Um dos primeiros grandes explorados da indústria da música

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Um dos primeiros grandes explorados da indústria da música

Foi o fundador da primeira escola de samba a “Deixa Falar”

Ismael Silva (Niterói (RJ), 14 de setembro de 1905 – Rio de Janeiro (RJ), 14 de março de 1978), célebre pioneiro sambista carioca. Desde 1950, quando compôs “Antonico”, sem pressentir que aquele seria o seu canto do cisne, Ismael Silva era uma lenda viva da música brasileira. E todos esses últimos anos, na época do carnaval, um estranho sorriso iluminava e tornava mais jovem o seu rosto magro e duro, como que anunciando uma ressurreição que terminava no dia 14 de março, na quarta-feira de cinzas: sim, dizia Ismael aos jornalistas que o procuravam, ele foi o fundador da primeira escola de samba, a “Deixa Falar”, quase meio século atrás. Sim, repetia, compusera mais de 200 músicas. Sim, insistia, era um homem pobre. Sim, desafiava, era feliz. Sim, garantia, tinha muitos amigos.

Não havia muitos deles no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, na noite de 14 de março, no momento em que o velho Ismael, de 72 anos, preparava-se para passar pelos exames exigidos por uma cirurgia na uretra. Internado desde dezembro, quando pioraram as dores que sentia nas pernas, inchadas de varizes há muitos anos, Ismael sofreu um fatal ataque cardíaco. No dia seguinte, remexendo as coisas de Ismael no modesto apartamento da rua Gomes Freire, onde ele viveu sozinho seus últimos anos, no centro do Rio de Janeiro, seus amigos Sérgio Cabral, Albino Pinheiro e Hermínio Bello de Carvalho tiveram algumas surpresas. Afinal, quase ninguém tinha acesso àquele canto onde Ismael se trancara com suas memórias e suas mágoas. Eles encontraram, além de fotografias antigas, ao lado de praticamente todas as celebridades destes últimos cinquenta anos da música brasileira, a quantia de 191 cruzeiros, bem à vista. No bolso de uma calça, 5 000 cruzeiros. No bolso de outra, um cheque nomeinal emitido pela Sociedade Brasileira de Direitos Autorais (Sbacem), no valor de 2 000 cruzeiros e datado do remoto 23 de setembro de 1976.

Aprendendo o samba – Estas descobertas revelaram, talvez para alívio dos amigos que jamais puderam fazer por Ismael o quanto gostariam, que os últimos dias do mais célebre pioneiro do samba não foram tão duros. Antes, ele frequentara as páginas dos jornais, com patética assiduidade, para contar sobre a vida difícil que levava e para protestar sempre que se sentia ofendido – como em 1969, quando o criador das escolas de samba foi pedir um ingresso para ver o desfile ao então secretário de Turismo do Rio de Janeiro, Levi Neves, e não conseguiu nem ser recebido. Uma situação tão mais constrangedora quanto o fato de que Ismael, com sua extensa galeria de sucessos, poderia ter vivido e morrido na riqueza. Só do seu carro-chefe, “Se Você Jurar”, lançado em 1931, existem pelo menos uma centena de gravações.

Filho de mãe lavadeira e pai operário, Ismael nasceu em Jurujuba, perto de Niterói, e chegou ao Rio de Janeiro com 4 anos. Nos vinte seguintes completou seu aprendizado nos botequins do Estácio, um bairro pequeno, espremido entre o Canal do Mangue e o Morro de São Carlos, e famoso já então como celeiro de sambistas. Ele terminou o ginásio com 18 anos, trabalhou na Central do Brasil e num escritório de advocacia e compôs sua primeira música, “Me Faz Carinho”, aos 20. Aos 22, vendeu outra música a Francisco Alves por 100 000 réis e imaginou que ali nascia uma parceria riquíssima – como de fato foi, mas não exatamente para ele.

Música e vida – O Ismael daqueles anos, elegante e impetuoso, incapaz de seguir regulamentos, que imaginava serem feitos apenas para os outros, ia compondo seus sambas exemplares que muitas vezes vendia a preço vil para os notáveis da época, Francisco Alves à frente, que jamais compôs uma única nota das músicas que assinava com Ismael, a quem chamou num show de “preto de alma branca”. É verdade que os dois deixaram de trabalhar juntos em 1935, mas também é verdade que naquele ano Chico Alves parou de gravar as composições de Ismael, isolando-o do público. “Foram dias de grande desgosto”, lembrava ele recentemente, com o rosto grave. Na verdade, foi mais do que isto – foram vinte anos em que o nome de Ismael apagou-se das rádios.

Quando Alcides Gerardi começou a quebrar este desterro, ao gravar “Antonico” (reinterpretado com grande êxito no estilo de oração de Gal Costa, em 1972), era como se a própria biografia do compositor esquecido emergisse de um outro mundo: “Ô Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende de sua boa vontade / É necessário uma viração pro Nestor / Que está vivendo em grande dificuldade”.

Esta música, a de maior trânsito entre os ouvintes, constantemente é tomada como exemplo do que seria a arte de um homem triste e ressentido. No entanto, o próprio Ismael negava esta ou quaisquer outras generalizações. Para ele, suas músicas eram atos de pura imaginação: “Nada do que eu componho tem algo a ver com a minha vida”, explicava ele. “Não existe Antonico, nem viração, nem Nestor.” O que existiria, então, para alimentá-las? Ironia, melancolia, humor eram seus grandes combustíveis. Mas Ismael não os usava sempre da mesma maneira, principalmente porque dentro do seu corpo conviveram sempre vários mestres.

