos Aires Querido: “Você sabe tudo de bandoneon, mas não entende nada de tango”. Piazzola deu de ombros e tratou de provar o contrário. Empreendeu na tradição portenha uma revolução comparável à de Tom Jobim na música brasileira. Da mesma forma que Jobim bebeu em Debussy e Satie para injetar no samba de morro acordes impressionistas, criando a bossa nova, Piazzola estudou com os grandes mestres do cenário clássico – de Alberto Ginastera, uma espécie de Villa-Lobos argentino, aos consagrados Hermann Scherchen e Nadia Boulanger – para adquirir domínio técnico sobre a arte da composição. Usou esse domínio técnico para modificar o tango.

EXÍLIO – Também como Tom Jobim, que chegou a ser acusado de americanizar a música brasileira, Piazzola foi duramente criticado em seu país. Em vez de se abater, deduziu que a Argentina tinha ficado pequena demais para a sua música. Morou um tempo nos Estados Unidos e, durante a ditadura militar em seu país, fixou residência na França. A medida que se consagrava como grande renovador do tango argentino, despontava como um dos grandes nomes da música internacional. De um lado, suas músicas Adiós Nonino, Balada para um Loco, Muerte de um Angel e Contrabajissimo se tornavam clássicos comparáveis a La Cumparsita e El Dia em que Mi Quieras, por mais que fossem combatidas pelos puristas da música portenha. De outro, as composições de Piazzola foram caminhando cada vez mais para o lado do experimentalismo, angariando respeito para o compositor nos meios da música de concerto. Seu disco em parceria com Gerry Lulligan se tornou um clássico do jazz. Em sua última turnê pelo Brasil, nos meses de agosto e setembro de 1989, Piazzola apresentou um punhado de composições desconcertantes, com influências que iam de Bartók a Stravinsky. Sem saber, os brasileiros estavam assistindo ao testamento musical do gênio.

Um ano depois dessa turnê, Piazzola, que se apresentava no Brasil com freqüência – achava que sua música era bem recebida por aqui porque a bossa nova havia habiatuado as platéias as ousadias harmônicas -, sofreu o derrame cerebral que o deixou semiplégico até morrer no último sábado dia 4 de julho de 1992. Passou os dois últimos anos de sua vida internado no no Sanatório Santíssima Trindade, em Palermo, bairro de Buenos Aires. Seu maior sucesso recente foi a magistral trilha sonora para o filme Tangos, O Exílio de Gardel, lançado em 1985. O filme tem pontos em comum com a vida de Piazzola. Inovador e comovente como sua música, Tangos narra a vida de um grupo de argentinos exilados em Paris durante o regime militar em seu país – eles se preparam para voltar a pátria e não sabem se terão boa acolhida. A história se ajusta a música de Piazzola, compositor que se exilou nos clássicos e no jazz para, depois, volver e revolucionar a música que fazia em seu país – por mais que os tradicionalistas tivessem medo de um ajuste de contas renovador com o passado. Como um foragido que retorna a casa, Piazzola encontrou percalços nesse caminho de volta, mas acabou por mostrar que criatividade e ousadia poderiam se mesclar maravilhosamente ao sentido dramático que norteia o tango tradicional. A ele, Piazzola emprestou uma dose de requinte e invenção que fez com que o gênero deixasse de soar como simples drama para atintir a nobreza das grandes tragédias.

(Fonte: Veja, 15 de julho de 1992 – ANO 25 – N° 29 – Edição n° 1243 – Memória – Pág; 82)

Powered by Rock Convert
Share.