A primeira autora de novela a receber homenagens dignas dos grandes nomes do show business

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A mestra das novelas

Janete: pela primeira vez, um esmagador tributo a alguém de trás das câmaras

A primeira autora de novela a receber homenagens dignas dos grandes nomes do show business

 

Janete Clair (Conquista, Minas Gerais, 25 de abril de 1925 – Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1983), criadora da moderna telenovela brasileira e considerada a melhor autora do gênero na história da televisão brasileira. Uma campeã de audiência, Janete Clair não foi importante só como autora, mas também na afirmação da Globo e da televisão como é hoje. Dona da maior produção de telenovelas do país, cerca de 300 obras datilografadas por Clair ao longo de sua carreira. Antes de ganhar fama como “rainha” das novelas das oito da Globo, Clair havia obtido sucesso como autora de radionovelas. Foram 37 textos. O Brasil torce. Salviano Lisboa, aquele viúvo rico e solitário, calvo, honesto e com ar de desamparo, tem que ficar com Lucinha, a operária ingênua e graciosa – ele tem que casar com ela. O Brasil se intriga. Quem matou Salomão Ayala? O Brasil se dilacera. André Cajarana precisa limpar o nome do pai morto. Catucha luta pelo amor de Juca Pitanga, Luana Camará deve livrar-se daquele espírito mau.

Não importa que período estivesse vivendo a república, na crise ou ao embalo do crescimento econômico, na ditadura ou ao alvorecer da abertura. Não importa que fosse Carnaval, Sexta-Feira da Paixão ou tempos eufóricos de Copa do Mundo. Num canto da imaginação, em contraponto a qualquer que fosse a realidade do dia-a-dia, estava sempre ligado aquele teatro de ilusões em que se moviam os Salviano Lisboa e Salomão Ayala, Ana Preta e Luana Camará, um balcão permanentemente aberto para a venda de paixões e devaneios, que era manipulado, com maestria maior do que qualquer outro, por uma senhora discreta e recatada, nascida Jenete Emmer, formada nos corredores do rádio e transformada, sob o pseudônimo de Janete Clair, na grande dama das telenovelas brasileiras. Janete Clair enfatizou dois fenômenos ligados à massacrante importância das telenovelas no Brasil. O primeiro foi a formidável unanimidade das telenovelas, capaz de reunir políticos, intelectuais e gente da mais pura extração popular.

Outro fenômeno, revelador não só da popularidade, mas, mais importante que isso, de um mais recente prestígio cultural que passou a envolver as novelas, foi o fato de se prestar um tributo de ídolo a alguém que sempre trabalhou atrás das câmaras, sem a visibilidade nem a natural identificação com o público de uma atriz ou um ator. Janete Clair transformou-se na primeira autora de novela a receber homenagens dignas dos grandes nomes do show business.

E com isso revelou que as telenovelas, como expressão de cultura, definitivamente já cumpriram aquela passagem ocorrida também na canção e no cinema – em que se celebra não apenas o cantor, mas também o compositor, e o público já reconhece não apenas o ator, mas também o compositor, e o público já reconhece não apenas o ator, mas também o diretor dos filmes, como sublinhavam a importância. da novelista. “Ela conhecia o gosto popular como ninguém”, disse Ivani Ribeiro, autora de primeira linha do quadro da Rede Globo. “Era uma formidável autora de best-sellers, uma espécie de Agatha Christie da televisão”, complementou.

“MINHA MESTRA” – Pelo esquife de Janete passavam tanto a multidão silenciosa de incógnitos que se dispôs a prestar a última homenagem à autora quanto alguns dos intérpretes mais frequentes dos personagens de suas novelas, como Tarcísio Meira e Glória Menezes. E um diretor da Rede Globo, Mauro Borja Lopes, o Borjalo. Qual era o segredo de Janete Clair? Já foi dito e redito que ela era a mais hábil das autoras, aquela dos maiores índices de Ibope e a que mais sabia fazer o público se emocionar ou se deixar arrebatar pelo suspense. “Ela era a minha mestra”, disse Sílvio Abreu, o autor de Guerra dos Sexos, novela das 19 hr.

