A primeira pessoa a escalar e esquiar os Sete Cumes

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Kit DesLauriers foi a primeira pessoa a escalar e esquiar os Sete Cumes, o ponto mais alto de cada continente do planeta.

Assim que a esquiadora Kit DesLauriers desceu dos 8.850 metros do monte Everest, tornou-se a primeira pessoa a esquiar do topo de todos os Sete Cumes – a montanha mais alta de cada um dos sete continentes. No embalo, Rob, o marido de Kit, e o fotógrafo JIMMY CHIN – que fez fotos exclusivas para esta matéria – tornaram-se os primeiros norte-americanos a esquiar do cume da montanha mais alta do mundo. O correspondente da Go Outside, DAVE HAHN, que serviu de guia na escalada, conta como foi essa aventura épica

Verdade seja dita, Kit DesLauriers, seu marido, Rob, e o grande amigo do casal, Jimmy Chin, mal notaram quando fui embora. Estavam ocupados rindo, chorando, tirando fotos, abraçando-se e apontando para os cantos mais distantes do mundo visíveis às onze da manhã de 18 de outubro de 2006. Acompanhando o movimento, lá estava nossa equipe de apoio de nove escaladores sherpas que heroicamente fixaram as cordas para cada centímetro da rota saindo de nosso acampamento elevado no colo Sul. Eu teria preferido ficar ali para celebrar também. Mas aquelas pessoas não eram apenas clientes. Os três são atletas de elite (tanto Jimmy como Kit são membros da equipe profissional da The North Face). E tínhamos um acordo: se eles fizessem a escalada até o topo de modo responsável e forte, eu os deixaria encontrar seu próprio caminho de volta para baixo… de esquis.

O monte Everest ainda não é popular entre esquiadores. Talvez porque antes de esquiar seja preciso, claro, escalar a colossal montanha. Ou porque há um risco real de morte em esquiar do pico, mesmo nos melhores dias. Outros atletas já esquiaram ali antes. Algumas tentativas notáveis incluem a do esquiador de velocidade Yuichiro Miura, o japonês que, em 1970, saltou da face Lhotse (o Lhotse possui ligação com o Everest pela coluna sul), com pára-quedas e uma completa desconsideração ao risco de fraturas, da altitude de 7.900 metros. Quase não sobreviveu ao tombo que o fez rolar por centenas de metros.

Em 2000, o esloveno Davo Karnicar se tornou a única pessoa na história a percorrer, esquiando, todo o trajeto do cume até o acampamento-base, tudo isso em menos de cinco horas. O francês Marco Siffredi desceu de snowboard o Grande Couloir (“Desfiladeiro”), no lado norte, em 2001, antes de voltar à montanha, onde desapareceu em uma tentativa de descer pela face Hornbein, em 2001. Ele tinha 23 anos de idade.

KIT, 37 ANOS, CAMPEÃ MUNDIAL DE ESQUI ESTILO LIVRE em 2004 e 2005, estava atrás de dois prêmios. Mulher nenhuma havia esquiado o monte Everest, e pessoa nenhuma, de qualquer sexo, havia esquiado todos os Sete Cumes, o ponto mais alto de cada continente do planeta.

O Everest seria o sétimo e último para Kit. Rob, 41, estava indo junto para filmar a conquista de sua esposa, mas como tem nas costas uma grande carreira em esqui ultra-íngreme, não era fácil para ele resistir à tentação de fazer suas próprias curvas a 8.800 metros. Jimmy, de 33, é famoso por seu trabalho como fotógrafo de montanha e esteve no cume do Everest em 2004. Por isso, e pelo fato de ser vizinho de Rob e Kit em Jackson Hole — um vale gelado no estado de Wyoming, nos Estados Unidos —, tornou-se a escolha mais óbvia para registrar a aventura com suas fotos. E ele ainda pretendia fazer isso esquiando. Wally Berg, o líder de nossa expedição, estava no acampamento-base, direcionando esses esforços. Eu servi de guia só de ida.

Por sorte, meu outro emprego quando não estou sendo guia é o de patrulha de esqui. Quando estava descendo do cume na direção do escalão Hillary, a 8.755 metros de altitude, cheguei à conclusão de que havia apenas mudado de turno ali no Everest. Iria me posicionar e me ancorar sobre o escalão, para então declarar o terreno “aberto” para meus esquiadores. Havíamos concordado que assim que eu armasse as âncoras, eles desceriam esquiando do topo. Eu deveria tentar assegurar que eles não passariam dos limites — por exemplo, entrando no Tibete, dez centímetros para a esquerda e 3 mil metros abaixo pela face Kangshung.

Dez minutos depois que me ancorei, Kit esquiou até logo acima de mim. Ao descer pela encosta do cume, ela já havia conquistado a façanha de esquiar os Sete Cumes. Eu estava impressionado, mas ainda preocupado pra caramba. Não tinha idéia de como ela, Rob ou Jimmy conseguiriam lidar com a próxima fase, o escalão Hillary, uma face de rocha vertical com 12 metros de altura.

