Denise Bergon, freira francesa que desafiou o nazismo para abrigar meninos e meninas durante a II Guerra Mundial

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A freira francesa que desafiou o nazismo e escondeu 83 crianças judias

 

Denise Bergon usou seu convento para abrigar meninos e meninas durante a Segunda Guerra Mundial

 

 

Denise Bergon (nascida em 1912 – 4 de fevereiro de 2006), freira francesa que usou seu convento para abrigar meninos e meninas durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Hélène Bach tinha 12 anos e estava brincando no jardim com sua irmã mais nova, Ida, quando viu um veículo militar se aproximando.

Elas já haviam fugido, com a mãe, de sua casa, na região francesa da Alsácia-Lorena, depois da invasão da França pela Alemanha nazista, em maio de 1940. Todas viajavam na direção de uma “zona livre” instalada no sul francês.

A família estava dividida: para reduzir o risco de serem todos pegos, o pai, Aron, e a filha mais velha, Annie, viajavam separadamente. Mas quando ambos foram detidos, em 1941, e levados a um campo de detenção em Tours (centro da França), a mãe de Hélène decidiu alugar uma casa ali perto. E, passado um ano, elas ainda estavam lá.

Foi quando chegaram os soldados alemães, e as duas irmãs correram para avisar a mãe, que as ordenou que se escondessem na floresta.

“Eu estava segurando a mão da minha irmã, mas ela não queria vir junto”, relembra Hélène. “Ela queria voltar para a minha mãe. Eu conseguia escutar os alemães falando. Soltei a mão dela, e ela correu de volta.”

 

 

A mãe de Helene e Anne, Cecile Bach. (Foto: BBC News Brasil)

 

 

Sozinha, Hélène se escondeu até achar que estava em segurança.

 

Quando voltou para a casa, encontrou um pouco de dinheiro deixado pela mãe em cima da mesa.

 

“Ela sabia que eu ia voltar”, diz.

 

Hélène mudou-se para a casa de uma amiga ali perto. Ela nunca mais viu sua mãe ou sua irmã mais nova.

Enquanto isso, Annie, 16, também escapava por um triz. Depois de um ano no campo de detenção em Tours, ela fugiu por uma cerca e conseguiu chegar à casa de uma tia em Toulouse. Mas tampouco encontrou segurança: a família da tia não era oficialmente registrada como judaica e podia fingir ser católica, mas esse não era o caso de Annie.

 

Em um dia de outono de 1942, a polícia bateu à porta, pedindo os documentos de todos os presentes.

 

“A sorte da minha vida é que minha prima havia saído para comprar pão”, conta Annie, que pôde se passar pela prima ausente. Na mesma época, chegou uma carta de Hélène, ainda escondida com a amiga. A família conseguiu organizar o resgate da menina, com a ajuda da Resistência Francesa, que foi buscá-la.

 

“Somos todos da raça humana”

 

A situação ficava mais difícil na França. O chamado governo de Vichy, regime político instaurado no país após a ocupação alemã durante a Segunda Guerra, estabeleceu leis que permitiram que judeus fossem detidos e tivessem seus bens confiscados.

 

Em 23 de agosto de 1942, o cardeal de Toulouse, Jules-Geraud Saliège, escreveu uma carta para seus clérigos, pedindo que ela fosse recitada nas congregações.

 

“Na nossa diocese, tem havido cenas comoventes”, escreveu. “Crianças, mulheres, homens, pais e mães são tratados como um rebanho. Membros de uma mesma família são separados e enviados a destinos desconhecidos. Os judeus são homens, as judias são mulheres. Eles são parte da raça humana; são nossos irmãos, como tantos outros. Um cristão não pode esquecer isso.”

O cardeal protestava em um momento em que grande parte da cúpula católica francesa permanecia em silêncio: de cem bispos do país, apenas seis falaram publicamente contra o regime nazista.

Mas as palavras de Saliège ressonaram com uma freira em particular: Denise Bergon, a jovem madre superiora do Convento de Notre Dame de Massip em Capdenac, a 150 km de Toulouse.

