Jon Vickers, um dos grandes intérpretes do repertório Wagneriano, foi um dos maiores tenores heróicos do século XX

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Jon Vickers, o tenor wagneriano que nunca deixou de criticar Wagner

Jon Vickers como Eneias em Os Troianos, produção da Royal Opera House, em 1957 (DR)

Jon Vickers como Eneias em Os Troianos, produção da Royal Opera House, em 1957 (DR)

Jonathan Stewart Vickers (29 de outubro de 1926 – Ontário, Canadá, 10 de julho de 2015)cantor lírico, um dos grandes intérpretes do repertório Wagneriano, foi um dos maiores tenores heroicos do século XX Cantor canadiano foi um dos maiores tenores heróicos do século XX e deixou marcantes interpretações de muitos dos mais exigentes papéis do repertório operático

Diziam que assistir a uma récita de ópera protagonizada por ele era uma experiência comparável apenas a uma interpretação de Marlon Brando, tão profunda e intensa era a sua vivência sobre o palco e tão vividamente isso perpassava na transposição vocal com que dava vida às suas personagens, dando amiúde a impressão de que a sua interpretação era sobretudo uma interioridade escavada, revolvida e exteriorizada.

Num plano mais musical, diziam da sua voz que tinha algo que só existira na voz de Enrico Caruso (1873-1921), epítome do tenor. E quando se estreou em Bayreuth, em muitos wagnerianos despertou a esperança de que estava ali uma reemanação de Lauritz Melchior (1890-1973), o maior tenor wagneriano da primeira metade do século XX.

Daqui se depreende que Vickers trouxe para muitas personagens aqueles mesmos ingredientes costumeiramente referidos sempre que se fala de Maria Callas e que podem ser resumidos no conceito de “veracidade dramática”. Vickers surgiu na cena operática cerca de uma década depois de Callas e a brevidade da carreira desta (cerca de 15 anos) não deixou muito tempo para que se cruzassem em palco, mas esse encontro aconteceu: a primeira vez foi em 1958, na Ópera de Dallas, graças ao olho sempre arguto de Nicolà Rescigno, diretor musical do Teatro. A ocasião foi uma Médée de Cherubini (um dos papéis que Callas ressuscitou e celebrizou), com Vickers como Jason. Uma das histórias mais extremas da mitologia grega, servida por dois cantores conhecidos pelas suas interpretações extremadas.

Annus mirabilis para Vickers, esse 1958: no verão aconteceu a sua estreia no Festival wagneriano de Bayreuth, como Siegmund na Valquíria, dirigida por Hans Knappertsbusch (esta produção do Anel do Nibelungo, encenada por Wieland Wagner e uma das mais celebradas do século XX, foi só há poucos anos editada em CD). O seu desempenho foi de tal ordem que, como dissemos, muitos viram nele o novo Melchior. Mas tal como a presença de Melchior em Bayreuth foi fatalmente afetada pela ascensão nazi, também a de Vickers seria comprometida por choques de personalidades – a de Vickers contras as dos Wagners. O cantor só regressaria a Bayreuth em 1964, para cantar o Parsifal, de novo sob a direção de Knappertsbusch: quatro récitas que foram as últimas para ambos ali (o lendário maestro alemão faleceria no ano seguinte).

Vickers e Knappertsbusch: duas personalidades difíceis que se entenderam às mil maravilhas, havendo do cantor, que só tinha elogios para o maestro, o relato de um ensaio em que quis cantar a Winterstürme, do I Ato da Valquíria, num tempo um pouco mais rápido que o seu habitual – Vickers era conhecido por tendencialmente usar tempi mais lentos que a norma – em que Knappertsbusch pousou a batuta e ficou só a ouvir Vickers cantar, sorrindo de deleite, no final fazendo com a mão o gesto de um beijo… e retomando o ensaio!

Conservando as fortes convicções religiosas da casa paterna, Vickers não as esquecia quando “entrava em palco”: ficaram famosas declarações suas sobre Tristão e Isolda, o Tannhäuser e Siegfried. Dos primeiros, dizia que corporizavam uma grande história de amor, mas que eram dois seres humanos nada recomendáveis, além da obra ser “a glorificação da imoralidade do próprio Wagner”. Já o Tannhäuser, recusou cantá-lo porque a obra “punha em causa a obra redentora de Jesus Cristo”. O papel de Siegfried, por fim, não o quis cantar, por “ser demasiado pagão”. Por contraste, admirava Parsifal por ser “alguém cuja compaixão despertou por efeito da ferida de Amfortas, daí se estendendo a uma compaixão pelo próprio Cristo crucificado”.

As suas qualidades de intérprete prestavam-se às mil maravilhas a personagens dilacerados, marginalizados, com muitas camadas de sofrimento no ‘id’ e com um potencial inesgotável de renovação, reinvenção. E nesse campo, papéis como os citados Siegmund ou Jason, ou o Peter Grimes de Britten, ou o Eneias dos Troianos de Berlioz (uma ópera que ajudou muto a ressuscitar), ou o Otello de Verdi, ou o Florestan do Fidelio eram perfeitos para ele – e foram-no. Tal como Parsifal, como Tristão, como Canio (Pagliacci), como Samson o foram e o imortalizaram.

Karajan, que gostava muito de trabalhar com ele (gravaram, por exemplo, o Tristão, o Fidelio, oOtello), chamava-o de “um grande embodier de personagens” (isto é, ele incorporava as personagens que cantava) e isso leva-nos a uma definição de Vickers como um “intérprete visceral” em que a exposição da “víscera”, porém, não comprometia o lírico, o sentido da linha. Também por isso não espanta que Vickers fosse um grande intérprete desse monodrama sem cena que é A Viagem de Inverno de Schubert…

Daquele tipo que faz com que as gravações nunca deem dele uma ideia à altura da experiência de o ouvir ao vivo em palco – a não ser que sejam gravações ao vivo!

