Jean Eustache, importante cineasta francês associado ao movimento Nouvelle Vague.

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Jean Eustache (Pessac, França, 30 de novembro de 1938 – Paris, 3 de novembro de 1981), importante cineasta francês associado ao Nouvelle Vague, movimento marcante na história do cinema, que cruzou as fronteiras da França e influenciou cineastas e filmografias pelo mundo.

Eustache, por sua vez, viu o impacto das obras de Jean-Luc Godard e François Truffaut, mas realizou seu primeiro longa quando a estética da Nouvelle Vague dava sinais de esgotamento. Nos antípodas dos movimentos, entre eles, de fato, algumas semelhanças.

Com exceção de documentários iniciais, legou duas obras que o torna lembrado e motivo de culto: A Mãe e a Puta (1973) e Mes Petites Amoureuses (1974).

Estes filmes, mesmo cultuados e provocadores, tiveram histórias acidentadas, marcadas por censuras, rejeições ou desconfianças. Em decorrência, respeitadas as diferenças de tempo e circunstâncias, Eustache circulou com dificuldades, foi visto por um público seleto: se inscreve entre os diretores cujas obras são cultuadas, também, por que pouco acessíveis.

Eustache se engajou com entusiasmo no mesmo ambiente dos criadores da Nouvelle Vague, cujo núcleo duro era formado por J. L. Godard, François Truffaut, Jacques Rivette, Claude Chabrol e Eric Rohmer.

Nos primeiros anos da década de 1960, foi um agitador cultural que ocupou as páginas dos “Cahiers du Cinéma”, principal órgão de difusão do ideário dos chamados “jovens turcos” do cinema francês.

Mas, quando estes se projetam e agitam o mundo do cinema, Eustache se restringe à realização de documentários com circulação doméstica. Assim, enquanto a Nouvelle Vague passa, Eustache é tão somente um peão: participa do jogo, mas em papel coadjuvante.

Até que, quando a Nouvelle Vague já havia passado – Godard e Truffaut trilhavam caminhos autônomos –, Eustache realiza A Mãe e a Puta. Inegável, portanto, que ele é um filho temporão do movimento. Descolado do tempo, o filme exige que se lhe aponte a lupa com cuidado.

Do contrário, corre o risco de se valorizá-lo naquilo que está fora de sua finalidade enquanto obra (independente, claro, de intenções implícitas ou explícitas de seu criador), ou desvalorizá-lo, sem a devida atenção às peculiaridades da dinâmica histórica da criação artística.

A Mãe e a Puta foi aclamado pela crítica tanto quanto instigou polêmica. Ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes e elogios de Serge Daney, Jean Michel Frodon, importantes críticos dos “Cahiers du Cinéma”, que por razões diferentes o consideram um dos mais belos filmes do cinema francês.

Mas foi também fortemente atacado por Jean-Louis Bory, que nas páginas do “Le Nouveu Observateur” o denuncia como um filme misógino. E, para ratificar o quanto se trata de um filme incômodo, na década de 1990 Serge Chauvin, no “Les Inrocks”, pontua que o destino de A Mãe e a Puta parece estar irremediavelmente associado ao mal entendido.

Isso em consequência da personalidade esquiva de Eustache, que embaralha vida e obra de modo a que entre elas não haja demarcação. Assim, aparentemente colhida de vestígios biográficos, a trama do filme está concentrada nas ações de Alexandre (Jean-Pierre Léaud). Trata-se de um jovem desempregado, que é sustentado por Marie (Bernadette Lafont), com quem mora e mantém uma relação aberta. As primeiras sequências mostram Alexandre em crise com sua amante, Gilberte (Isabelle Weingarten), o encontro fortuito com sua amante seguinte, Veronika (Françoise Lebrun), e fugazes conversas com um amigo, que o escuta e é cúmplice de suas aventuras amorosas.

Depois de alguns desencontros, Alexandre, Veronika e Marie acabam envolvidos num ménage a trois. O filme, então, praticamente se confina aos três. Por meio de enquadramentos fechados, aos poucos, são exibidas suas manias, frustrações, explosões de cólera, manifestações de tédio, egocentrismos e incompreensões que os levam a uma condição absurda de isolamento. O modo como o triângulo amoroso é retratado segue, sem dúvida, o ideário estético da Nouvelle Vague: Eustache compõe explicitamente uma espécie de bricolage de Godard e Truffaut.

O triângulo central, de fato, evoca Uma Mulher É uma Mulher (1961), de Godard, e Jules et Jim (1962), de Truffaut. Deve-se atentar, contudo, para a inversão de situação: em Godard e Truffaut, uma mulher entre dois homens. Mas a questão não é de mera inversão numérica. Os triângulos amorosos de Godard e Truffaut têm como foco a questão da liberalização feminina, o que os justifica, enquanto o de Eustache acentua a fluidez de fronteiras numa situação que tomba para a perversão sexual. Ou, antes, acentua o desnudamento de práticas sexuais que afrontam o discurso burguês sobre a sexualidade; vale dizer: em sintonia, pois, com o pensamento de Michael Foucault.

