Salvador Dali, o bufão espanhol que se tornou um dos grandes pintores do século XX.

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Salvador Dali, o bufão espanhol que se tornou um dos grandes pintores do século XX. A trajetória deste que foi o mais excêntrico herói dos primeiros tempos da arte moderna lhe garante um lugar na galeria da História, embora talvez não com o destaque imaginado por ele. Mestre na autopromoção, ele transformou seu nome em sinônimo de surrealismo, colocando em segundo plano artistas melhores dessa vertente da arte como De Chirico, Magritte e Max Ernst. Estes foram mais fundo nos objetivos revolucionários do surrealismo, de recuperar um espaço de sonho e de expressão de desejos inconscientes para a arte, em contraposição ao racionalismo da Bauhaus, do funcional e do construtivismo.

Se esses mestres foram mais fundo, Dali foi mais longe, internacionalizando sua marca pessoal. Do alto de seu célebre bigode retorcido e espetado para cima, que garantia ter “poderes magnéticos”, ele reforçou na imaginação popular a noção do artista como gênio louco. Sempre que aparecia em público, esperava-se dele pelo menos uma atitude excêntrica e uma das muitas frases surpreendentes que criou ao longo da vida.
Sua megalomania não tinha limites. Num pequeno livreto que publicou, Cinquenta Segredos Mágicos, não hesitou em comparar-se a alguns dos maiores mestres da pintura de todos os tempos e até a dar-se ao direito professoral de atribuir-lhes notas de desempenho. Um dos pais da arte moderna, Piet Mondrian, recebe zero em inspiração e apenas 1 em composição. No quesito gênio, aplica zero a Ingres e Manet e 19 a si próprio, admitindo 20 para Picasso e Verneer. Outra faceta de seu caráter era o de Midas, capitalizando coo ninguém a imagem que dele se fazia, vendendo seu talento até como desenhista de uma infinidade de produtos de consumo, que incluía vidros para perfume, móveis, roupas e objetos de decoração.

MONARQUIA – A volumosa obra deixada por Dali, que soma 2 000 quadros a óleo, além de gravuras e esculturas, já foi acusada de repetitiva, feita de acúmulo barroco de imagens e de um virtuosismo neoclássico deslocado nos tempos modernos. Boa parte dessas críticas é verdadeira quando aplicada a sua última fase, quando o talento em declínio e o derrame de obras falsas distorceram a visão real da contribuição artística de Dali. Essa contribuição só pode ser avaliada com clareza por seu desempenho nas décadas de 20 e 30, período em que criou algumas das imagens marcantes do repertório visual do século. Assim como outro genial espanhol, Pablo Picasso, tem as Demoiselles d’ Avignon, de 1907, ou Guernica, de 1937, Dali tem A Persistência da Memória, de 1931, uma inesquecível tela de relógios derretando para expressar a natureza fugidia do tempo. Também fazem parte do mundo de imagens dalinianas as girafas de crinas incendiadas, a Vênus de Milo com gavetas e a longa série de retratos que fez de sua mulher nas mais extravagantes situações. Dessa série, há pelo menos uma obra extraordinária – Leda Atômica, feita a partir do tema clássico da mitologia grega Leda e o Cisne.

Mestre do disfarce e na prestidigitação, Dali escamoteava uma dimensão de profundo estudioso, em todas as minúcias, das telas dos pintores clássicos Verneer e Ingres, entre outros, além dos fenômenos do inconsciente. Como os primeiros surrealistas, foi um iconoclasta com a religião antes de ter uma recaída mística, que ele chamava de “conversão ao misticismo vertical espanhol”. Dali sempre teve atitudes irônicas e polêmicas, mas ao mesmo tempo ousava – apesar de artista moderno – celebrar sua preferência por valores tradicionais: a monarquia, o direito divino dos reis, os valores da antiga pintura clássica. Nascido e criado em Figueras, filho de um tabelião, Dali conheceu em 1928, em Paris, o poeta André Breton, que quatro anos antes publicara o Manifesto Surrealista e já agrupava alguns artistas em torno de suas ideias. Foi graças à contribuição de Dali que o surrealismo, um movimento literário, desembocou na pintura e ganhou impulso. Mais tarde, seu sucesso comercial provocou o rompimento com seus companheiros surealistas, que lhe deram o cruel apelido de “Avida Dollars”, anagrama de seu próprio nome.