Rob chegou logo depois e, muito confiante, prendeu-se à corda. Sua intenção era descer e atravessar o escalão enquanto eu fazia sua segurança ali de cima. O plano tinha suas falhas, além da mais evidente: a relutância da neve em ficar parada junto às pedras. Em poucos minutos, Rob havia descido e passado por uma beirada, e perdi o contato com ele. E não foi por falta de tentativa. Podíamos usar puxões de corda, rádios e até gritos, mas nada parecia adiantar. Enquanto isso, o tempo ia passando e o peso de Rob não saía da corda. Kit se arrastou até a beirada que bloqueava a visão para ver o que tinha acontecido com seu marido. Ele tinha dado quase todos os passos necessários, mas seu suprimento de oxigênio acabara, o que significava que os últimos metros seriam quase impossíveis com seus esquis nos pés. Estava preso.

Kit tirou seus esquis em local bem inclinado, calçou seus crampons e passou pela beirada, saindo do meu alcance de contato. Alguém me contou que Rob estava sem ar. Não fiquei muito preocupado; dava para ver a grande pilha de tanques de oxigênio a 75 metros de distância, no cume Sul. Mas eu não sabia que ele estava em uma posição tão difícil e contorcida no escalão. Depois de algum tempo, a corda finalmente afrouxou e a puxei de volta. Jimmy estava ansioso para ir também, e assim que certificou-se de estar bem preso à corda, foi isso que fez, deslizando pela borda com seus esquis e desaparecendo como os outros.

O TEMPO SE ARRASTOU. Um puxão aqui, um grito ali. O resto de nossa equipe passou lentamente por mim e fiquei aliviado quando finalmente vi Kit e depois Rob chegarem a pé no depósito de cilindros de oxigênio no cume Sul. Depois de duas horas sentado no frio, a corda finalmente ficou livre. Enquanto eu desmontava as âncoras, observava Jimmy esquiando pela encosta para o cume Sul (ele também ficou sem oxigênio na última parte do escalão e quase caiu quando seus esquis se prenderam em cordas velhas). Fui o último a descer e estava correndo o risco de ser deixado para trás na tempestade de neve que se formava.

Vi a turma erguendo seus esquis no topo do cume Sul e peguei meu rádio. Pedi que considerassem o fato de que a janela de oportunidade para esquiar estava diminuindo por causa do tempo, da hora avançada e de outras dificuldades inesperadas que o escalão havia jogado em cima de nós. Eles concordaram com minha cautela e até acrescentaram o risco de avalanche. O plano inicial, de descer de esqui cada metro da montanha desde o cume, teve de ser adaptado. Mas o objetivo principal dos três continuava o mesmo — esquiar, na manhã seguinte, pela íngreme e escorregadia face Lhotse.

A equipe toda desceu usando crampons até o acampamento elevado, no colo Sul, no meio da neve e do vento, carregando os esquis e fazendo rapel “no braço” pelas cordas fixas. Rob e Jimmy não conseguiram resistir e colocaram seus esquis nas últimas dezenas de metros verticais antes do acampamento. Tenho que admitir: foi uma coisa muito bonita e inspiradora de se ver em meio à explosão de luz que antecipava o pôr-dosol a 7.900 metros de altitude.

O vento ficou mais forte durante a noite, e às seis da manhã do dia 19 de outubro, estava difícil ficar animado seja lá com o que fosse. Mas Kit acordou doida para esquiar e comunicou-se via rádio com a tenda em que estávamos eu e Jimmy, perguntando quanto tempo precisávamos para ficarmos prontos. A missão para aquele dia: esquiar um quilômetro e meio pela face Lhotse, que tem 50 graus de inclinação. Não parecia fazer a menor diferença para eles o fato de que a face era uma placa de gelo azul e branco lisa, muito dura e impiedosa. Qualquer neve vagamente agradável havia sido varrida pelo vento e pelas avalanches e não haveria como voltar atrás depois da decisão ser tomada. Uma curva errada, um bastão perdido, e lá se despencariam os dois, caindo centenas de metros para a própria morte.

COM 8.516 METROS, O LHOTSE É A QUARTA MONTANHA MAIS ALTA DO MUNDO (é preciso escalar um bom pedaço dela para chegar ao Everest) e sua face é seu aspecto mais cruel e assustador. Cinqüenta graus de inclinação são quinze graus a mais do que se costuma encontrar em pistas de esqui categoria diamante negro duplo na América do Norte. Nuvens agourentas recobriam tanto o Everest como o Lhotse, mas Rob, Kit e Jimmy se vestiram, colocaram suas máscaras de oxigênio e saíram direto das tendas para seus esquis. Nós nos cumprimentamos e nos abraçamos, e eles seguiram reto, encosta abaixo.

