Foi a primeira mulher a conquistar uma vaga na ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira

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Precursora feminina, Leci Brandão exalta o samba como missão social

Bárbara Forte
Do BOL, em São Paulo

A música, para Leci Brandão, é uma missão. Precursora feminina do ritmo brasileiro, ela foi a primeira mulher a conquistar uma vaga na ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira, consagrou-se como intérprete de samba-enredo no Carnaval e se tornou uma referência na composição de letras consideradas de protesto, que falavam do dia a dia do subúrbio e da favela.

Hoje, aos 72 anos, Leci revela que o samba está em suas veias desde a infância. E as maiores responsáveis por isso são a avó, a tia, a mãe e a madrinha: quatro mulheres apaixonadas pela verde e rosa, escola que, futuramente, seria um divisor de águas na carreira da sambista.

“Minha avó e minha tia eram Mangueira. Minha mãe também saía em uma ala e minha madrinha morava no Morro da Mangueira, além de desfilar na escola. É uma relação familiar muito natural. Eu sempre assisti, sempre gostei de assistir aos desfiles”, afirma.

 

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Embora Leci fosse criança nos anos 1950, a memória afetiva dos desfiles continua latente para a sambista. “Nós íamos assistir aos desfiles das escolas na avenida Presidente Vargas. Nessa época, a escola passava e a gente via tudo de pertinho. Havia aquela preocupação de fazer o lanche, minha mãe levava o cachorro-quente numa sacola de papel, embrulhado no papel de pão. Ambulantes também vendiam pera geladinha, aquela pera bem aguadinha, gostosa, docinha”, lembra.

Em casa, Leci ainda convivia com a música o dia todo. Seu pai era um fã de samba, blues e bolero. “Ele colocava aqueles discos enormes, de 78 rotações, e eu ouvia de tudo: Jamelão, Jacó do Bandolim, Dorys Day, Bienvenido Gandra”, relembra a cantora ao falar da infância musical.

Repercussão nacional  

 

Monalisa Lins/BOL

Leci Brandão ficou conhecida pelas músicas de protesto

Nos anos 1960, Leci Brandão se descobriu como compositora após uma frustração amorosa. “Eu estava muito triste porque perdi um amor e, aí, resultou no meu primeiro samba. Depois disso, eu comecei a escrever sobre tudo à minha volta”, afirma. 

Segundo a sambista, foi nessa época que ela percebeu que o que fazia era música de protesto. “Eu era meio jornalista, sabe? Trazia todos os registros das coisas que aconteciam no subúrbio. E alguém me disse que o que eu fazia era música de protesto, pois eu falava do suburbano, do trabalhador.”

Sua atuação social na música trouxe uma visibilidade que a artista não esperava, pouco tempo depois. “Incentivaram-me a me inscrever no programa ‘A Grande Chance’, do apresentador Flávio Cavalcanti. Era janeiro de 1968, e eu fui a mais votada da noite”, revela. De acordo com a cantora, o reconhecimento foi grande porque o programa era um sucesso da TV Tupi. “Todo mundo assistia, fui uma compositora consagrada pelo júri do Flávio”, conta.

 

Monalisa Lins/BOL

Leci foi descoberta pelo Brasil em 1968, quando participou do programa “Grande Chance”

Da arquibancada para a avenida  

Foi apenas em 1971 que Leci Brandão trocou a arquibancada, de onde assistia aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, pela avenida. A entrada da artista na ala de compositores da Mangueira foi um processo lento e cheio de estudo, que durou um ano inteiro.

“O Zé Branco, um compositor da escola que conhecia minha madrinha, foi quem teve a ideia de me levar para a ala de compositores. Ele me convidou para ir numa reunião, no centro da cidade. Eram mais ou menos 40 homens, que perguntaram o que eu estava fazendo ali. Ele [Zé Branco] disse ‘ela já faz música, já é compositora, mas seria interessante se a gente conseguisse colocá-la aqui'”, explica.

Na ocasião, eles pediram para que Leci escrevesse uma carta explicando os motivos pelos quais ela gostaria de participar da ala. “E foi o que eu fiz, disse que eu via a oportunidade como uma universidade, sensibilizei os compositores e eles me disseram que eu poderia ficar com eles por um ano, fazendo samba de terreiro. Se eles avaliassem que eu tinha condições de continuar, eles resolveriam após um ano”, afirma.

 

João Sal/Folhapress

Leci Brandão com as cores da escola do coração, a Mangueira

Em 1972, a artista recebeu a carteirinha da ala de compositores da Mangueira e desfilou pela primeira vez como compositora. Embora fosse a única mulher, ela revela que não sentiu preconceito no ambiente de trabalho. “Eles me receberam bem, primeiro porque eu cantava o samba de todo mundo na quadra, havia compositores que não tinham uma voz muito boa e eu cantava. E o fato de eu não exigir que houvesse um tratamento diferenciado por ser mulher fez com que eles me tratassem de uma forma muito natural, muito carinhosa, respeitosa”, diz. 