Boêmio de sangue – Entre estes mestres estão o das melodias ágeis, haromonizadas com capricho, apesar do mau violão aprendido com persistência com Gorgulho, integrante do regional de Benedito Lacerda. Outro era o das letras concisas, quase sempre irônicas, utilizando com habilidade o lugar-comum e os ditados populares. E um terceiro era o ritmista, bamba do tamborim do Estácio. Todos estes mestres deram origem a uma expressão de arte marginal, reflexo de uma vida também marginalizada. Afinal, Ismael sempre se orgulhou de ter brigado para aprender a ler, mas também sentia orgulho pelo fato de ter brigado para não trabalhar. Recusando-se a aceitar o ofício semiescravo que sua condição social fatalmente lhe reservava, ele preferiu vender sambas e tornar-se, tragicamente, um dos primeiros grandes explorados da indústria da música. O “boêmio de sangue”, dizia ele, não era apenas aquele que fugia dos regulamentos. Era mais: procurava todos os motivos para se entregar à boêmia. “A Malandragem”, conforme dizia um dos seus sambas, era o paraíso: “Vida melhor não há”.

Não se sabe, enfim, quantas coisas Ismael deixou de compor por algum desgosto pelo trabalho, bem como desconhece-se o balanço do que foi perdido por causa do seu peculiar método de composição, de boca, “quase falando”, como ele dizia. Uma de suas canções mais conhecidas, “Nem É Bom Falar”, por exemplo, nasceu na rua, quando a inspiração lhe baixou: “Nem tudo que se diz/ se faz / Eu digo e serei capaz!. Mas a inspiração subiu tão fantasmagoricamente quanto havia baixado, deixando o compositor perplexo no meio da calçada: “Capaz de quê?” Semanas depois, baixou-lhe a continuação da frase: “De nem resistir / Nem é bom falar / Se a orgia se acabar”.

O modelo – A discriminação que sofreu também transparece nas suas músicas, inclusive na primeira, que já antecipava o péssimo negócio que faria nos anos seguintes ao comercializar sua obra: “Se eu fosse um homem branco / Ou por outra mulatinho / Talvez tivesse a sorte de gozar o teu carinho”. Parceiro, de fato, dos brancos Noel Rosa (“Se Você Jurar”, “Adeus”) e Lamartine Babo (“Ao Romper da Aurora”) e do mulato claro Nilton Bastos (“O que Será de Mim”). Ismael estabeleceu uma certa confusão pela frequente venda de sambas, embora tenha se conservado um autor inconfundível. Ela prova sua personalidade nas composições de fase recente, sem parceiros e quase desconhecidas, como na simplicidade de “Contraste” (“Existe muita tristeza ; Na rua da alegria”) ou na pontuação inesperada de “Aliás” (“Enfim você sabe o que faz / Mas isso é contra mim, contra nós / Aliás”).

O autor destas letras, mesmo tendo passado vinte anos esquecido e vivido de ressurreições episódicas e fugazes, considerava-se um homem feliz. No seu dia-a-dia de músico aposentado, ele desenvolveu um extraordinário interesse pelas gerações mais novas, às quais gostava de contar as aventuras de sua juventude, embora jamais tivesse compreendido bem o interesse que estes ouvintes lhe dispensavam. No fundo, esta admiração lhe agradava. Ele sempre foi admirado e até cortejado pelas “pessoas importantes”, como dizia, gente como Prudente de Moraes, neto, Vinicius de Morais ou Lúcio Rangel. Mais do que eles, sentiu emoção e prazer quando ouviu de Chico Buarque de Holanda a declaração de que fora ele, Ismael, o seu grande modelo, e não Noel Rosa, como numa época se acreditava no Brasil. Contudo, ele não podia viver de fama. Desde que se mudou para o apartamento da rua Gomes Freire, de onde saiu vitimado pela denúncia vazia para um outro na mesma rua, a chama do velho Ismael, insolente e brincalhão, só brilhava nos shows cada vez mais raros que ele fazia, ocasiões em que o aplauso do público o deixava em transe.

Solteiro até a morte, ele já nãotinha esperança de encontrar uma companheira, como sempre quis, principalmente depois que a doença nas pernas obrigava-o a caminhar penosamente, ajudado por uma bengala que sempre procurava esquecer. Ao seu enterro compareceram Zé Keti, Zica, Cartola, Clara Nunes, o compositor Guilherme de Brito, o maestro Bororó e uma certa Marlene Martins Batista, de 42 anos, que pode ter desvendado mais um segredo da fechada intimidade de Ismael, de quem se declarou filha. Entre algumas coroas e uma oração em japonês feita por adeptos da Igreja Messiânica, à qual Ismael se ligara há cinco anos, caminharam juntos a porta-bandeira e o mestre-sala Bicho Novo, da “Deixa Falar”, a escola fundada por Ismael cinquanta anos atrás, que acompanharam em silêncio ao Cemitério do Catumbi, perto da Estácio, em cerimônia pontuada pelo som de um surdo.

(Fonte: www.zerohora.com.br – ANO 48 – N.° 16 780 – Almanaque Gaúcho/ Por Ricardo Chaves – 14/09/11)
(Fonte: Veja, 22 de março de 1978 – Edição n° 498 – MÚSICA – Pág; 137/138)

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