Elemer Albert Hoffmann, mas escolheu viver como Elmyr de Hory.

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Elmyr de Hory (Hun­gria, 14 de abril de 1905 – 11 de dezembro de 1976), um charlatão, nome que se dá a certos homens de talento.

Foi um char­la­tão que é, como bem sabem, o nome que se dá a cer­tos homens de talento. Elmyr ilu­mi­nou o século XX, de 1906 a 1976. Para os con­ve­ni­en­tes efei­tos de registo chamemos-lhe Elmyr de Hory.

Um volá­til De Hory que mudou até à exaus­tão da capa­ci­dade do alfa­beto: Bory, Cory, Dory, até Zory, para já não falar de Dory-Boutin, Her­zog, Hoff­man ou Cas­sou. You name it! Em por­tu­guês: digam nomes!

Mas estou, já é cos­tume, a con­tar mal a his­tó­ria até por­que é difí­cil estabelecer-lhe a bio­gra­fia e a inves­ti­ga­ção não é o meu forte. Nas­ceu na Hun­gria, em famí­lia aris­to­crá­tica – e é men­tira. O pai era embai­xa­dor austro-húngaro – e é men­tira. A mãe des­cen­dente de con­so­li­dada linha­gem de ban­quei­ros – e é men­tira. Tudo fatos, tudo mentira.

Aos 18 anos estava em Muni­que a estu­dar Belas-Artes. Dois anos depois, em 1926, já está em Paris, onde foi aluno, muito bom, de Fer­nand Léger. Tudo fac­tos, tudo ver­da­des. Em Paris, converteu-se aos pra­ze­res da vida, da seda, do cham­pagne, das fes­tas, do grande estilo.

Os anos tota­li­tá­rios que pre­ce­dem a guerra, apanham-no em Buda­peste. Tem uma breve pas­sa­gem pela pri­são, por se lhe ter conhe­cido liga­ção a um espião bri­tâ­nico. Soltam-no, mas um ano depois os nazis espe­tam com ele num campo de con­cen­tra­ção, acusando-o de judeu e homos­se­xual. Sabe-se que não era judeu e sabe-se que era homos­se­xual con­victo e pra­ti­cante. Foi espan­cado, mas o seu forte ins­tinto de sobre­vi­vên­cia teve artes de engen­drar a fuga de um hos­pi­tal de Ber­lim. Dese­nhou, atra­vés do impé­rio nazi, uma fina linha de tra­pa­ças e subor­nos que o trouxe de volta a França.

Quando a Guerra aca­bou, o bri­lhante Elmyr ten­tou ganhar a vida com os qua­dros que pin­tava. Des­co­briu que mesmo que não mor­resse à fome, não ves­ti­ria casaca e não entra­ria no mundo de riqueza, volú­pia e cele­bri­dade a que aspi­rava. Já se sabe: com a fome vem sem­pre uma grande von­tade de comer e Elmyr des­co­briu que dese­nhava Picas­sos com uma faci­li­dade cân­dida, infan­til. Como há homens que nas­cem com uma mulher den­tro deles e vice-versa, Elmyr des­co­briu que o seu corpo abri­gava outro Picasso. Pelo menos no cir­cuito que se esta­be­le­cia entre as suas mãos, os olhos, o seu cérebro.

O pri­meiro Picasso vendeu-o a um amigo inglês que o tomou, para silen­ci­osa sur­presa de Elmyr, por um ori­gi­nal. Há silên­cios que desen­ca­deiam voca­ções. Nesse dia de 1946, Elmyr deixou-se cair nos bra­ços da fraude e da fal­si­fi­ca­ção, num certo sen­tido, num mundo mágico de tric­kery e make-believe. Paris vol­tava a ter o seu Hou­dini. Pri­meiro as fal­si­fi­ca­ções de Picasso, a que pron­ta­mente Elmyr acres­cen­tou dese­nhos de Matisse, Modi­gli­nani e Renoir.

Vendia-os porta a porta, gale­ria a gale­ria. Essa era a parte mais difí­cil. Elmyr tinha o seu orgu­lho e o acto de venda, a per­su­a­são do seu inter­lo­cu­tor, era-lhe estra­nha. Muito mais tarde, já nos anos 50, entrou numa gale­ria de Los Ange­les, abriu o port­fo­lio e Frank Perls, o gale­rista, ficou abis­mado com os Picas­sos e Modi­gli­a­nis. Tão abis­mado que des­con­fiou. Fechou a pasta ati­rou com ela a Elmyr, gritando-lhe que a porta da rua era a ser­ven­tia da casa. Elmyr saiu engo­lindo a humi­lha­ção, mas já na rua voltou-se para Perls e perguntou-lhe: “Mas acha que os dese­nhos estão bem fei­tos?” E Perls sabia, soube logo, que aque­les dese­nhos eram obras-primas de falsificação.

