François Mitterrand, fez parte da História da França – como ministro, como líder socialista, enfim como presidente

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Entre a História e a eternidade

O astro socialista

François Mitterrand (Jarnac, Charente, 26 de outubro de 1916 – Paris, 8 de janeiro de 1996), fez parte da História da França – como ministro desde 1947, como líder socialista depois, candidato duas vezes, e por duas vezes derrotado, à Presidência da França (1965 e 1974), enfim como presidente, eleito em 1981 e reeleito em 1988. 

Ele já se apresentou aos compatriotas – e ao mundo – com diversos rostos, correspondentes a essas diversas fases e a diversos estados de espírito. Um rosto brilhante de inteligência ou embebido de malícia, pesado de gravidade ou nublado pela ambivalência e pela duplicidade.

O jovem ardente que, em 1942, vindo dos campos de prisioneiros da Alemanha, se estabeleceu na estação termal de Vichy, elevada àquela altura a capital da França “não ocupada”, como era conhecida a parte do território que, em vez de submetida à administração direta dos invasores alemães, se regia pelo regime do marechal Pétain.

O jovem Mitterrand, mobilizado para lutar contra os alemães, foi feito prisioneiro, como mais de 1 milhão de outros soldados franceses, quando do colapso da França, em junho de 1940. Segue-se um período de cativeiro, nos campos de concentração alemães, que se estenderá até dezembro de 1941, quando Mitterrand consegue fugir.

De volta à França, ele ingressou na Resistência contra a ocupação alemã. É rigorosamente certo que fugiu do cativeiro e rigorosamente certo que ingressou na Resistência, mas entre uma coisa e outra houve um período sobre o qual se começou a lançar luz.

As peripécias e as razões do jovem Mitterrand em seu quadro social e ideológico em que ele se formou, era um jovem de extrema direita, eis o que se anuncia desde logo – algo talvez embaraçoso para quem chegaria ao ápice como líder supremo das esquerdas, um Mitterrand revelador com outro rosto, que não os habitualmente admitidos.

 

Seu primeiro engajamento, em 1934, aos 18 anos, foi junto aos Voluntários Nacionais, um movimento de jovens liderado por um coronel, De La Rocque, associado ao fascismo. No ano seguinte, com apoio em fotos publicadas nos jornais da época, Mitterrand participa de uma manifestação contra a invasão de estrangeiros de que a França estaria sendo vítima.

O futuro líder socialista circulava num meio perigosamente próximo ao fanatismo. Íntimos amigos seus e de sua família foram membros da Cagoule, uma organização clandestina responsável por um punhado de sangrentos atentados terroristas.

Um jovem com essas preferências e essa experiência, ao ser preso e ver seu país humilhado pela Alemanha nazista, só pode ter sofrido uma grande decepção com a ideologia da extrema direita. Não necessariamente. Um jovem como esses, e esse foi o caso de muitos deles, poderia ter reforçado ainda mais seu horror ao sistema democrático e parlamentar de governo, cujas fraquezas e hesitações teriam levado à derrocada da França.

 

Em cartas de Mitterrand, na época em que era prisioneiro na Alemanha, em que exalta uma “revolução nacional” muito próxima daquela que ele próprio imaginava estar colocando em prática com seu governo em Vichy, baseada no trabalho, na ordem e na família, tanto quanto distante das baixezas da “política”. Nada mais natural, asiim, que, ao fugir, o jovem Mitterrand tomasse o caminho de Vichy.

Ali, o primeiro emprego de Mitterrand foi na Legião Francesa dos Combatentes e Voluntários da Revolução Nacional, uma organização que, segundo seu líder, François Valentin, tinha por objetivo estabelecer “a ligação entre o Chefe (Pétain), que emite os princípios novos do Estado, e um povo que não está ainda impregnado desses princípios”.

Depois ele passaria a trabalhar num órgão diretamente ligado ao Estado, o Comissariado para a Reclassificação dos Prisioneiros, cuja função era dar assistência aos franceses ainda presos na Alemanha e ajudá-los na readaptação quando voltavam à França.