Também se conhecem as grandes proezas de Janete, desde os 100% de audiência conseguidos nos capítulos finais de Selva de Pedra, em 1972, até tarefas delicadas como recuperar o horário da novela das 22 hr com o trabalho em que estava engajada e agora deixa interrompido, Eu Prometo. Talvez se tenha dado menos atenção, porém, à fundamental importância de Janete, não apenas na reinvenção da linguagem das novelas, mas na própria consolidação da Rede Globo como a campeoníssima de audiência e, portanto, na própria configuração da televisão brasileira tal como hoje se apresenta.

SINAL DE ALERTA – Para se compreender seu papel nesse sentido é preciso recuar a um tempo, a segunda metade dos anos 60, em que a Rede Globo foi assolada por uma sucessão de terremotos. O primeiro deles foi provocado pela própria Janete, logo ao chegar à emissora, contratada depois de uma vitoriosa carreira no rádio e esporádicos trabalhos para a televisão. Coube a Janete, como missão inicial, dar alguma solução a uma novela que se arrastava com produção cara, enredo confuso e baixos índices de audiência – Anastácia, a Mulher Sem Destino, com Leila Diniz no papel principal. E Janete foi radical: fez um terremoto abalar a ilha da Rússia onde se passava a história, matando dezenas de personagens. Ficou apenas um pequeno grupo, para simplificar a história e conduzi-la a um desfecho razoável.

O terremoto seguinte foi provocado pelo sucesso, entre 1968 e 1969, da novela Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, levada ao ar pela extinta TV Tupi, e abriu uma fenda sob os pés de Glória Magadan, a cubana importada de Miami que até então dirigia o departamento de novelas da Rede Globo. Pela primeira vez, de maneira absolutamente surpreendente, Beto Rockfeller não apenas tratava de um tema nacional e do momento presente, como o fazia numa linguagem informal, com diálogos coloquiais e desempenho nada empostado dos atores. Foi um sinal de alerta para a Globo que, até então, na linha Magadan, não acreditava nem em temas brasileiros nem em gente de carne e osso em suas novelas, e apostava em fantasmas como Anastasia, a princesa perdida da Rússia, ou o sheik de Agadir. E a emissora entendeu o sinal: junto com a cabeça de Magadan, rolou sua linha de dramalhões cubano-mexicanos.

É preciso recordar que, até então, a televisão brasileira não apresentava uma emissora hegemônica como é a Globo na atualidade. Ora era a Tupi quem estava liderando em audiência, ora a Record, ora a mais remota Excelsior. A Globo daria sua definitiva arrancada ao lococar no ar, em setembro de 1969, o Jornal Nacional e ao reformular seus esquemas de novelas. A emissora, com isso, ganhava uma cara. Plantava os pilares que, a partir de uma sólida couraça no horário nobre, lhe garantiria o voo em curso até hoje. E nessa empreitada, ao lado na época vice-diretor de Operações, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, e do diretor convocado para substituir Magadan no departamento de novelas, Daniel Filho, foi da máxima relevância o papel de Janete Clair, a quem cabia fornecer os textos que deveriam segurar o horário das 20 horas.

SONHOS NA CABEÇA – Foi íntima a colaboração entre os três nesses tempos heroicos. “Foi desfeito e nosso trio”, disse Boni, a Daniel Filho, ao comentar a morte de Janete. Numa época em que a Globo não tinha, como na atualidade, um quadro de novelistas que possibilitasse um revezamento entre eles, Janete ficou ininterruptamente no ar desde Anastácia, de 1967 até o fim de Pecado Capital, em julho de 1976. E seu papel não se limitava a escrever os próprios textos: Boni habituou-se a, confidencialmente, submeter-lhe as sinopses de todas as novelas que seriam levadas ao ar. Foi uma colaboração que deu certo. Daniel Filho recorda que, em janeiro de 1971, ao passar o reveillon na Bahia com Boni, Glória Menezes e Tarcísio Meira, de repente os atores foram reconhecidos pelo povo que fazia a Procissão dos Navegantes e então todos passaram a entoar a música de abertura da novela Irmãos Coragem. Para Daniel, foi o primeiro sinal de que as novelas haviam pegado, e haviam mesmo. A partir dos 70% de audiência de Irmãos Coragem, o primeiro sucesso retumbante de Janete, a Globo daria adeus concorrentes para nunca mais ser alcançada.

