Francis Bacon, pintor que nunca frequentou academias, foi o último grande pintor figurativo do século XX

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O pintor da repulsa

O marginal que se tornou um dos grandes nomes da arte moderna

Francis Bacon (Dublin, 28 de outubro de 1909 – Madri, 28 de abril de 1992), pintor irlandês. Ainda que fosse o último grande pintor figurativo do século XX, a vida e a obra de Bacon representam tudo aquilo que o bom mocismo ou a vanguardice cerebrina do mundo das artes plásticas repudiam.Dono de um traço macabro intuitivo, único em sua capacidade de expressar fúria e horror, Bacon foi um pária completo: Alcoólatra, viciado em jogo e homossexual, sempre andou na contramão.

Nunca frequentou academias, bajulou críticos ou cedeu a pressões dos marchands. Acima de tudo, Bacon sempre passou ao largo da moda abstracionista no mercado da arte contemporânea. “As coisas parecem cruéis na arte porque a realidade é cruel”, dizia. “Talvez seja por isso que tanta gente goste da abstração. Nõa se pode ser cruel em abstrato”, ensinava.

A pintura de Francis Bacon é de uma violência inescapável: na memória de quem os viu, seus quadros são lembrados como se recorda de um atropelamento. Mesmo com a banalização da violência pelo cinema e pela televisão, é difícil se livrar da sensação de irracionalidade e angústia que brota de sua telas. É nessa mistura de sensações incômodas que está o poder de sua pintura, na contradição extrema de fazer arte – o Belo com o horror.

Homônimo do filósofo inglês do século XVI, de quem os biógrafos dizem ser parente, Bacon, que tinha carne no nome, nutria obsessão pela crueza. “Somos carcaças em potencial. Quando entro num açougue, sempre fico surpreso por não estar lá, no lugar do bicho”, dizia. É uma das típicas frases de efeito que passou a usar depois que seus quadros ganharam boa cotação no mercado. Há quarenta anos Bacon não conseguia vender uma tela por 200 dólares. Antes de sua morte era um dos poucos artistas vivos cujas obras batiam a casa do milhão de dólares.

Toda a carga emotiva de Francis Bacon foi obtida através de um escasso repertório temático. Ao longo de uma carreira de mais de sessenta anos, o pintor limitou-se a fazer variações sobre os mesmo temas, geralmente auto-retratos, retratos de amigos, releituras de obras clássicas e monstros anônimos inventados por ele próprio.

Uma de suas telas mais famosas data de 1953 e traz o papa Inocêncio X absolutamente deformado. Inspirado no quadro de mesmo nome de Velázquez, Bacon subverteu o tratamento glorioso dado pelo espanhol ao modelo. O rosto de Inocêncio é transformado numa carranca horripilante. A cabeça de Inocêncio é extraída, por sua vez, de um personagem do filme Encouraçado Potemkin, do russo Sergei Eisenstein. Atela originou uma série de 25 quadros sobre o tema.

Assim como Bacon se inspirou no cinema, também o cinema foi buscar munição no pintor irlandês. O inglês Ridley Scott se inspirou nos monstros de pescoços descomunais do pintor para criar o bicho de Alien, o Oitavo Passageiro. Em Batman, quando o Coringa de Jack Nicholson invade o museu de arte de Gotham City à frente de uma horda de vândalos e desata a destruir Renoirs e Rembrandts, ele ordena que se poupe apenas um quadro – de Bacon.

Filho de um criador de cavalos, aos 16 anos Bacon foi banido de casa, em Dublin, por envolver-se de forma pouco ortodoxa com os empregados da estrebaria da família. Perambulando pela Europa, chegou a Berlim em 1926, onde passou a ganhar a vida vendendo favores a senhores mais velhos.

Um anos mais tarde, em Paris ao visitar uma exposição de Picasso, decidiu ser pintor. Em seguida, retornou a Londres, onde seu envolvimento com a pintura se aprofundou. Autodidata, rejeitava a academia. Dizia que técnica não se aprende. “O estilo vem do sistema nervoso do pintor. Não há como ensiná-lo.” Seus primeiros tempos de pintura foram miseráveis e Bcon se sustentou como taquígrafo, vendedor, cozinheiro e decorador.

Sua reputação internacional cresceria apenas em 1954, quando foi selecionado, junto com Lucian Freud e Ben Nicholson, para representar a Grã-Bretanha na Bienal de Veneza. O sucesso e a fortuna demorariam até a década seguinte. Já milionário nos anos 70, era generoso com os amigos, a quem garantia doses diárias de champanhe francês. Esse era o único de seus luxos.

Seu endereço londrino continuava sendo o de seu estúdio, numa antiga estrebaria reformada no bairro de South Kensington. Ali, Bacon sempre pintava pela manhã, dedicando tardes e noites ao jogo e à bebida. Ainda que marginal, demonstrava ser um conservador em alguns de seus hábitos. Barbeava-se diariamente e, citando Jean Cocteau, gostava de dizer: “Fazendo a barba todo dia, na frente do espelho é possível assistir ao trabalho da morte”.

O mundo da arte ficou mais inofensivo desde o dia 28 de abril. De férias na Espanha, o pintor irlandês Francis Bacon morreu de infarto num hospital de Madri, aos 82 anos.

 

(Fonte: Veja, 6 de maio de 1992 – ANO 25 – Nº 19 – – Edição 1233 -– Memória –- Pág; 81)

 

 

 

 

 

 

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