Érico Veríssimo, escritor, diretor, e best seller, e intelectual cada vez mais renovado

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OUVE-SE AINDA A CLARINETA

 

Notas e passagens do concerto vivido por Érico Veríssimo

 

Veríssimo: imaginação sem limite

 

Érico Veríssimo (Cruz Alta (RS) no dia 17 de dezembro de 1905 – Porto Alegre, 28 de novembro de 1975), escritor, diretor, e best seller, e intelectual cada vez mais renovado. Autor de obras que marcaram a literatura nacional, como “O Tempo e o Vento”“Incidente em Antares”, o gaúcho foi também um prolífico contador de histórias infantis.

 

Essa faceta do escritor reuniu livros para crianças que ele criou no fim dos anos 30, como “A Vida do Elefante Basílio” e “O Urso com Música na Barriga”, ficando claro qual era a sua maior arma: a imaginação desabrida. Na primeira história, por exemplo, ele fala sobre um elefante cujo sonho é voar como uma borboleta.

 

Foi um dos escritores brasileiros mais populares do século XX, com estilo simples, excelente contador de histórias, uma das grandes expressões da moderna ficção brasileira. Na sua maneira cinematográfica de apresentar as histórias, Érico Veríssimo ampliou o romance, focalizando o homem contemporâneo divorciado da religião, na busca de uma solução nem sempre otimista.

 

Quantas atitudes que fizeram do escritor érico Veríssimo um homem consciente diante do mundo decorreram de sua longa, obsessiva e cultivada consciência da própria condição de mortal? É certo que dela lhe veio a humildade, um traço marcante de quem, diante da necessidade de situar-se na hierarquia do sucesso literário, conseguia, no máximo, proclamar-se o melhor escritor da rua Felipe de Oliveira, em Porto Alegre, onde morava no n.° 1415. Em 1972 o dramaturgo e jornalista Jorge Andrade lhe perguntou se, com a sua bagagem de 34 livros publicados, não iria candidatar-se à imortalidade da Academia Brasileira de Letras, e ouviu a resposta que trazia uma autêntica surpresa: “Mas como, eu já sou quase uma vaga…”

 

Pelo “puro terror da morte”, Veríssimo explicava muito de sua literatura. E certamente desde 1961, quando sofreu seu primeiro enfarte, explicava também os seus cuidados com a vida, para continuar escrevendo “haste que el cuerpo aguente”. A conselho médico, passou a caminhar vários quilômetros, diariamente, “num ritmo de velha inglesa”. Levou ao rapaz do açougue um exemplar autografado de “Olhai os Lírios do Campo”, um grande sucesso desde o seu lançamento, em 1938. De volta a casa, almoçou. No escritório instalado no porão, descansou. Então foi ao cardiologista para um exame de rotina. Ligou para Jorge Andrade, em São Paulo, para lhe dar o número de seu novo telefone. “Disse que tinha ido ao médico, onde obteve agradáveis notícias sobre o estado de seu coração. Ele falou muito e ainda disse que estava com a pressão e a disposição de um jovem”, diria Andrade. Uma hora depois do telefonema, Veríssimo sentira-se mal diante do aparelho de televisão, recolhera-se ao quarto e morrera.

 

Acendendo luzes – Trabalhando no segundo volume de suas memórias, “Solo de Clarineta”, do qual uma parte já fora entregue à Editora Globo, Veríssimo morreu dezenove dias antes de completar 70 anos de idade. A parte final demorava porque o escritor, extremamente rápido como ficcionista, fazia questão de conferir escrupulosamente todos os dados desse depoimento, um auto-retrato de sua coerência, refletida até mesmo nos menores detalhes de sua vida. Na Editora Globo, onde deixou uma obra inacabada, entrou há 45 anos como revisor, para se tornar sucessivamente tradutor (mais de quarenta livros), diretor, e best-seller – todas as suas obras foram lançadas no Brasil pela mesma casa. No n.° 1415 da rua Felipe de Oliveira, viveu 35 anos. Casou-se em 1931 com a moça loira e de olhos azuis (“os cem olhos azuis” que vigiavam o seu respeito às prescrições médicas) que vivia em frente à farmácia, que chegou a possuir em Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, após a separação dos pais.

