Quem foi o médico que realizou a 1ª cirurgia de trans do Brasil
Roberto Farina realizou na década de 1970 as primeiras cirurgias de trans no Brasil
A 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil
“Monstro, prostituta, bichinha”. Em 1971, primeira cirurgia de mudança de sexo do Brasil teve repercussão oficial inimaginável para os dias de hoje e resultou na prisão do médico.
Roberto Farina foi um médico brasileiro e professor de cirurgia plástica na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). Na década de 1970, ele ganhou as páginas dos jornais do Brasil e do mundo por um feito recebido com louvor pela comunidade científica internacional, mas condenado pela Justiça brasileira, quando a ditadura militar vigorava no país.
“O médico Roberto Farina realizou a primeira cirurgia de transgenitalização no Brasil, na cidade de São Paulo”, informa no livro “O Que É Transexualidade”, de Berenice Bento, doutora em sociologia pela Universidade de Brasília. Transgenitalização é o mesmo que cirurgia de redesignação genital, termo assim adotado pela comunidade transexual brasileira.
A primeira cirurgia de redesignação
Tudo começou quando Farina, que àquela altura já era cirurgião plástico, precursor em procedimentos urogenitais, se deparou com o caso de Waldirene, uma manicure do interior de São Paulo que havia nascido Waldir. Ela, que até então mantinha seus órgãos genitais masculinos, já tinha sido examinada e atestada por vários médicos como uma paciente com personalidade com características claramente femininas, estruturadas desde a infância.
“Diante do caso, adquiri literatura especializada e realizei em cadáveres várias operações plásticas com a finalidade de alcançar conhecimento necessário para realizar a operação em Waldir”, relatou posteriormente em depoimento à Justiça o médico, que realizou a cirurgia de redesignação genital da paciente em 1971, no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.
“Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu. Depois da operação, fiquei livre para sempre –graças a Deus e ao dr. Roberto Farina– dos órgãos execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida”, explicou na época Waldirene, que, após receber alta médica.
Avanço tratado como crime
O que deveria ser recebido como um avanço da medicina brasileira foi tratado como um crime, que resultou em denúncia à Justiça e uma extensa perseguição ao médico, que foi condenado em 1978. A repressão começou depois que Farina, em um congresso científico, divulgou publicamente ter operado no Brasil Waldirene e, posteriormente a ela, outras pessoas transexuais.
“O Conselho Federal de Medicina interpretou esse ato médico de Farina como ‘lesão corporal’, motivando uma ação judicial”, comenta Berenice Bento em seu livro.
“Abro o jornal, e lá estava a manchete: ‘Cirurgião condenado por lesão corporal’. Sem acreditar no que estava lendo, devorei as primeiras linhas da notícia: ‘O renomado cirurgião plástico Roberto Farina foi condenado a dois anos de prisão por lesão corporal no processo que responde há sete anos por ter operado Waldir Nogueira para se tornar mulher. O transexual, que quer se chamar Waldirene, entrou com um pedido de retificação de nome e de sexo no Registro Civil. Diante do que o juiz considerou uma prova de ‘mutilação do humano’, não concedeu a mudança de registro e condenou o cirurgião com direito a sursis, por ser primário. Num caso sem precedentes na Justiça brasileira, o Dr. Roberto Farina poderá, pois, responder em liberdade”, registrou no seu livro “Viagem Solitária”, João W. Nery, ativista LGBT que nos anos 1970 tornou-se o primeiro homem trans operado (também por Farina) do Brasil.
Como se não bastasse ter condenado Farina, a Justiça perseguiu e sujeitou Waldirene a exames humilhantes que acabaram confirmando sua vontade e identidade feminina. “Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante”, afirmava, porém, um relatório policial.
Por perder o processo em que solicitava a alteração de nome, ela ainda foi obrigada pela Justiça a viver como Waldir por mais quase 40 anos. Sua certidão de nascimento foi alterada somente em 2010, quando ela tinha 65 anos, e seu RG, em 2011.
Absolvição e reparação tardia
Quando o Ministério Público pediu o aumento da pena de Farina em 1978, sob declarações homofóbicas de promotores que argumentavam que “a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo será sempre uma aberração, tanto à natureza como à lei”, civis e mesmo algumas autoridades se mobilizaram em sua defesa. Dois anos antes, a comunidade científica internacional havia feito o mesmo e denunciado o que chamou de um retrocesso.
“Em nenhum dos outros países do mundo onde esse tipo de tratamento médico foi praticado, um médico foi acusado de conduta criminosa pelo Estado. É um retrocesso muito danoso para a imagem do Brasil”, afirmou, em 1976, o psiquiatra Robert Rubin, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Em 1979, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, por votação majoritária, anulou a condenação de Farina, que mesmo assim foi ridicularizado e teve sua carreira prejudicada.
“Lamentavelmente, as nossas leis, costumes e tradições não têm um mínimo de compreensão, tolerância e consideração para os transexuais. A investigação científica, paralelamente ao avanço da tecnologia, aos poucos vai vencendo os seus maiores inimigos que são a ignorância e a superstição”, observou Farina em seu livro “Transexualismo”, de 1982. Ele faleceu em 2001, aos 86 anos.
Em 2017, dando continuidade aos esforços do médico, foi inaugurado o ambulatório do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans Professor Roberto Farina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que oferece assistência de saúde e bem-estar a pessoas trans. Quanto às cirurgias de redesignação sexual, o Conselho Federal de Medicina autorizou que fossem feitas experimentalmente em 1997; sendo aprovadas pelo SUS somente em 2008.