FRAUDE – Dali não ocultava uma verdadeira volúpia por dinheiro e um enorme prazer ao constatar que seus quadros valiam ouro. Essa característica se acentuou após o casamento com Gala, que o estimulou a autorizar e até autenticar, com sua assinatura, falsificações de sua obra. A partir da década de 50 e até o final da vida, essas práticas atingiram níveis industriais, produzindo uma avalanche de telas, esculturas e, especialmente, gravuras falsas. O obscuro pintor catalão Manuel Balladas pintou mais de 400 das 600 telas atribuídas a Dali desde 1975. A fraude coincindiu com o diagnóstico de mal de Parkinson no artista, que fazia suas mãos tremerem de modo incontrolável, impedindo o manejo dos pincéis. Outro impacto sobre a credibilidade da obra de Dali ocorreu quando a alfândega francesa deteve um carregamento de 25 000 folhas de papel em branco assinadas pelo pintor na Espanha que seriam impressas em Paris com supostas gravuras originais. As obras falsas atribuídas a Dali no mundo atingem números incalculáveis.

Dali já escapara da morte pelo menos duas vezes. A primeira, de forma quase milagrosa, ao restabelecer-se das queimaduras causadas por um misterioso incêndio em sua cama, em 1984. Dois anos depois, sobreviveu a uma cirurgia cardíaca para implantação de um marcapasso. Desde novembro de 1988, foi internado por três vezes, com complicações cardiopulmonares e hemorragia estomacal.

Ao isolar-se em seu castelo medieval de Pubol, na Espanha, há seis anos, logo após a morte de sua amada mulher, Gala, o pintor catalão Salvador Dali anunciou que desejava a solidão e queria praparar-se para o que chamou de sua “tragédia final”. Como o último mestre da pintura surrealista, acostumado a fazer quadros de sonhos e delírios. Dali sempre guardou para a vida pessoal efeitos tão espetaculares como as imagens de suas telas. Anunciou que não pretendia passar à eternidade “como um grão de areia entre as estrelas” e que desejava ter seu corpo congelado depois da morte e mergulhado num banho de azoto líquido, para ser lacrado numa cápsula. “Assim estarei pronto para conquistar a imortalidade”, concluía.

Os funerais de Dali – que morreu na segunda-feira, dia 30 de janeiro de 1989, de insuficiência cardíaca agravada por pneumonia, aos 84 anos, na Espanha – não incluíram banhos de azoto nem cápsulas especiais. Nem por isso deixaram de se transformar num espetáculo insólito. Pouco antes de seu início, o caixão ainda não tinha destino definido. A prefeitura do município de Pubol acenava com o desejo que Dali teria expressado de ser sepultado ao lado da mulher, na cripta do castelo onde o pintor passou seus últimos anos em reclusão. Já a prefeitura do município de Figueras pretendia sepultá-lo numa tumba construída às pressas sob a cúpula do Museu Gala-Dali, o segundo mais visitado da Espanha, atrás apenas do Museu do Prado, em Madri. Foi o que aconteceu. Embalsamado por 7 litros de formol para permanecer intacto por 200 anos, o corpo de Dali foi colocado no caixão e acrregado por guardas – com uniformes desenhados pelo próprio Dali – até o museu, onde foi exposto à visitação.
A direção do museu decidirá agora se o sepulta sob uma laje de pedra ou sob uma lâmina de vidro, o que permitiria aos visitantes do museu ver o corpo de Dali em meio às centenas de obras do acervo.

Entre obras de sua coleção particular e outras abrigadas na Fundação Gala-Dali, essa fortuna soma 100 milhões de dólares, fora duas propriedades – o castelo de Pubol e uma casa ateliê em Port Lligat. O rei Juan Carlos alimentava planos de incorporar as obras de Dali ao Museu de Arte Contemporânea de Madri, a prefeitura de Barcelona sonhava em fazer um museu para o célebre catalão e o triunvirato que administrava os bens do artista, formado pelo fotógrafo Robert Descharnes, o pintor Antoni Pitxot e o advogado Miguel Domenech, anunciava que não abriria mão das obras em poder da Fundação Gala-Dali. A disouta sobreveio porque ele não tinha filhos nem familiares diretos. Sua única irmã viva, Ana maria, foi deserdada por ele.
“Nunca vou morrer, sou imortal”, costumava gabarse Dali em seu habitual tom magalomaníaco. Tinha razão. Na última vez, não resistiu. Com sua morte, o século XX perde um de seus grandes pintores e um de seus personagens mais característicos no terreno das artes. O mais excêntrico herói dos primeiros tempos da arte moderna lhe garante um lugar na galeria da História.

(Fonte: Veja, 1° de fevereiro, 1989 – Edição n° 1065 – MEMÓRIA – Pág; 70/72)

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