Charles Dickens, romancista da era vitoriana, o mais popular dos escritores de sua época.

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ESTRELA POP

A obra de Dickens transbordou

O homem que criou o Natal

As histórias do inglês Charles Dickens saíram dos livros e se tornaram parte da vida e da cultura.

Charles Dickens (Portsmouth, 7 de fevereiro de 1812 – Higham (Kent),9 de junho de 1870), romancista inglês. Os livros do autor inglês foram adaptados para todos os formatos, sempre com sucesso de público. Ele conheceu a pobreza por dentro.

Dickens entendia de crise. O pai dele trabalhava na administração da Marinha – ironicamente, no departamento que fazia a folha de pagamentos -, mas torrava mais do que ganhava, para manter uma fachada de respeitabilidade vitoriana. Resultado: quando Charles tinha 12 anos, seu pai foi preso por dívidas na penitenciária de Marshalsea, com toda a família, menos o futuro escritor.

Ainda criança, Dickens teve de dar duro numa fábrica de graxa para sapatos. Com o dinheiro, sustentava os parentes atrás das grades. Mais tarde, a situação melhorou, pois o pai recebeu uma herança inesperada. Mas o menino continuou a bater o ponto na fábrica por mais alguns meses – nunca perdoou sua mãe por isso. O episódio marcou-o para o resto da vida. Contou-o apenas a sua mulher e a seu amigo e biógrafo autorizado, John Foster, que o revelou depois da morte do autor.

O melhor exemplo da dimensão de Dickens é Um conto de Natal, escrito em menos de seis semanas. De certo modo, essa narrativa criou o Natal moderno – se não exumando o significado de um cristianismo puro, humilde e comunitário, ao menos resgatando uma espiritualidade e convivialidade festivas, de concórdia entre os homens. Sem entronizar o consumismo: quando o ex-pão-duro Scrooge sai de casa regenerado, rumo à casa de seu sobrinho, leva de presente não uma Daslu inteira, porém um singelo peru assado.

Estima-se que foram rodados 180 filmes baseados nos livros de Dickens – cada uma das obras foi filmada no mínimo duas vezes. Os intérpretes de suas personagens vão de sir Alec Guiness e Michael Caine ao Tio Patinhas de Walt Disney (diretamente decalcado do sovina Ebenezer Scrooge, de Um conto de Natal), passando pela Miss Piggy dos Muppets. O filme mais antigo ainda sobrevivente remonta a 1901 – outra adaptação de Um conto de Natal. Diretores como David Lean, Carol Reed e Roman Polanski rodaram fitas a partir de obras de Dickens. Mike Newell acaba de filmar mais uma versão de Grandes esperanças, com Ralph Fiennes no papel do imortal protagonista Pip (baseado em Dickens), sempre arrastando a asa pela esquiva e marmórea Stella. A sofreguidão por Dickens atesta que ele não está morto, que não se reduz a um fóssil entalado em prateleiras empoeiradas que ninguém procura. Pelo contrário, suas obras continuam ressoando através de nossa cultura.

Dickens pontificava sobre a idílica santidade do casamento e dos valores familiares, que, de acordo com a norma vitoriana, domesticavam as pulsões inconvenientes do homem. No entanto, na intimidade era um vulcão sexual, recordando a frase de Freud sobre a boa consciência na psique humana, que “em sua própria casa reina mas não governa”. Dickens casou-se jovem e teve dez filhos com a mulher, Catherine. Esta nem sequer era a rainha do lar. O marido determinava onde, como e com quem a família vivia. Catherine reduzia-se ao papel de poedeira eficaz, eternamente grávida. Como a maioria dos homens de sua época, Dickens nunca ligou para nenhum tipo de controle da natalidade.

Em 1858, já um divo planetário, ele separou-se da mulher – o divórcio era então um anátema, uma lepra social. Dickens continuou a sustentar Catherine enquanto esta viveu. Mas lançou contra ela uma sórdida campanha de difamação, a fim de melhorar sua saída de fininho. Publicou uma declaração alegando que Catherine sofria de “desordem mental” e “era alcoólatra” – tudo mentira. Foi mais longe, proclamando que “ela estava satisfeita por se ver livre dos filhos, e estes por se livrarem dela”.

Consta que, pouco antes da separação, Dickens teve um caso com sua cunhada Georgina – esta, por sinal, não se fez de rogada e foi morar com ele, oficialmente para “cuidar da casa”. A essa altura, o escritor fez tratamento contra uma doença venérea. Aos 46 anos, Dickens tinha-se apaixonado por uma atriz de 18 anos, Ellen Ternan, que se tornou sua companheira até o fim da vida e deu à luz um filho dele, morto prematuramente. Daí a necessidade de demonizar Catherine, como se a pobre matrona vitoriana, insípida e rechonchuda, fosse uma espécie de Lady Macbeth. Ele pouco escreveu depois daquele episódio, preferindo se aventurar num torvelinho extenuante de leituras públicas de sua obra. Nem precisava: já era uma estrela pop desde a edição em folhetim de As aventuras de Mr. Pickwick, ainda assinado sob o pseudônimo de Boz. O romance só deslanchou depois da aparição do inesquecível Sam Weller, o impagável (e mal pago) criado do protagonista, uma versão dickensiana de Sancho Pança. Aí, desembestou: em uma semana, pulou de 4 mil para 40 mil exemplares vendidos.

A obra de Dickens não passou incólume pela crítica. Virginia Woolf e Henry James torceram o nariz para o que condenavam como “excesso de coincidências” e “sentimentalismo”. Dickens apenas dava de ombros.

Como Shakespeare, Dickens nunca foi um intelectual, alguém para quem as ideias são mais importantes que as pessoas. Foi assim que engendrou peripécias e seres picarescos e justiceiros, cômicos e trágicos, grotescos e sublimes.

As duas avantajadas biografias simultâneas de Charles Dickens não são uma aberração editorial. Quando se trata do criador dos fantasmas dos Natais passado, presente e futuro – que assombram o personagem Scrooge –, nunca há escassez de mercado. De catedráticos a leitores comuns, passando pelos telespectadores mais alheados, somos todos macacas de auditório.

Dickens morreu, aos 58 anos.

(Fonte: Zero Hora – ANO 47 – N° 16.495 – 1° de novembro de 2010 – Hoje na História – Almanaque Gaúcho/ Por Olyr Zavaschi – Pág; 54)
(Fonte: Época, 6 de fevereiro de 2012 – N° 716 – MENTE ABERTA – LITERATURA/ Por Paulo Nogueira – Pág; 85/88)

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