Nelson Rodrigues (1912-1980), teatrólogo, escritor e jornalista, o maior autor teatral do Brasil

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Nelson Rodrigues (1912-1980), teatrólogo, escritor e jornalista. Saudado pelos críticos como o maior autor teatral do Brasil, Nelson Rodrigues tinha chegado ao ponto em que mesmo seus inimigos – ainda muitos – reconheciam que era um gênio. Teve glória, todos os êxitos que poderia desejar um autor perseguido anos a fio com a fama de “maldito”: sua última peça, “A Serpente”, foi encenada com brilho no luxuoso Teatro do BNH do Rio de Janeiro, e em São Paulo “A Falecida” ficava o ano inteiro no Teatro Popular do Sesi – e continuou até julho de 1981, para comemorar o início da terceira temporada. No cinema, “Os Sete Gatinhos”, baseado em sua peça do mesmo nome, ficou entre as primeiras bilheterias nacionais, enquanto rodavam três outras produções extraídas de textos de Nelson, prontas para estrear em 1981: “Engraçadinha”, “Beijo no Asfalto” e “Bonitinha, mas Ordinária”. Longe das luzes e da publicidade, um grupo de vinte atores paulistas, sob a direção de Antunes Filho, passou o ano preparando o ambicioso espetáculo “Nelson Rodrigues” – nada menos que uma síntese de toda a obra teatral, literária e jornalística do autor.

Dificilmente se poderá imaginar algo mais distante da explosiva, virulenta, muitas vezes desagradável obra de Nelson Rodrigues, do que o ambiente plácido e conservador da Academia. Mas o recifense Nelson Falcão Rodrigues, nascido em 23 de agosto de 1912, era uma personalidade marcada pelo paradoxo, como o definiu o velho amigo e eleitor certo para a Academia, Otto Lara Resende: “Um conservador com uma obra revolucionária. Com orgulho de ser reacionário, mas um dos autores mais censurados do Brasil”.

AGRESSIVO – Sem dúvida: censurado não apenas pela Censura oficial – que manteve sua peça, “Álbum de Família”, 22 anos proibida, como pela direita e pela esquerda. A primeira nunca lhe perdoou os temas crus e os personagens frequentemente escandalosos. A segunda odiava a ironia impiedosa com que Nelson Rodrigues vergastava sua ideologia e especialmente seus modismos. Dotado de um talento especial para cultivar polêmicas, Nelson ficou sem falar quase vinte anos com o escritor Alceu Amoroso Lima, com quem só se reconciliou em março de 1980. Nos anos 60 e 70 referia-se a dom Hélder Câmara como “o padre de passeata” e, até o fim, considerava “uma piada chamar Chico Buarque de autor teatral”. Ficou de cara amarrada com o crítico teatral e grande amigo Sábato Magaldi quando este, exaltando as peças de Oswald de Andrade, dedicou tese de doutoramento ao autor de “Rei da Vela” – só sossegou ao saber que ele próprio, Nelson, seria o tema da base seguinte de Magaldi – mais importante, de livre docência. Tão agressivo com artistas e críticos, era simpático e dócil com governantes.

A REDENÇÃO – Nelson Rodrigues não precisava batalhar tanto por sua obra. Há muito tempo ninguém mais discutia que o teatro brasileiro moderno começou de fato em 1943, com a estreia de “Vestido de Noiva”, sob a direção de Ziembinski, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Não era, entretanto, a primeira peça de Nelson, já autor, em 1939, de “A Mulher sem Pecado”, cuja montagem em 1941 passou despercebida. No revolucionário “Vestido de Noiva”, a ação desenvolve-se simultaneamente em três planos, misturando presente, passado e fantasias da protagonista Alaíde, que disputa com a irmã o amor do mesmo homem. Em sua derradeira peça, “A Serpente”, Nelson trataria essa situação de forma ainda mais complexa: o personagem Paulo é levado pela própria mulher a ter relações sexuais com a irmã dela.

A obra de Nelson Rodrigues está repleta de personagens atormentados pelo sexo: grã-finos devassos, falsos beatos, solteironas reprimidas, pais incestuosos. Para as criaturas saídas da mente de Nelson, o sexo, antes de funcionar como um elemento de prazer, mostra-se um modo de aviltar o indivíduo, ligado quase sempre à culpa e à morte. São raríssimos os personagens rodrigueanos que, como “Ritinha” e “Edgar” de “Bonitinha”, de 1961 (o filme baseado nessa peça, dirigido por Braz Chediak, e com Lucélia Santos, com estréia marcada para 12 de janeiro de 1981), encontram no amor uma possibilidade de redenção.

FUTEBOL E TRAGÉDIA – Poucos escritores brasileiros tiveram, como ele, uma visão tão genuinamente trágica da existência. Obcecado pela ideia da morte desde a infância, Nelson várias vezes faltou à escola primária para assistir a velórios. Repórter policial de “A Manh㔠desde os 13 anos, na primeira reportagem descreveu o crime de um favelado que matou a tiros a mulher adúltera. Várias vezes conviveu com a tragédia: adolescente, ouviu o tiro da mulher que assassinou seu irmão Roberto, quando pretendia matar seu pai, que a caluniara, na redação de A Manhã. Outro irmão, Paulo, morreu com toda a família no edifício das Laranjeiras que desabou com as enchentes de 1967 no Rio de Janeiro. Um dos seus dois filhos homens, Nelson Rodrigues Filho, foi um dos últimos presos políticos a deixar a prisão, e a filha, Daniela, é cega.

Assim, não é de espantar que esse brilhante autor de dezessete peças teatrais, nove romances, seis livros de contos e crônicas e milhares de artigos jornalísticos visse o mundo como um lugar triste. Mesmo ao escrever sobre futebol, esse fanático torcedor do Fluminense – produzia crônicas mais próximas de quem lamenta uma desgraça do que de quem comemora um gol. “Até hoje nenhum espetáculo ou filme baseado em obra de Nelson conseguiu penetrar por inteiro em seu universo”, afirma Antunes Filho, responsável, em 1974, por uma das melhores montagens de Nelson, “Bonitinha, mas Ordinária”: “É um mundo mítico e poético que ainda desafia seus exploradores”. É também um desafio que vem seduzindo um número cada vez maior de artistas. Esse é o momento glorioso do Nelson autor. Antes da abertura política, as ‘patrulhas ideológicas’ impediram uma divulgação justa de sua obra. Agora que a discussão política em torno da arte ficou menos tensa, as pessoas, mais relaxadas, encaram Nelson na sua integridade. O próprio Nelson costumava dizer: “Eu nunca mudei nada. O mundo é que está mudando”. Decididamente, havia chegado a hora em que Nelson, o ex-maldito, já podia ser aceito como era – um escritor que veio para ficar. Nelson Rodrigues morreu a 21 de dezembro, um domingo, de complicações respiratórias, cardíacas e cérebro-vascular, no Rio de Janeiro, não realizando apenas um sonho, como escritor: entrar para a Academia Brasileira de Letras. Como fanático torcedor do Fluminense – com cuja bandeira foi enterrado, dia 22, no cemitério São João Batista, Nelson Rodrigues sai de cena no auge de uma temporada de êxito nos palcos e nas telas, aos 68 anos.

Fonte: Veja, 31 de dezembro, 1980 – Edição n.° 643 – Datas – Pág; 24 – MEMÓRIA – Pág; 33)

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