 

“Aquele chamado nos comoveu. (…) Uma resposta favorável àquela carta era um testamento da força da nossa religião, acima de partidos e de raças”, escreveria Denise depois da guerra, em 1946. “Era também um ato de patriotismo, já que defendendo os oprimidos estávamos desafiando os perseguidores.”

 

Esconderijo para crianças

 

O convento tinha um colégio interno, e Denise sabia que seria possível esconder as crianças judias entre seus alunos católicos. Seu medo era de colocar em risco a vida das demais freiras.

 

Ela escreveu a Saliège pedindo conselhos. Em seu diário, ela anotou a resposta do cardeal: “Vamos mentir, vamos mentir, minha filha, enquanto estivermos salvando vidas humanas”.

No inverno francês de 1942, Denise começou a receber crianças judias que estavam se escondendo na região dos bosques, vales e desfiladeiros próximos a Capdenac, conhecida como L’Aveyron.

Foram, no total, 83 crianças abrigadas no convento, entre elas Annie — depois que sua tia achou que não era mais seguro ela ficar em Toulouse — e, pouco depois, Hélène, levada diretamente ao local pela Resistência Francesa.

“Ela era como uma mãe”

Hélène finalmente se sentiu segura, embora fortemente emocionada.

“No começo, a senhora Bergon me levou para um quarto e tentou me fazer sentir como se meus pais estivessem lá. Ela era como uma mãe”, relembra.

 

Ao mesmo tempo, Hélène não conseguia parar de pensar na irmã mais nova, Ida.

“Todo fim de dia, fazíamos primeiro nossa lição de casa e daí podíamos sair para brincar. Eu sempre pensava que, se minha irmã não tivesse largado da minha mão, poderia estar ali no convento comigo.”

 

Outro menino judeu abrigado no convento era Albert Seifer, alguns anos mais velho que as irmãs.

 

“Rodeados de grandes muros, nós nos sentíamos como se estivéssemos em uma fortaleza”, conta ele. “Éramos muito felizes ali. Não sentíamos (que havia) uma guerra, apesar do fato de que estávamos cercados pelo perigo.”

 

Pais e responsáveis pelas crianças costumavam mandar dinheiro, joias ou outros bens de valor para ajudar a manter as crianças. Denise mantinha registros detalhados de cada caso.

 

“Desde 1944, o recolhimento de judeus (pelos nazistas) se tornaram mais numerosos”, ela escreveria em 1946.

 

“Pedidos vinham de todos os lados, e recebemos 15 menininhas, algumas das quais haviam escapado miraculosamente da Gestapo (polícia nazista). (…) Elas simplesmente nos tornaram as nossas crianças, e nos comprometemos a enfrentar tudo para que pudéssemos devolvê-las em segurança para suas famílias.”

Além da irmã Denise, apenas a diretora da escola, Marguerite Rocques, o capelão e outras duas freiras sabiam da verdadeira origem judaica das crianças. O fato de elas não terem familiaridade com rituais católicos era uma ameaça, mas uma explicação para isso foi inventada.

 

“Éramos do leste da França, onde havia muitas cidades industriais e trabalhadores comunistas”, conta Annie. “Então nos passamos por crianças comunistas que não sabiam nada de religião.”

 

Quando mais a guerra se prolongava, no entanto, mais perigosa ficava a situação. Denise começou a se preocupar com possíveis desfechos.

 

“Embora todos os documentos comprometedores e todas as joias das famílias das crianças estejam escondidas nos cantos mais secretos da casa, não nos sentíamos seguras”, ela escreveu em seu diário de 1946. “Então, tarde da noite, quando todos dormiam, cavamos um buraco no jardim do convento para esconder as coisas, o mais fundo possível.”

 

“Fomos denunciados”

 

Em maio de 1944, membros da elite da SS (ramo militar do Partido Nazista alemão) chegaram à região. Na mesma época, Annie lembra que um membro da Resistência apareceu com um aviso alarmante.

 

“A campainha tocou, e eu abri”, conta ela. “Um jovem apareceu pedindo para falar urgente com a diretora, dizendo que havíamos sido denunciados. Havia corrido a informação de que o convento escondia crianças judias.”

