Anthony Burgess, escritor inglês, o último clássico moderno da literatura inglesa do século XX.

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Burgess: produção a toque de caixa sob a ameaça da morte

Anthony Burgess (Manchester, 25 de fevereiro de 1917 – Londres, 22 de novembro de 1993), escritor inglês, o autor de A Laranja Mecânica, escritor de primeira e mestre da invenção linguística.
Num dia qualquer de 1959, um médico de Bornéu, colônia britânica encravada na Ásia, disse a seu perplexo paciente que um incurável tumor cerebral só lhe dava mais doze meses de vida. Entre descrente e atordoado, o paciente tomou o rumo da rua. Ao chegar em casa, sentou-se diante da máquina de escrever e começou a trabalhar num ritmo frenético. Um ano mais tarde continuava vivo – e tinha cinco romances na gaveta. O home para a qual o médico incompetente anunciara a sentença de morte, ninguém menos do que o escritor inglês Anthony Burgess, só morreria dia 22 de novembro de 1993, em Londres, 34 anos e cinquenta livros depois daquela assustadora consulta. Tinha 76 anos de idade e há tempos lutava contra um câncer que o acabou derrotando. Uma derrota parcial: seus romances, peças de teatro, ensaios, roteiros de filmes e uma infinidade de obras em outros gêneros lhe asseguram um lugar de honra na literatura universal.

Burgess conseguiu uma proeza rara. Era dado a experiências com a linguagem e também à pesquisa das formas narrativas. Rigoroso, tinha como modelo literário o irlandês James Joyce (1882-1941). Apreciava nele a capacidade de conseguir tratar de problemas cotidianos através de um desconcertante experimentalismo linguístico. Burgess escrevia maravilhosamente bem e isso não o impediu de ser um autor popular, ao contrário de Joyce. Tornou-se injustamente conhecido por causa de um filme, A Laranja Mecânica, que escreveu em 1962 e foi levado às telas nove anos mais tarde. A Laranja Mecânica é um grande livro – melhor que o filme de Stanley Kubrick (1928-1999) – e não se conhece obra de ficção, na literatura contemporânea, que tenha sido capaz de tratar da violência com tanta crueza. O livro, também o maior sucesso de vendas do escritor, se baseia num fato real ocorrido em 1944: o estupro, por quatro rapazes, de sua primeira mulher, Lynne, durante a gravidez (ela acabou perdendo a criança). O experimentalismo ficou por conta da invenção de um dialeto falado pelos jovens, o nadsat, uma mistura de inglês e russo. A injustiça é que Burgess não foi autor de uma obra só.

O romance Sinfonia Napoleão (1974), por exemplo, segue à risca a estrutura da sinfonia Heróica, de Beethoven, escrita a princípio para homenagear o imperador francês. Já em As últimas Notícias do Mundo (1983) Burgess oferece ao leitor um verdadeiro caleidoscópio literário, em que os dias derradeiros de Freud se misturaram com a montagem de um musical da Broadway sobre Trotsky – isso, às vésperas da destruição da humanidade. Do mesmo modo, Poderes Terrenos (1980) passeia pelo século XX apresentando personagens fctícios vivendo episódios reais e figuras históricas metidas em episódios imaginários, num caldeirão de citações eruditas, impagáveis deboches e reflexões religiosas. Culto, dominando oito idiomas, inclusive o português, Burgess ainda criou a língua primitiva falada pelos personagens do filme A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud.

DISCIPLINA – Filho de um casal católico de classe média, pai pianista e mãe dançarina, John Anthony Burgess Wilson, que nasceu em Manchester, em fevereiro de 1917, chegou à literatura quase por acaso. Na infância, queria ser pintor – mas descobriu que era daltônico. Abriu, então, o piano de casa e, sem que ninguém nunca houvesse lhe ensinado uma só nota, começou a tocar. Decidiu ser músico. Só que o curso de Música da Universidade de Manchester exigia sólidos conhecimentos de física, disciplina na qual Burgess jamais conseguia aprovação. Foi por isso que entrou para a faculdade de Letras.

Do ano em que escreveu desesperadamente, pensando que ia morrer, Burgess guardou o saudável hábito da disciplina literária. Ele se obrigava a escrever todo dia. Conseguiu publicar até suas memórias (dois pesados e ótimos volumes que foram lançados no Brasil em 1994. Mas deixou inacabados vários projetos, inclusive o de duas óperas, uma sobre Freud e outra a respeito de Don Juan. Casado pela segunda vez com a condessa italiana Liliana Macellari – Lynne morreu de cirrose em 1968 -, Burgess deixou a Inglaterra nos anos 80, por achar que lá se cobram impostos abusivos. Adorava falar mal de seu país – só que nunca deixou de visitá-lo. Morreu como o último clássico moderno da literatura inglesa do século XX.

(Fonte: Super Interessante – ANO 6 – Nº 6 – Junho de 1992 – Dito & Feito – Pág; 47)
(Fonte: Veja, 1° de dezembro de 1993 – ANO 26 – N.° 48 – Edição n.° 1316 – MEMÓRIA – Pág; 108)

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