 

Foi talvez essa trajetória em linha reta que o ajudou a se manter um escritor e intelectual cada vez mais renovado, num momento em que tantos outros no Brasil envelheciam rapidamente pelo simples esforço de adaptar as ideias às conveniências do momento. Em sua casa, cada vez mais frequentada por jornalistas, Veríssimo repetia sem esmorecimento seu ritual de acender “meus lampiões, meus tocos de vela, e até as lamparinas”, quando achava que estava sendo encoberto o sol das liberdades públicas. Ali, tinha o cuidado de descer ao escritório, diante de um busto de Eça de Queiroz, na mesma máquina Royal onde escreveu os seus livros, a todas as perguntas, sem nunca refugar nenhum assunto. Assim, numa fase da vida brasileira em que tantos se regozijam com a facilidade com que as palavras se volatizam, Érico Veríssimo cultivava esse estranho hábito: registrava de forma indelével o testemunho de suas opiniões e sua bravura cívica.

 

O menino, sempre – “Diante da morte”, Veríssimo declarou em novembro de 1971, “eu me porto como menino que assobia no escuro para disfarçar o medo. E nunca assobiei tão forte e tão doidamente como em ‘Incidente em Antares’”. O livro, sua última obra de ficção, acabara de ser lançado para uma carreira de oito edições sucessivas e dois anos de permanência nas listas de mais vendidos em todo o país. Em Antares, uma cidade imaginária onde retratou fatos e homens públicos do Brasil, mortos insepultos voltaram à praça pública para atirar no rosto de uma sociedade conformista e retrógrada as verdades que os vivos preferiam ignorar.

 

Graças às suas cautelas de entrevistado e à sua coerência de autor, as verdades que Veríssimo pregou em vida não serão sepultadas com ele. O primeiro volume de suas memórias, publicado em 1973, está na lista dos mais vendidos no país. Nesse livro, ele conta, que um dia segurou a lanterna para o pai, farmacêutico, curar as feridas de um desconhecido que havia sido espancado pela polícia de Cruz Alta. A marca desse incidente apareceria, trinta anos mais tarde, no seu livro “O Continente”, onde monologa a personagem Floriano Cambará, um escritor onde muitos pretendem enxergar o próprio Érico Veríssimo: “Então eu, de olhos semicerrados, acariciando os ombros da rapariga, murmurei com sorriso preguiçoso: “É muito simples, darling. O brasileiro é avesso à violência’. E passamos a outros assuntos. No entanto, é bem possível que naquela mesma hora os ‘especialistas’ da polícia estivessem aplicando nas suas vítimas seus requintados métodos de tortura. Tu ouviste falar neles…”

 

Cambará se referia ao Estado Novo de Getúlio Vargas, Veríssimo se referia à sua experiência de menino. Mesmo porque era ele a dizer tempos mais tarde: “Nunca me canso de repetir que ninguém se livra do menino que foi”.

 

Bisturi em punho – Esses compromissos com a realidade, assumidos precocemente por um garoto pobre, que trabalhou como caixeiro, cujo pai morreu em São Paulo como indigente e foi enterrado num túmulo jamais descoberto pela família, moldaram um escritor cada vez mais preocupado com a posição do intelectual diante da vida, e menos com refinamentos de estilo.

 

“Sempre achei que o menos que um escritor pode fazer numa época de violências e injustiças como a nossa é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão propícia aos ladrões e assassinos. Segurar a lâmpada a despeito da náusea e do resto.” Essa lâmpada ele segurou em 1959, durante uma conferência no Teatro D. Maria II, no Rossio, em Lisboa. Lá, diante da polícia salazarista, defendeu a democracia. Conta Veríssimo na segunda parte, ainda por editar, de suas memórias: “… de bisturi metafórico em punho, comecei a cortar a carne dos governos totalitários, mostrando degenerescências, tumores e focos infecciosos: mentiras, contradições, violências, arbitrariedades, corrupções…”

 

Essa preocupação com a realidade talvez influenciasse seu original método de trabalho. Antes de iniciar uma obra, em seu escritório, abastecido com lápis coloridos bem apontados, ele preparava sumários, quase roteiros cinematográficos do que pretendia escrever, descendo a minúcias surpreendentes, como desenhar as personagens. “Depois”, confessou um dia, “eles tomam a brida nos dentes e me surpreendem criando situações novas, tendo reações próprias que eu mesmo não tinha previsto para eles.”

 

Sob controle, sem jamais gozar dessas liberdades, permaneceu sempre a sua principal criação, a personagem Érico Veríssimo, que ele esculpiu ao longo de 70 anos. Com profunda aversão pelas exterioridades que pudessem ferir seu gosto pela discrição. “Você nunca usou bombachas, Érico?”, perguntaram uma vez ao escritor, que consumiu centenas de páginas pintando usos e costumes gauchescos. “Não aprecio muito o carnaval”, foi a resposta. O desapego a coisas desse tipo exigiu dele apenas uma frase igualmente lacônica para recusar, em novembro de 1973, o título de doutor honoris causa que lhe fora concedido, por unanimidade, pelo conselho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: “Lamentavelmente, não posso aceitar um título que, hoje em dia, não me homenageia nem enobrece. E também não tenho mais saúde para isso”. Não era bem assim, pois, enquanto aguentou o corpo de cardíaco, ele continuou a executar no escritório ou na sala de visitas onde recebia toda sorte de entrevistadores, o solo em que se converteram as suas manifestações de coragem e lucidez. “Sou muito procurado por gente que tem problemas, para saber o que é a alma, o que é a vida, coisas que não posso responder”, comentava. “Há muito louco por aí.”