Encarregado da propaganda desse órgão, no dia 15 de outubro de 1942 ele foi recebido, junto com alguns colegas, pelo próprio marechal Pétain. O fato desse evento e à primeira vista é como o flagrante do delito, a prova do crime. Na verdade foi o único e desimportante encontro de Mitterrand com aquele a quem a França admirava como seu maior herói, o homem que se fizera uma legenda na guerra de 1914-1948, mas que, na esquina seguinte da História, uma vez derrotado o fascismo, seria considerado o mais vil traidor.

 

ANTI-SEMITISMO – Mitterrand foi militante de direita e colaborou com o regime de Pétain. Segundo o próprio Mitterrand, “A maior parte dos líderes socialistas do mundo vem de um meio burguês”, disse ele na entrevista à TV. “É sua evolução, sua reflexão pessoal, que os faz mudar de lado.” Não se deve culpar alguém por suas decisões polítcas aos 20 anos.

Enquanto essas posições se situam num plano só teórico, mas o que houve realmente de pesado sobre os ombros de Mitterrand nada tiveram a ver com as opções platônicas. O que havia de pesado são duas coisas: a natureza anti-semita do regime de Pétain e suas relações com um personagem de nome René Bousquet (1909-1993), secretário-geral da Polícia de Vichy.

“Eu ignorava tudo”, disse Mitterrand, a propósito da legislação anti-semita de Vichy. Sua afirmação levou a um grande debate, na França. Seria possível alguém ignorar diretivas do regime de Vichy que iam da cassação da nacionalidade francesa aos judeus ocupassem postos na magistratura, na hierarquia do Exército, no magistério e na função pública em geral.

Quanto a René Bousquet, se sabe que teve papel decisivo nas operações de prisão em massa de judeus que em seguida eram deportados para a Alemanha. E no entanto Mitterrand foi amigo desse homem, tendo se encontrado com ele até meados dos anos 80. O presidente alegou que Bousquet, acusado de crimes de guerra, foi inocentado por uma Alta Corte em 1949, o que é verdade.

A partir daí Bousquet empreenderia uma nova e de novo vitoriosa ascensão dentro da sociedade francesa, que o levaria ao conselho de administração de diversas grandes empresas. Só nos anos 80 seu processo foi reaberto, evidenciando-se então seu papel de criminoso contra a humanidade.

Extraordinário personagem, François Mitterrand teve o gênio de confundir, tanto quanto de esclarecer, e nesse ponto se assemelha à figura máxima da França do pós-guerra, o general Charles de Gaulle. De Gaulle, num  dos maiores golpes de ilusionismo da História, transformou a França em vencedora da guerra, como se a França fosse ele, que foi para o exílio e desde o primeiro momento proclamou o combate sem trégua ao invasor alemão, e não a França imensuravelmente mais pesada, profunda e verdadeira que ficou onde estava e se envolveu nas ambiguidades, traições e pequenezas do regime de Vichy e do território ocupado.

Mitterrand disse que Vichy não era bem o que se pensa – capital do ódio, do colaboracionismo e do racismo. “Vichy era anárquica”, disse ele. Alguns homens que se encontravam na alta administração de Vichy no fundo da alma eram resistentes, e estavam preparando a Resistência.

O próprio trabalho de François Mitterrand, no comissariado de apoio aos prisioneiros, incluía um serviço clandestino, o de enviar documentos falsos e planos de fuga para os cativeiros, o que confirmaria que sob a capa de rigor e ordem a capital da França fascista esconderia um corpo tomado pela anarquia.

Mitterrand disse que havia “a ideia idiota”, mas “muito difundida”, de que Pétain e De Gaulle estariam agindo de acordo um com o outro. Se não estivessem explicitamente de acordo, pelo menos restava a percepção de que tanto um como o outro, à sua maneira, representavam obstáculos às pretensões alemãs, e caminhos a partir dos quais a França se refaria. “Eu vivi sob essa hipótese besta por algum tempo”, disse Mitterrand.

Esse extraordinário personagem que foi Mitterrand acertou sua biografia, enquanto houve tempo e antes que outros o fizessem. 

 

 

(Fonte: Veja, 21 de setembro de 1994 – ANO 27 – Nº 38 – Edição 1358 – INTERNACIONAL/ Por ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – Pág: 50/52)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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