Cassiano Ricardo, poeta e ensaísta. Combativo, revolucionário, contraditório, confessional

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Combativo, revolucionário, contraditório, confessional

 

Cassiano Ricardo Leite (São José dos Campos, 26 de julho de 1895 – Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1974), poeta, jornalista e ensaísta. Iniciou o curso de Direito em São Paulo, concluindo-o no Rio de Janeiro, em 1917.

 
Desde menino Cassiano Ricardo Leite foi uma surpresa para sua família e seu vizinhos na pacata São José dos Campos, interior de São Paulo. Inventava poemas, escrevia a mão um jornal, “O Ideal”, dialogava no jardim de casa com as borboletas, o regador de plantas. Esquivo, pouco brincava com os irmãos ou outras crianças da sua rua, preferindo ler e percorrer a pé as margens do Paraíba. Interessava-se por tudo: as anedotas que o padeiro contava à cozinheira, as histórias de fadas que a mãe lia, as fases da Lua e os bichos. Achava estranho o som de línguas estrangeiras. E, quando começou a aprender francês, na escola, repetia as palavras como se viessem de uma melodia mágica e desconhecida: “Maison”, “pain”, “rouge”.

 

 

A timidez do menino arisco, porém, já encerrava um espírito combativo. Reverenciado como um poeta capaz de revolucionar a poética brasileira, Cassiano Ricardo, lembraria, em suas saborosas “Memórias”, episódios da campanha em que, jovem advogado, se envolvera no Rio Grande do Sul, como defensor de Assis Brasil contra Borges de Medeiros. Cautos, os amigos gaúchos o advertiram dos perigos que corria: “Um dia os inimigos te amarram em lombo de burro e só te soltam do outro lado do rio Pelotas”. Destemido, contudo, Cassiano Ricardo continuava atacando “o caudilho Borges”, a ponto de correr risco de vida. Um fanático de tocaia apontou a espingarda contra sua cabeça, quando ele voltava para casa, e só o alarme de um cachorro o fez virar-se a tempo de escapar de uma bala mortífera. A partir daí, sua dedicação pelos cães tornou-se perene: “Que se fale de fidelidade de um animal que defende seu dono, admite-se, mas defender um estranho?”

 

 

A anta – Além da luta fratricida no sul, participaria da Revolução Constitucionalista de 1932. Acabou preso no Rio de Janeiro, junto com o poeta Guilherme de Almeida e o fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, pelo ditador Getúlio Vargas. Outra revolução de sua vida seria a trazida pela Semana de Arte Moderna, em 1922. Justificando não estar na capital paulista, “pois não poderia ser Santo Antônio, que estava ao mesmo tempo em Lisboa e em Pádua, na Itália”, chegou a explicar que foi realmente modernista antes da Semana de Arte. Concordava com a parte nacionalista “daqueles sete dias bíblicos”. Mas se insurgia contra o dilúvio de “ismos”, já desatualizados, que os promotores da Semana de Arte queriam trazer para o Brasil: o cubismo, o futurismo, o dadaísmo, o expressionismo.

 

 

Para Cassiano Ricardo, tinha chegado o tempo de “se parar de macaquear coisas da estranja”. E contra o movimento do Pau-Brasil de Oswald de Andrade ele opôs um único “ismo” que lhe parecia aceitável: “o verde-amarelismo”. Repugnava-lhe ao mesmo tempo o tom mundano do modernismo: “Nossa ideologia também se opunha à dos ‘salonistas’, que alimentavam seu modernismo (como o confessa o autor de “Paulicéia Desvairada”) em opulentos ‘regabofes’ nas admiráveis fazendas de dona Olívia de Paulo Prado”. Preferia o “social e popular” contido no manifesto que redigiu reivindicando uma libertação de modelos europeus, inclusive portugueses, do linguajar e da criação artística brasileiros. A anta seria o símbolo desse nativismo sem importações e o movimento Verde-Amarelo teria suas primeiras manifestações no romance, na história, na poesia e até no estudo do tupi.