Vickers tinha uma voz grande, mas ele ficou talvez até mais famoso nos anais da ópera pela forma como sabia cantar “baixinho” (sotto vocepianissimi), técnica, conta-se, que aprendeu, estudando e cantando (em privado, que nunca o fez em público) o papel do Evangelista na Paixão de Mateus de Bach. Porque ser visceral com um grande volume vocal não é difícil, mas sê-lo tanto ou mais com um fio de voz apenas…

Dito isto, dizer que Vickers cantou com todos os grandes nomes da ópera, dirigido pelos maiores maestros do seu tempo em todos os grandes templos líricos do mundo é redundante.

O concerto de despedida foi no Canadá natal, em maio de 1988. No programa, o II ato do Parsifal. A dimensão moral, ainda e sempre, de um homem cuja chama se extinguiu aos 88 anos.

(Fonte: http://www.dn.pt/artes – DIÁRIO DE NOTÍCIAS – ARTES – ÓPERA/ Por Bernardo Mariano – 15 DE JULHO DE 2015)

Jon Vickers, um dos grandes intérpretes do reportório Wagneriano, morreu sexta-feira aos 88 anos, na sequência de “uma prolongada batalha com a doença de Alzheimer”, segundo um comunicado da família divulgado pela Royal Opera House de Londres.

Aclamado pela força vocal e pela intensidade dramática que exibia em palco, Vickers interpretou alguns dos papéis operáticos mais exigentes ao longo de uma carreira três décadas que terminou em 1988. Vickers despediu-se dos palcos aos 61 anos, na pequena cidade canadiana de Kitchener, não com uma gala imponente, como seria de esperar num Pavarotti ou num Placido Domingo, mas com um elenco longe de ser famoso, num último Parsifalmusicado pela orquestra local.

Prova da sua versatilidade como cantor lírico é o facto de ter desempenhado os grandes papéis nos seus idiomas originais: Peter Grimes (ópera homónima de Britten, em inglês), Eneias (Os Troianos, de Berlioz, em francês), Otelo (Verdi, em italiano) e Tristão (Tristão e Isolda, de Wagner, em alemão).

Os críticos não pouparam adjectivos para descrever a voz de Vickers: “imponente”, “dolorosamente bela”, “infatigável”, “dotada de cem cores e inflexões”, “uma coluna de ferro que verte lágrimas”. Alex Ross, crítico de música clássica da revista The New Yorker e autor do livro O Resto é Ruído, escreveu sábado no seu blogue: “Ele tinha uma voz de aço retumbante, mas nunca se contentou simplesmente em aplanar os ouvidos das suas plateias; era um actor enérgico e minucioso que estudava as suas personagens com profundidade. Se, por vezes, ia longe demais, nunca era meramente para criar efeito; o excesso vinha de um excedente de convicção. Como eu gostaria de o ter ouvido ao vivo; não cheguei a tempo.” (Alex Ross tem 45 anos.)

Nascido a 29 de Outubro de 1926, em Prince Albert, numa região rural e selvagem do Canadá, Jonathan Stewart Vickers é o sexto de oito filhos de um pregador da Igreja Presbiteriana que fez do tenor um homem profundamente religioso, ao ponto de ter recusado alguns papéis alegando razões morais, em particular, Tannhäuser, criação de Wagner, que considerou uma personagem blasfema.

Apesar de ter uma carreira indissociável de Wagner, Vickers era crítico em relação ao compositor alemão. Numa entrevista de 1981 publicada pelaWagner News, nota que a filosofia de Wagner, que estava determinado em “revelar a força destrutiva do cristianismo”, é fruto da sua ignorância. “E, claro, qual foi o resultado disso? Hitler”, conclui.

Em 1950, com 24, Vickers recebeu uma bolsa para estudar no Conservatório Real de Música de Toronto e, seis anos depois, foi convidado para uma audição para a Royal Opera House, em Covent Garden, Londres, onde fez a sua estreia em 1957, cabendo-lhe a responsabilidade de ser o tenor principal em Un Ballo in Maschera, de Verdi, Carmen de Bizet e Os Troianos de Berlioz. No ano seguinte estreou-se no Festival de Bayreuth como Siegmund em A Valquíria, que se viria a tornar num dos seus papéis emblemáticos e que lançaria a sua carreira internacional. Nesse mesmo ano foi Don Carlo na produção de Luchino Visconti apresentada em Covent Garden. Em 1959 partilhou o palco com Maria Callas na Medeia (Cherubini) da Royal Opera House, cuja gravação está disponível em CD.

Em 1960 entrou para a Metropolitan Opera em Nova Iorque, onde interpretou uma ampla série de papéis em alemão, francês e italiano durante mais de 25 anos. Gravou e trabalhou extensamente com Herbert von Karajan, que, como outros maestros, confiava no raro talento de Vickers para revelar as intenções dramáticas dos compositores.

“Muito honestamente, creio que o génio do intérprete morre com ele, e não há o que o possa manter vivo – nem filmes, nem gravações, nada”, disse o tenor na entrevista que deu em 1981. “Não lhe agrada que daqui a 100 anos as pessoas possam ouvir as suas gravações? “, pergunta o entrevistador. “Acho que se vão rir. Acho que vão achar antiquado. Acho que vão achar desadequado”, responde Vickers. Mas ainda não é 2081.

(Fonte: https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia – PÚBLICO – CULTURA ÍPSILON – 12/07/2015)

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