 

A importância da liberdade – Mas o que achava ao alcance de suas vistas de intelectual nunca sonegou aos visitantes. Em junho de 1975, o americano Hugh Willis, aluno de português da Academia Naval dos Estados Unidos, procurou-o de gravador e máquina fotográfica em punho, firmemente decidido a recolher souvenirs de uma celebridade literária. Willis saiu com uma orientação para o trabalho que pretende escrever sobre Érico Veríssimo: “Se esforce por enfocar a importância atribuída, na minha obra, à liberdade”.

 

Essa preocupação com a liberdade, manifestou em carta que o então deputado pelo MDB gaúcho Paulo Brossard leu, em 1970, da tribuna da Câmara em Brasília: “Nenhum artista, nenhum escritor pode produzir livremente se não tiver a mais ampla liberdade de expressão. (…) Estamos dispostos a pagar por essa liberdade com a moeda da responsabilidade”. E isso partiu de um autor que muito cedo aprendeu a não justificar por dificuldades conjunturais externas os temores pessoais e íntimos que podem limitar o trabalho de crítica e criação. “No tempo do Estado Novo, vivi e sofri restrições do Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas”, contava Veríssimo. “Houve uma hora, lá por 1939, 1940, que cheguei a pensar em emigrar.” Acabou optando por ficar, aceitando todos os percalços e deveres de homem atento ao mundo. Em 1943, quando ainda havia no país algum fascínio pelos governos fascistas da Europa, Veríssimo fundou em Porto Alegre a Sociedade Antifranquista.

 

Gentil desdém – Em 1962, quando ensinava na Universidade de Harvard, o brazilianist Thomas Skidmore conheceu Érico Veríssimo durante uma conferência. Horas depois da morte de Veríssimo, o historiador americano dizia, em Washington: Eu estava começando a estudar o Brasil na época. Érico me deu uma autêntica aula de compreensão do Brasil e do espírito de seu povo”. Nem seria por outra razão que Veríssimo gostava de insistir: Não trocaria por nada o privilégio de estar vivendo nesta época, nesta hora e neste curioso país”. E reiterava: Não sou pessimista em relação ao Brasil. Não existe na América Latina outro país com mais possibilidade de se tornar uma nação de verdade entre as grandes nações do mundo”. Por ter escolhido ficar no Brasil em todas as suas responsabilidades é que o melhor escritor da rua Filipe de Oliveira” tornou-se um autor traduzido para muitas línguas e de razoável renome internacional.

 

Mas em agosto, quando o telefonema com a notícia de que acabara de ser indicado pelo Pen Club para concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura, Érico Veríssimo reagiu com o mesmo gentil desdém que reservava às grandes atrações da vaidade humana: “Não tenho estatura nem cara para Prêmio Nobel. Sou sincero, não me acho o pior romancista do mundo, conheço alguns piores do que eu, mas acho que esse prêmio não dá”.

 

“Ele foi o escritor que revelou ao Brasil uma paisagem nova”, dizia o crítico literário Affonso Romano de Sant’Anna, ao avaliar a sua obra vasta* e agora completa. “O Rio Grande do Sul, sua história, gente e costumes, narrados nos três volumes de ‘O Tempo e o Vento’ (1948-1960), acontecimentos que se iniciam em 1745, com Pedro e Ana Terra, e terminam com a queda da ditadura de Getúlio Vargas. São, portanto, 200 anos de história romanceada, dentro de uma tradição que lembra o romance sinfônico do século XIX, nos moldes de Balzac e Tolstói”.

 

Mas a falta de Érico Veríssimo, já na noite de sexta-feira, começava a ultrapassar os puros limites da literatura. “Poucas ausências serão tão sentidas pela oposição brasileira, ele era um de seus símbolos. Em “Solo de Clarineta” ele marcou nitidamente sua presença definitiva como humanista, sofrendo com seu país.” Isso dizia o pernambucano Fernando Lyra, pelo MDB. Porém, na casa do senador Daniel Krieger, da Arena gaúcha, a chegada da notícia mostrava que, mais do que um símbolo da oposição, Veríssimo poderia representar simplesmente a luta pelo direito de pensar com liberdade.

