Raymundo Faoro, advogado e escritor, eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2002

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Inquieto, Faoro permanece de pé
A coletânea “Raymundo Faoro e o Brasil” faz balanço da contribuição do autor de “Os Donos do Poder”

O nome de Raymundo Faoro (1925-2003) não consta no Dicionário Histórico Biográfico, da Fundação Getúlio Vargas, tampouco no Dicionário Biobibliográfico de Autores Brasileiros ou na obra O Brasil no Pensamento Brasileiro, ambos do Senado Federal. Por isso, a Fundação Perseu Abramo resgata, em boa hora, uma dívida da inteligência brasileira com o pensamento desse eminente cientista social que carrega o mundo e a cultura em seu nome. O livro Raymundo Faoro e o Brasil agrupa textos escritos pelos intelectuais Alfredo Bosi, Francisco Iglesias, Giselle Cittadino, Jessé Souza, Leopoldo Waizbort, Márcio Thomaz Bastos, Mino Carta, Renato Lessa, Juarez Guimarães e Rubens Goyatá Campante.

Além de ensaios, traz uma entrevista com Faoro realizada pelo professor Jair dos Santos Júnior, em 2002. Soma-se, ainda, aos ensaios e à entrevista, um álbum de fotografias do cientista em meio aos amigos, familiares, além das capas de algumas de suas obras. A publicação inclui, também, o discurso proferido, em 1978, por Raymundo Faoro, em Curitiba, quando estava à frente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Faoro nasceu em Vacaria, em 27 de abril de 1925, e morreu no Rio de Janeiro em 15 de maio de 2003. Como advogado e escritor, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2002. Em 1930, sua família mudou-se para a cidade de Caçador (SC), onde fez o curso secundário, no Colégio Aurora. Formou-se em Direito, em 1948, pela UFRGS, em Porto Alegre. Transferiu-se, em 1951, para o Rio de Janeiro, onde advogou e foi aprovado em concurso para a Procuradoria do Estado. Colaborou com a imprensa, principalmente na revista Quixote, em 1947, escrevendo para diversos jornais do Brasil. Como escritor, publicou ensaios de direito e ciências humanas.

Em Os Donos do Poder, publicado em 1958, analisou a formação do patronato brasileiro e buscou as raízes de uma sociedade na qual o poder público é exercido e usado como se fosse privado, o que demonstrou percorrendo a história de Portugal e do Brasil, dos seus primórdios até Getúlio Vargas e antecipando os rumos seguintes. Em A Pirâmide e o Trapézio, publicado em 1974, Faoro interpretou com originalidade a obra de Machado de Assis, dissecando a sociedade carioca no final do século 19.

Nele considerou os estudos machadianos até o início dos anos 1970, dialogando especialmente com Augusto Meyer, Eugênio Gomes, Astrogildo Pereira, Raimundo Magalhães Jr. e Sílvio Romero. Seu grande objeto de estudo era o Brasil, pretendendo captar a vida de Machado de Assis por intermédio de seus personagens, discutindo o próprio funcionamento das instituições brasileiras (família, Estado, igreja), o cotidiano do poder, a presença da ideologia, os vícios e as virtudes, os preconceitos e o amplo jogo da vida social.

Buscou, como presidente da OAB, o fim dos atos institucionais e ajudou a consolidar o processo de abertura democrática nos anos 1970, à medida que a sede da OAB, no Rio, tornou-e um front de resistência pacífica contra o regime militar. Partiu de lá, por exemplo, a primeira grande denúncia circunstanciada contra a tortura de presos políticos. No governo João Figueiredo, lutou pela anistia ampla, geral e irrestrita. Desde o momento em que deixou a OAB, foi colaborador das revistas Senhor e Carta Capital e inspirador da revista IstoÉ e no Jornal da República.

Apesar de tamanho prestígio, Faoro recebeu críticas contundentes de personalidades da intelectualidade e da política, unânimes, porém, quanto a sua relevância. A virtude maior de Os Donos do Poder é tratar, com detalhes, a história brasileira, afastando-se das interpretações marxista e weberiana, então em voga, construindo pressupostos singulares a partir dos conceitos inspirados em Max Weber. Talvez pela intensidade de suas análises, era rigorosamente combatido tanto pela esquerda – que o acusava de ser apenas um radical liberal – como pela direita – que acreditava, por sua vez, que o país vivia um estágio avançado de capitalismo, com instituições sólidas e uma economia crescente.