Era um fal­si­fi­ca­dor gen­til. Não estava ali para enga­nar nin­guém: que­ria que os seus Picas­sos e os seus Renoirs fos­sem ama­dos. Esse amor era a pri­meira e mais impor­tante remu­ne­ra­ção. Aca­bou por organizar-se para poten­ciar o melhor de si. Entre­gou a ter­cei­ros a venda. Foi obvi­a­mente vítima de fraude. Todos os par­cei­ros com que tra­ba­lhou – ardu­a­mente, entenda-se – o enga­na­ram mise­ra­vel­mente nas con­tas.

Elmyr teve a sua maior gló­ria na década de 50. Via­jou até aos Esta­dos Uni­dos e era como se tivesse che­gado ao paraíso. Tinha visto de 3 meses, ficou uma década. Dos dese­nhos pas­sou aos óleos. Com­prou livros (só que­ria ter um décimo da bibli­o­teca de arte dele) e estu­dou esti­los. A pouco e pouco alar­gou o port­fo­lio: Vla­minck, Cha­gall, Toulouse-Lautrec, Dufy, Derain, Degas, Bon­nard vie­ram juntar-se aos pri­mei­ros mes­tres. Não tenho a cer­teza, mas rezo para que nunca tenha fal­si­fi­cado um Léger, seu pro­fes­sor. (Hei-de ser sem­pre um sen­ti­men­tal e tenho a cer­teza de que Elmyr o era muito mais do que eu.)

Vai sem dizer que Elmyr não era um copista. O que ele dese­nhava, o que pin­tava, eram novas obras des­ses mes­tres. Genuí­nas, iné­di­tas. Geni­ais, como genial era o Matisse que ven­deu ao Fogg Art Museum, na Uni­ver­si­dade de Har­vard. Os peri­tos viram e os peri­tos reconheceram-lhe a auten­ti­ci­dade. Compraram-no e, digo eu para enver­ni­zar mais esta his­tó­ria, expuseram-no.

E foi aqui que se tor­ceu da que sabem o belo rabo. Mais tarde, novas peri­ta­gens des­co­bri­ram a fraude. E outros colec­ci­o­na­do­res – ó os texa­nos!!! * – des­co­bri­ram que tinham sido sua­ve­mente mas muito comidos.

A beleza da his­tó­ria é que as obras fal­sas des­per­tam nos colec­ci­o­na­do­res, nos experts e nos cura­do­res de museus as mes­mas inten­sas emo­ções esté­ti­cas (e tam­bém soci­ais) dos ori­gi­nais. Na ver­dade a única coisa que os separa é da ordem da lega­li­dade, mas não de pra­zer, de frui­ção. Ques­tão per­tur­bante: se não hou­ver a intro­mis­são legal a deter­mi­nar que há fraude, o arre­ba­ta­mento esté­tico de quem vê a fal­si­fi­ca­ção é genuíno. Mas então, para o que inte­ressa, para o orgasmo esté­tico, não pode­re­mos dizer que quero bem que se lixe que seja falso?

Os anos que se segui­ram foram anos de fuga e clan­des­ti­ni­dade. De luxo ainda, em Ibiza. Os anos em que, com alguma bon­dade, Elmyr, o char­la­tão tímido, per­mi­tiu, con­des­cen­dente, que outro char­la­tão, Clif­ford Irving (o escri­tor que tinha for­jado uma bio­gra­fia de Howard Hughes e por isso fora preso) escre­vesse a sua his­tó­ria. E que esse mago da mani­pu­la­ção cha­mado Orson Wel­les o fixas­sse para a eter­ni­dade, no filme “F for Fake”.

Infor­mado de que o governo espa­nhol cedera ao pedido de extra­di­ção da França, o que o sig­ni­fi­ca­ria aca­bar os seus anos na cadeia, a 1 de Dezem­bro de 1976, Elmyr tomou uma over­dose de com­pri­mi­dos e mor­reu nos bra­ços de Mark Forgy, seu companheiro.

*
Algur H. Mea­dows, mag­nata texano do petró­leo, des­co­briu que tinha a mais vasta, e cer­ta­mente a melhor, colec­ção do mundo do fal­si­fi­ca­ções de Degas, Bon­nard, Matis­ses, Picas­sos e outros pin­to­res meno­res. Com um sen­tido de humor mais negro do que o ouro que os tinha pago, Algur espu­mou de raiva e lan­çou todos os seus cães, do FBI à Inter­pol, em busca dos mági­cos falsificadores.

(Fonte: http://www.escreveretriste.com/2012/08 – Publicado em Agosto 20, 2012 – por Manuel S. Fonseca)

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