 

Annie ao lado do alçapão da capela. (Foto: BBC News Brasil)

 

Denise elaborou um plano com a Resistência, que concordou em fazer disparos de alerta quando os inimigos estivessem se aproximando. “As crianças iriam dormir, uma mais velha fazendo par com uma mais nova, e, à primeira detonação ouvida durante a noite, em silêncio mas com pressa, elas devem correr para as florestas e deixar a casa para os invasores”, escreveu Denise em 1946.

 

Mas, no fim das contas, ela decidiu esconder as crianças, sem esperar os tiros de aviso. Um grupo, o de Annie, seria levado à capela, para um pequeno esconderijo subterrâneo.

 

Sete crianças permaneceram cinco dias ali, sem poder ficar de pé ou deitadas. Durante algumas horas da manhã, elas conseguiam sair para comer e usar o banheiro. O ar vinha de um pequeno duto de ventilação.

 

“Depois de cinco dias, não era mais possível aguentar”, conta Annie.

 

Aqueles dias ali marcaram Annie para a vida toda — ela só consegue adormecer em ambientes com luz. Hélène teve mais sorte: passou aqueles dias abrigada com uma família local.

 

Por sua vez, a SS acabou não entrando no convento, mas deixou um rastro de destruição ao redor. Membros da Resistência foram mortos e largados nas ruas.

Denise quis prestar homenagem às vítimas, e pediu a Annie que a ajudasse a levar flores para cada um dos corpos.

Em junho de 1944, aquela divisão da SS foi enviada ao norte, para ajudar no combate às tropas dos Aliados que desembarcavam na Normandia. No caminho, ajudaram a promover dois massacres de membros da Resistência. Depois, ao chegarem à Normandia, foram derrotados por uma divisão do Exército americano.

Depois que o sul da França foi liberado, em agosto de 1944, as crianças judias aos poucos foram deixando o convento. Albert Seifer voltou a se reunir com sua família, incluindo seu pai, que conseguiu sobreviver a Auschwitz.

Annie e Hélène não tiveram a mesma sorte.

Embora sua tia tenha sobrevivido, seus pais e a irmã caçula, Ida, foram mortos em Auschwitz.

Annie se mudou para Toulouse, casou-se, teve filhos e recentemente se tornou bisavó. Ela mantém contato regular com Albert, hoje com 90 anos.

Hélène se casou, teve um filho e estabeleceu-se em Richmond, no sul de Londres.

Aos 94 e 90 anos, respectivamente, as duas irmãs viajam entre Toulouse e Londres sempre que podem, para se visitar.

Elas se referem à irmã Denise como “notre dame de la guerre” — nossa senhora da guerra. Contam que foi difícil se despedir dela, e a visitaram regularmente até sua morte.

Hélène (esquerda), Annie (direita) com a Irmã Denise e o memorial – Albert Seifer está parado atrás. (Foto: BBC News Brasil)

Quando os filhos de Annie eram pequenos, ela os levava para visitar o convento, de forma a manter sua história viva — e ensiná-los sobre o sofrimento vivido pelo povo judeu.

Denise permaneceu no convento após a guerra e trabalhou até morrer, em 2006, aos 94 anos. Ao longo da vida, ajudou também crianças vulneráveis e imigrantes do norte da África.

Em 1980, ela foi honrada pelo Museu do Holocausto, em Israel, como um dos Justos Entre as Nações, reconhecimento dado a não-judeus que ajudaram judeus durante o período nazista. Seu nome batiza uma rua em Capdenac, mas, fora isso, o único memorial para ela fica no solo do convento.

Uma placa ali diz: “Esta árvore de cedro foi plantada em 5 de abril de 1992, em memória à salvação de 83 crianças judias (de dezembro de 1942 a julho de 1944) por Denise Bergon… a pedido do monsenhor Jules-Geraud Saliège, arcebispo de Toulouse”.

A árvore fica perto da área onde Denise havia enterrado as joias, dinheiro e itens de valor que pais de algumas crianças deixaram com elas — e que Denise devolveu, intocados, depois da guerra, para ajudar aquelas famílias a se reerguerem.

(Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/europa – NOTÍCIAS / MUNDO / EUROPA / por Niamh Hughes – BBC News – 7 SET 2020)

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