 

 

O linossigno – Mais tarde, Cassiano Ricardo lamentaria que um dos componentes dessa renovação, Plínio Salgado, tivesse se bandeado para a extrema direita como escolha política decalcada do nazi-fascismo. “Eu e o Menotti del Picchia optamos por uma democracia brasileira, nascida aqui mesmo, graças ao nosso estilo de convivência humana, mas fundada na justiça social.” Contraditório, o poeta colaboraria no entanto com o Estado Novo, trabalhando em São Paulo no Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP. Inquieto defenderia, no baluarte do conservadorismo literário, a Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito em 1937, a renovação extraordinária de Cecília Meireles. E, citando Ionesco, explicaria: “Sempre fui um acadêmico anti-acadêmico”. Acompanhando as inovações na poesia, inventa o linossigno, palavra composta de line (linha, em inglês) e sinal ou símbolo linguístico e gráfico. Essa “linha de palavras”, sem contagem de sílabas nem rimas, aproveitaria melhor o espaço gráfico, dando maior impacto visual ao poema. Mas essa disposição inspirada na técnica gráfica não eliminaria a emoção: “Para mim, a emoção é o elemento vital, já que sem emoção não há estética e sim esteticismo em desespero (…). Acho que, na sociedade e no mundo cibernéticos, há problemas que somente pelo coração podem ser resolvidos”.

 

 

O coração e o frescor das imagens, mormente na sua obra-prima. “Jeremias sem Chorar”, predominam, de fato, desde seus primeiros versos até os livros mais recentes. Pouco a pouco, porém, sua temática, celebrando a terra brasileira, a fraternidade racial, o “homem cordial”, o colorido da natureza exuberante (como em “Martim Cererê”, seu poema maior), passou a se tornar mais urbana, mais ambiciosa e mais universal. Confessional, sua poesia espelhava a visão de um mundo que gradualmente se torna mais melancólica. O poeta que queria celebrar o amor e a paz entre os homens descobriu o aceleramento da hostilidade entre os povos e as nações, os regimes totalitários – e a morte da Literatura como expressão arcaica da palavra. Como refletem seus versos intimistas: “Não sou o herói do dia. Passei pela vida como quem passa/ por um jardim público/ onde há uma rosa proibida/ por edital”.

 

 

Três momentos da poesia de Cassiano

 

 

Lírico em “Dentro da Noite” (1915), sua primeira coletânea de versos, parnasiano em “A Flauta de Pã” (1917), imbuído de nacionalismo na experiência modernista de “Vamos Caçar Papagaios” (1926), profundamente brasileiro com “Martim Cererê” (1928), Cassiano Ricardo nunca cessou de amadurecer até atingir seus melhores momentos em poemas como os três que se seguem:

RELÓGIO (1947)

Diante de coisa tão doida
conservemo-nos serenos
Cada minuto de vida
nunca é mais, é sempre menos.
Ser é apenas uma face
do não ser, e não do ser.
Desde o instante em que se nasce
já se começa a morrer.

A FLAUTA QUE ME ROUBARAM (1947)

Era em São José dos Campos.
E quando caía a ponte
eu passava o Paraíba
numa vagarosa balsa
como se dançasse valsa.
O horizonte estava perto.
A manhã não era falsa
como a da cidade grande.
Tudo era um caminho aberto.
Era em São José dos Campos
no tempo em que não havia
comunismo nem fascismo
para nos tirarem o sono.
Só havia pirilampos
imitando o céu nos campos.
Tudo parecia certo.
O horizonte estava perto.
Havia erros nos votos
mas a soma estava certa.
Deus escrevia direito
por pequenas ruas tortas.
A mesa era sempre lauta.
Misto de sabiá e humano
o meu vizinho acordava
tranquilo, tocando flauta.
Era em São José dos Campos.
O horizonte estava perto.
Tudo parecia certo
Admiravelmente certo.

2.ª LADAINHA (1964)

Por que o raciocínio,
os músculos, os ossos?
A automação, ócio dourado.
O cérebro eletrônico, o músculo
mecânico
mais fáceis que um sorriso.
Por que o coração?
O de metal não tornará o homem
mais cordial,
dando-lhe um ritmo extracorporal?
Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo,
na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.
Ó máquina, orai por nós.

(Fonte: Veja, 23 de janeiro de 1974 – N° 281 – LITERATURA/ Por Leo Gilson Ribeiro – Pág; 78/79)

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