 

Para ele, havia uma perpetuação do patrimonialismo no Brasil, implicando o paternalismo, o clientelismo e o favoritismo, característicos da política nacional, ainda hoje, com a manutenção do poder dos “coronéis” sobre grande parcela da população, intermediando o uso da terra, garantindo “ocupação”, “proteção” e concedendo pequenos favores pessoais em troca de lealdade nas disputas políticas. Dentre as práticas patrimonialistas, eram comuns benfeitorias, com dinheiro público, em propriedades particulares e a concessão de empregos a correligionários leais.

Nesse sentido, alguns ensaios que se tornaram referência básica para a compreensão do Brasil, como Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, precisam ser revisitados. Conhecer o pensamento brasileiro passa, necessariamente, pelo entendimento das duas últimas obras, comparando-as com as formulações de Faoro, um dos principais intérpretes das peculiaridades brasileiras.

De Dom João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, o patrimonialismo estamental se manteve, fazendo com que o estamento aristocrático adotasse características burocráticas, acomodando-se às mudanças sem alterar as estruturas, mediante a ação em rede de relacionamentos que constitui um determinado poder de influência no âmbito da sociedade civil, formando, por assim dizer, bases sociais com aparelhamento próprio, invadindo e dirigindo a economia, a política e as finanças.

No campo econômico, as medidas postas em prática, que ultrapassam a regulamentação formal da ideologia liberal, alcançam desde as prescrições financeiras e monetárias até a gestão direta das empresas, passando pelo regime das concessões estatais e das ordenações sobre o trabalho. Nas suas relações com a sociedade, o estamento prevê as oportunidades de ascensão política, ora dispensando prestígio, ora reprimindo transtornos sediciosos, com o propósito de romper o esquema de controle.

O patrimonialismo, por sua vez, também evoluiu, passando de pessoal para estatal. Essa compatibilidade entre o capitalismo moderno e a tradição é uma das chaves para a compreensão do hibridismo cultural brasileiro. Portanto, há um ciclo do patrimonialismo ao estamento, divorciado da sociedade num movimento pendular, que engana o observador, o qual pode imaginar que ele se volta contra o fazendeiro, em favor da classe média, contra ou a favor do operariado. Trata-se, no entanto, de ilusões sugeridas pela projeção de realidade e ideologias modernas num Brasil tradicional, historicamente consistente na fluidez de seus mecanismos.

 

Dessa maneira, a formação social é, para a estrutura patrimonial estamental, um ponto de apoio móvel, valorizando aqueles que mais a sustentam. Daí que, entre as classes, se alie às de caráter especulativo, lucrativo e não proprietário. Por decorrência, o predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade, condiciona o funcionamento das constituições, via de regra textos formais sem correspondência com o mundo que regem.

Nessa perspectiva, a visão do chefe de governo era determinada pelo conteúdo do Estado, sendo que nele repousavam as esperanças do povo, de quem é o pai, não como mito carismático, herói, ou governo constitucional, mas como bom príncipe – Dom João I, Dom Pedro II, Vargas–, podendo empreender uma política social de bem estar a fim de assegurar a adesão das massas.

Desse modo, o chefe governa o estamento e as próprias relações sociais. Mais como símbolo do que como realidade, ele provê, tutela os interesses particulares, concede benefícios e incentivos, distribui favores e cargos, fazendo justiça mesmo sem a observância das normas legais, impessoais e meritocráticas. No presidente concentram-se, desse modo, todas as esperanças, de pobres e ricos, uma vez que o Estado representa o polo condutor da sociedade.

Ressalta-se, por fim, que embora alguns aspectos da obra de Faoro tenham se tornado discutíveis à luz da pesquisa e das interpretações historiográficas recentes, o todo permanece inquestionável. Algumas passagens, inclusive, são extremamente atuais, como a edição de 1975 de Os Donos do Poder: “Duas etapas constituem o ideal do empresário: na cúpula, o amparo estatal; no nível da empresa, a livre iniciativa”. A agudeza da análise e a originalidade do trabalho continuam atraindo os leitores e conferindo à obra o caráter de um clássico, sobretudo depois que o Brasil passou pelos governos FH e Lula.

Por tudo isso, o leitor tem acesso nas páginas de Raymundo Faoro e o Brasil, ao “conjunto mais completo, variado e rico de releituras de um personagem e de uma obra que ocupam um lugar central na formação da cultura democrática dos brasileiros”, segundo o professor Juarez Guimarães, organizador da obra.

 

MAURO GAGLIETTI * | * CIENTISTA POLÍTICO, DOUTOR EM HISTÓRIA, PROFESSOR DA IMED (PASSO FUNDO) E DA URI (SANTO ÂNGELO)
(Fonte: Zero Hora –- Cultura – Edição 16.238 -– Memória -– 6 de fevereiro de 2010)

 

 

 

 

 

 

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