Comecei minha tediosa descida, sem tanque, seguindo pelas rotas, ao mesmo tempo em que me esforçava para ficar de olho nos meus amigos. Logo já estavam várias centenas de metros para baixo e para o lado. De tempos em tempos, eu parava para respirar e virava o rosto para contar os três pontinhos com esquis. Em um certo momento, meus olhos começaram a me pregar peças e achei que tivesse visto um dos pontos desaparecer. Meu coração começou a bater em um ritmo incontrolável e tive que parar, dando outra volta com a corda no meu braço para ter certeza de que estava tudo bem.

Sempre achei que escalada é algo que deve ser feito com extrema humildade, e passei a ter medo de gente que não sente medo. O tempo que passei com Kit, Rob e Jimmy me convenceu que eles tinham medos racionais e legítimos, mas eram espertos demais para ficar dando atenção para isso. E tinham o que era preciso para encarar os desafios diante deles. Além disso, estavam esquiando como um time, tomando decisões em grupo e não só individualmente. Esse tipo de decisão, vim a descobrir, é feita com mais cuidado quando as pessoas são amigas, e ainda mais se são casadas. A confiança entre eles é essencial. Uma hora e meia depois de deixar o colo, pude vê-los passando pelo último obstáculo no sopé da face: o Bergschrund, ou última fenda. Então os vi se abraçando.

ALGUMAS HORAS DEPOIS, EU OS ALCANCEI NO ACAMPAMENTO 2, onde nosso cozinheiro, Ang Pemba, havia acabado de servir pratos cheios de arroz frito. A descida deles pela face tinha sido brutal, e eles descreviam condições de superfície em que uma piqueta mal podia penetrar. Agora, na marca dos 6.300 metros e em relativa segurança, estavam muito contentes com seu feito — e com o fato de terem sobrevivido a ele. Kit me contou o mantra que tinha inventado naquele dia: “Como se sua vida dependesse disso”. Repetia essas palavras a cada curva na face. Quando ouvi Jimmy confessar que não havia tirado todas as fotos que queria porque estava assustado demais para segurar a câmera com as duas mãos na frente do rosto (tente fazer isso em casa subindo no telhado inclinado depois de uma tempestade de granizo para entender como é complicado!), fiquei impressionado. Jimmy não se assusta com facilidade, e não é de perder muitas fotos.

Rob me disse que, em um ponto no meio do caminho, aproximou-se de Kit, que falou com toda a calma do mundo que estava com medo e não queria morrer. Rob contou que sua resposta foi: “Isso é bom”. E esquiaram juntos. Rob considerava a revelação de Kit perfeitamente correta: um ser humano normal esquiando no meio da face Lhotse deve ter medo e tem que querer continuar vivo. E um marido, ao saber que sua mulher está pensando com clareza, deve então se concentrar em suas próprias curvas e em seu próprio desejo de não morrer. Um estado mental necessário para a sobrevivência.

Esquiando desde o Acampamento 2, desceram 300 metros pelo Western Cwm (vale amplo e reto, no pé da face Lhotse). Tinham planejado esquiar passando ao lado da perigosa cascata de gelo de Khumbu até o acampamento-base. Fiquei preocupado de novo, não porque achasse que eles não conseguiriam, mas só porque me preocupar é o meu trabalho. Uma tempestade de neve cobriu a vista, então eles tiraram seus esquis e foram a pé até o acampamento. Foram recebidos com taças de champanhe muito gelada e brindaram pelo improvável sucesso, segurança e boas coisas que podem acontecer quando se tem a proporção correta de medo e confiança.

Eles haviam esquiado mais de dois quilômetros tecnicamente dificílimos — cerca de metade da distância vertical entre o cume e o acampamento-base. Há quem vá dizer que essa não foi uma descida “completa” com esquis, mas meu conselho é que tentem fazer o mesmo depois de escalar a montanha na temporada após as monções, com toda aquela neve, quando chegar ao cume já é uma raridade. Outros podem se perguntar por que alguém iria querer esquiar no Everest, para início de conversa. Jimmy deu a melhor resposta quando disse: “É isso mesmo que a gente faz. Somos alpinistas esquiadores. Parece completamente maluco, eu sei, mas somos muito detalhistas na execução”.

Agora que conquistou seu objetivo, Kit planeja voltar a Jackson Hole e criar uma organização beneficente chamada Balance Institute (o “Instituto do Equilíbrio”), para dar suporte a pessoas “que seguem seu coração até os lugares mais loucos, como o topo do monte Everest”. “Mas nunca vou pendurar meus esquis”, ressalva ela. “Pretendo esquiar até meus cem anos.”

(Fonte: GoOutside.com.br – Fevereiro 2007 – Edição 21 – IstoÉ – N° 1947 – Ano 30 – 21/02/07 – Pág; 69)

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