Sorte, para a emissora, que Janete Clair era inovadora, mas nem tanto. Ou melhor: ela se atualizava, mas não revolucionava. Formada nos dramalhões do rádio, Janete soube dar uma linguagem mais ágil e um conteúdo mais carregado de vida real às novelas de televisão, mas sem esquecer o domínio das paixões e até os condimentos de inverossimilhança que desde sempre fizeram o êxito de um folhetim. Se ela fosse uma intelectual experimentalista, correria o risco, como Bráulio Pedroso, de depois do sucesso de Beto Rockfeller tropeçar num fracasso como O Bofe. Muito pelo contrário, Janete não era uma intelectual – era uma intuitiva que, mocinha, se deixava embalar por histórias românticas, tinha muitos sonhos na cabeça e, claro, mantinha um diário. “Janete era uma pessoa cheia de paixão que não tinha pudor em mostrar o amor e o sentimento dos personagens”, disse o ator Francisco Cuoco, intérprete de muitas de suas criações, entre as quais talvez a maior delas, o Herculano Quintanilha de O Astro.

DONA-DE-CASA – Nascida em Conquista, Minas Gerais, e com a infância passada em Franca, São Paulo, Janete Clair soube aliar a seu coração romântico um profundo conhecimento de seu ofício. “Ela conhecia a função de cada elemento de uma telenovela, não só a literatura pura e simples, mas a visão e a audição”, depõe Glória Peres, sua assistente de redação em Eu Prometo. Janete Clair não era uma autora torturada – em 3 ou 4 horas era capaz de produzir as dezoito a vinte páginas datilografadas, com quarenta linhas cada uma, que compõem um capítulo de novela. Não a intimidava o total de 150 capítulos por novela que, ao final, resulta numa maçaroca de textos três vezes maior que … E o Vento Levou ou Dom Quixote. Janete podia até trabalhar apenas de manhã e no resto do dia ser o que mais profundamente era: uma dona-de-casa, que cuida dos filhos, vai ao cabelereiro e toma chá com amigas.

Essa senhora comum levava a sério seu trabalho. Ela protestou junto a direção da Globo, por exemplo, contra o desenvolvimento de Espelho Mágico, uma espécie de meganovela de Lauro César Muniz que, nas entrelinhas, ridicularizava o gênero. E, cumpridora, sempre trabalhava com grande adiantamento, a ponto de, mesmo doente, deixar vinte capítulos inéditos de Eu Prometo prontos, e toda a situação já resolvida. Janete morre numa época de pleno reconhecimento por seu trabalho. Acusá-la de quê – de vender fantasias? Fantasia por fantasia, para voltar ao tempo de afirmação de Janete, houve bem mais graves, como, a direita, a do milagre econômico- e, a esquerda, a de que a política se resolveria com tiroteio nas ruas. Ela ajudou o povo brasileiro a encontrar momentos de conforto as 20 horas da noite.

A morte de Janete Clair, de câncer, no dia 16 de novembro de 1983, aos 58 anos, enfatizou dois fenômenos ligados a massacrante importância das telenovelas no Brasil. Como se viu no funeral de Janete, responsável pela presença de dezenas de milhares de pessoas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde a novelista foi velada – e realizado com cobertura completa de TV para a qual a Globo até conseguiu um patrocinador, o esmalte Monange.

(Fonte: Veja, 23 de novembro de 1983 – Edição 794 – DATAS/ Televisão – Pág; 98/102 e 107)
(Fonte: Veja, 26 de maio de 1999 – ANO 32 – N° 21 – Edição 1599 – Memória/ Por Okky de Souza – Pág; 158/159)

Janete Clair esteve à frente de duas revoluções. A primeira foi a que transformou o dramalhão mexicano, vigente na televisão brasileira nos anos 60, no folhetim moderno e urbano da década seguinte. Em 1973, Janete vinha do maior sucesso até então no novo gênero, Selva de Pedra, que no ano anterior havia conseguido a consagração: 100% dos televisores ligados. A outra revolução, quase simultânea, foi a que guindou a Globo ao primeiro lugar. Isso ocorreu quando se formatou a programação da noite, com o Jornal Nacional ensanduichado entre duas novelas. A das 8 – Latifúndio de Janete Clair nos anos 70 – se tornou o prato de resistência da audiência.
(Fonte: Revista Veja – Especiais 35 anos/ Por Flávio Ciro – 24 de setembro de 2003)

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