Em termos sociológicos, A Mãe e a Puta coloca em cena o problema da reificação do comportamento sexual: Alexandre age como um escroque, mas ele está preso, a Veronika, uma lasciva com sentimento de culpa, e a Marie, cujo temperamento ciclotímico oscila entre a complacência e o sadomasoquismo. Por conta da maneira crua, sem retoques, com que esses personagens são retratados, incide o desconforto e incompreensão da crítica. Desconforto e incompreensão acentuados pelo fato de que Eustache deixou pistas que sugerem origem biográfica para as situações retratadas.

Nesse processo de absorção de referências, ainda, Alexandre é uma mistura de Michel Poiccard, personagem de Godard em Acossado (1960), e Antoine Doinel, célebre personagem de Truffaut, que surge em Os Incompreendidos (1959), e se repete em mais três filmes: Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979). Como se estivesse num filme de Godard, Alexandre está invariavelmente acompanhado de um livro, um jornal, fuma sem parar, profere monólogos sobre sua condição no mundo, e faz frequentes referências ao mundo do cinema. Mas em igual medida, como o personagem de Truffaut, suas ações, sua maneira de lidar com as situações, exibem um caráter ingênuo, inseguro, desprotegido, que tomba para a infantilidade. Essa condição um tanto alienada (sua liberdade está presa aos desejos de duas mulheres) implica num temperamento despido de malícia e de descolamento de tipo godardiano.

A assimilação de referências e adoção de um estilo que o filia à Nouvelle Vague fomenta desconfianças e gera mal entendidos com respeito à valorização de A Mãe e a Puta. Uma razão forte para isso é que Eustache inverte o sinal e apresenta algo como um falso Nouvelle Vague, ou um Nouvelle Vague negativo. E isso ele o faz de duas maneiras bem marcadas em sua narrativa.

Primeiro, a crueza e visceralidade com que Eustache aborda o tema de A Mãe e a Puta retiram um tanto do glamour, da ironia, do deboche, do espírito de liberdade e rebeldia juvenil que tanto caracterizam os filmes de Godard, Rohmer ou Truffaut. Para isso, um sutil deslocamento de foco social: seus personagens frequentam o Deux Magots e o Café de Flore, mas não são burgueses – Veronika é enfermeira e Marie balconista numa loja de roupas. Segundo, Eustache espelha, de modo intuitivo e com boa dose de niilismo, o momento da ressaca pós-68. Com isso, a juventude em seu cinema se afasta da dos filmes emblemáticos da Nouvelle Vague, que retratam os sentimentos, angústias e aspirações pré-68.

Os sinais de que o momento é outro, que se tem em vista uma nova ordem no dia a dia seguinte às barricadas de maio-68, são bem expostas no modo como Alexandre menciona a falta de dinheiro e sua condição de desempregado. Os desregrados de Godard ou Truffaut visam a uma crítica das convenções e valores burgueses num mundo em transformação, e para isso eles se dão ao luxo de não expressarem dificuldade com dinheiro ou trabalho. Para efeito de comparação, essa diferença de momentos exibe contrastes que precisam ser ponderados, quando se aproxima A Mãe e a Puta de um Godard, ou de um Truffaut. Tal comparação conviria se Eustache fosse entendido como um pasticho e, ao mesmo tempo, o contexto pós-68 fosse ignorado.

Ocorre que Eustache, com seu espírito blasé, levou a sério a ressaca e o horizonte sem utopias pós-68: não parece coincidência que Alexandre discorra sobre o suicídio e Eustache tenha se suicidado em 1981. É com espírito blasé, cínico e narcisista o suficiente para cair na impostura, que o filme foi concebido quando a mensagem, a estética e a rebeldia juvenil burguesa haviam se arrefecido. Quem o enxergar, portanto, exclusivamente pelo viés dos anos de 1960, se decepcionará e fará coro aos desconfiados de seu valor como obra de arte.

Mas, importante destacar, sem que tenha explicitamente esse propósito: Eustache sinaliza para os impasses do cinema francês e antecipa certa tendência seguida por destacados diretores franceses nas décadas de 1980 e 1990. Mais que de Godard ou Truffaut, diretores como Jean-Jacques Beineix, Leos Carax ou Patrice Leconte estão mais próximos do cinema de Eustache. Enxergar seu cinema por este viés significa lhe restituir o devido valor e importância.

Enfim, se há exagero em considerar A Mãe e a Puta um dos mais belos filmes do cinema francês, a acusação de misoginia reduz a crítica à dimensão politicamente correta. Assim sendo, Eustache estaria para o cinema como Louis-Ferdinand Celine para a literatura: o valor da obra condicionado à filiação de ideias. Felizmente, a história do cinema – como as artes em geral – é feita de movimentos sinuosos. Eustache, como grande “maldito” dessa arte, lega uma obra de linhagem, tanto quanto indica caminhos. E assim segue seu trajeto, cujo destino é o de se manter na penumbra e confundir espectadores precipitados.

(Fonte: http://www.cinequanon.art.br/grandeangular – GRANDE ANGULAR/ Por Por Humberto Pereira da Silva – 10/2012)
Humberto Pereira da Silva é professor de crítica de arte e ética na FAAP, crítico de cinema na Revista de Cinema, colunista do site Digestivo Cultural e autor de “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editora).

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