 

Nesse momento, em Porto Alegre, a novidade era levada a uma grande Churrascaria Saci, onde uma turma de formandos da Pontifícia Universidade Católica comemorava a colação de grau. O jantar terminou em silêncio, à pedido de um professor para que não houvesse discurso.

 

Nenhuma pompa – “Não temo tanto a morte biológica, como a sua iconografia, seu ritual, o seu folclore, as superstições que a cercam”, Veríssimo declarou em 1971. Na Assembleia Legislativa, onde se velou o corpo, a família evitou toas as pompas. Cumpriu-se, também a exigência de Érico Veríssimo: “Não deixe que meu corpo seja exposto”. Vivo Érico Veríssimo não teria conseguido sustar as homenagens que lhe estavam preparadas para a comemoração do septuagésimo aniversário. “A Editora Globo vai instituir um prêmio literário Érico Veríssimo nesta data”, dizia, o editor Henrique Betaso. “Ainda estávamos programando o convite de lançamento do prêmio”.

 

A Associação Rio-grandense de Imprensa, da qual Érico Veríssimo foi um dos fundadores e primeiro presidente, também planejava comemorações do aniversário. Em Caxias do Sul, a passagem dos 70 anos do escritor seria feita na forma de uma medalha de bronze com seu perfil.

 

“Eu morrerei primeiro que a ficção”, disse em 1970 Érico Veríssimo a um jornalista que o interrogava sobre o fim da literatura. Como um dos poucos escritores no Brasil que pode viver exclusivamente de direitos autorais, Veríssimo pode deixar, ao morrer, uma obra – mais de 3 milhões de exemplares vendidos só em língua portuguesa – que garantirá a sobrevivência de seus escritos de ficção muito além da existência do escritor. Mais difícil, talvez, será encontrar quem assuma, de agora em diante, a responsabilidade de continuar seu exemplo de homem profundamente compromissado com os problemas, as dores, a realidade de seu país.

 

Morto, Érico Veríssimo não conseguirá fugir, em estátuas e nomes de praças públicas, das homenagens que, por pudor e por descaso, conseguiu tantas vezes evitar em vida. Resta saber se alguém lhe prestará a homenagem de continuar seu solo de clarineta. O melhor tributo a um escritor que gostava de advertir: “Falando com franqueza, eu não quero ser estátua. Só os passarinhos é que sabem tratar os monumentos com naturalidade”.
Érico Veríssimo morreu em 28 de novembro de 1975, aos 69 anos, em Porto Alegre.

* As obras completas de Érico Veríssimo são: “Fantoches” (1932), “Clarissa” (1933), “Caminhos Cruzados” e “Música ao Longe” (1935), “A Vida de Joana d’Arc” (1935), “As Aventuras do Avião Vermelho” (1936), “Os Três Porquinhos Pobres” (1936), “Rosa Maria no Castelo Encantado” (1936), “Meu ABC” (1936), “Música ao Longe” (1936), “Um Lugar ao Sol” (1936), “As Aventuras de Tibicuera” (1937), “O Urso-com-Música-na-Barriga” (1938), “Olhai os Lírios do Campo” (1938), “A Vida do Elefante Basílio” (1939), “Outra Vez os Três Porquinhos” (1939), “Viagem à Aurora do Mundo” (1939), “Aventuras no Mundo da Higiene” (1939), “Saga” (1940), “Gato Preto em Campo de Neve” (1941), “O Resto é Silêncio” (1942), “A Volta do Gato Preto (1946), “O Continente” (1949 – primeiro volume da trilogia “O Tempo e o Vento”), “O Retrato” (1951 – segundo volume da trilogia), “Noite” (1954), “Gente e Bichos”, “México” (1957), “O Ataque” (1959), “O Arquipélago” (1961 – terceiro volume da trilogia), “O Senhor Embaixador” (1965), “O Prisioneiro” (1967), “Israel em Abril” (1969), “Incidente em Antares” (1971) e “Solo de Clarineta” (1973).

O escritor falece subitamente no dia 28 de novembro de 1975, deixando inacabada a segunda parte do segundo volume de suas memórias, além de esboços de um romance que se chamaria “A hora do sétimo anjo”.

(Fonte: Veja, 3 de dezembro, 1975 –Edição 378 – BRASIL – OUVE-SE AINDA A CLARINETA – Pág; 20 a 24)

(Fonte: Veja, 25 de dezembro de 2002 – ANO 35 – Nº 51 – Edição 1 783 – Veja Recomenda – LIVROS – Pág: 130/131)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um corajoso solo de dignidade

 

(Fonte: Veja, 30 de janeiro de 1974 – Edição 282 – LITERATURA/ Por Benício Medeiros – Pág: 52/60)

 

 

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