A Mangueira também presenteou a sambista com a chance de conviver com Cartola e Dona Zica desde a adolescência. “A gente estava sempre junto. Um dia teve uma feijoada na casa do Cartola, que o Candeia também foi. Teve um samba lá, e, de repente, num dos versos de partido alto, alguém falou meu nome. Tem uma coisa no samba que, quando alguém cita seu nome no verso, você tem que dar uma resposta. E eu consegui fazer uma resposta com uma rima legal. Na verdade, foi o primeiro teste que eu tive, foi na presença de Candeia e de Cartola”, relata.

No Rio, Leci Brandão ainda foi intérprete da Acadêmicos de Santa Cruz, em 1995. Com o enredo “Deuses e Costumes nas Terras de Santa Cruz”, a sambista se aventurou em mais um campo antes dominado por homens. Até então, poucas mulheres haviam sido intérpretes de sambas-enredo, como Eliana de Lima, Simone e Elza Soares.
“Fui convidada, mas cheguei com muita humildade, procurei trazer um samba num tom mais baixo, porque uma coisa é você cantar um samba-enredo no show, por três minutos. Outra coisa é você tocar por 60, 80 minutos, sem perder o embalo”, conta.
Ponte Rio – São Paulo 
Leci Brandão tinha um contrato com a Polygram e permanecia compondo canções de protesto no início dos anos 1980. Em 1981, porém, quando ela apresentou o repertório para a gravadora, foi questionada pelos dirigentes: “Eles falaram que as letras eram muito sérias, que eu fosse para casa e bolasse outro repertório. Eu achei aquilo um absurdo e fiz uma carta pedindo desligamento da gravadora”.

A sambista só voltou a pensar em gravar um LP cinco anos depois, em 1985. Foi a gravadora Copacabana, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, que acolheu as músicas contestadoras que haviam sido vetadas anos antes no Rio. A partir daí, Leci Brandão cultuou uma verdadeira relação de amor com a terra da garoa.

 

Monalisa Lins/BOL

Leci Brandão no dia em que lotou o Teatro Caetano de Campos, em São Paulo

“Logo no início de 1986 eu fiz um show no Teatro Caetano de Campos. O lugar tinha apenas 800 lugares. Lotou e tinha mais 1.000 pessoas do lado de fora. Nesse dia foi chamada a cavalaria da polícia militar para organizar a confusão que ficou na porta”, lembra a artista. 

No ano seguinte, a cantora começou a comentar o Carnaval de São Paulo pela TV Globo, ao lado do jornalista Carlos Tramontina. “O desfile era na avenida Tiradentes, ainda. Fizeram um sobradinho, de madeira, papelão, e a gente via o desfile dali. Foi a primeira vez que eu vi o Carnaval de São Paulo, era uma coisa maravilhosa”, diz.

Na mesma época, Leci Brandão conheceu integrantes das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo: Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Unidos do Peruche, Rosas de Ouro, Mocidade Alegre, entre outras. “Foi aí que eu comecei a conversar com as pessoas sobre essa coisa do samba de São Paulo. O Reinaldo, Príncipe do Pagode, me emprestou um livro que contava toda a historinha. Eu falei que estava errado aquele negócio de que São Paulo era o túmulo do samba”, afirma, referindo-se a Vinicius de Moraes, que fez essa crítica nos anos 1960.

Na sequência, Leci começou o verso que daria vida à música “Me Perdoa Poeta”, em resposta a Vinicius de Morais: “Poeta falou/Que São Paulo enterrou o samba/Que não tinha gente bamba/E não entendi por que/Fui à Barra Funda/Fui lá no Bixiga/Fui lá na Nenê/Me perdoa poeta, mas discordo de você”.

O futuro depende do morro
Quando o assunto é o futuro do samba, Leci Brandão exalta o trabalho que é feito nas periferias de São Paulo. Assim como Osvaldinho da Cuíca, que relaciona o ritmo ao trabalho que é feito nas comunidades, a sambista é taxativa: “Esta rapaziada, independentemente do resgate, está, na verdade, preservando uma cultura que é nossa”
A cantora entende que, mesmo não estando na televisão ou na rádio, a música está sendo perpetuada nos cantos de São Paulo e de outros Estados. “Não toca no rádio, não vai nos principais programas de TV, mas existe. Tem vida, o coração pulsa, as pessoas vão, as crianças vão, os idosos vão, todo mundo participa, todo mundo canta”, diz.
Leci, por fim, relembra uma música de Vinicius de Moraes que elucida sua contestação: “O morro não tem vez/E o que ele fez já foi demais/Mas olhem bem vocês/Quando derem vez ao morro/Toda a cidade vai cantar”.
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