O primeiro a fundir uma visão católica com vivificadores elementos do povo brasileiro

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O primeiro a fundir uma visão católica com vivificadores elementos do povo brasileiro numa denúncia candente como brado religioso e como reivindicação moral

Jorge de Lima: musicalidade e lirismo

Jorge de Lima (União dos Palmares, 23 de abril de 1893 – Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1953), poeta alagoano, autor de “Tempo e Eternidade” e “Túnica Inconsútil”, o Capitão Dreyfus da poesia brasileira. Condenado sem provas, sem um Emile Zola para revelar sua grandeza, ele continua atirado ao esquecimento. Acusações que pesam sobre o pseudo-reú: ser um poeta católico, com a agravante de não transmitir nenhuma mensagem engajada.

Ao contrário, complexo pensador místico, filiado ao catolicismo francês de François Mauriac e Paul Claudel, é o primeiro a fundir uma visão católica com vivificadores elementos do povo brasileiro numa denúncia candente como brado religioso e como reivindicação moral (“Senhor Jesus, o século está podre/ Os gritos da terra, dos homens sofrendo/ Me prendem, me puxam – me dai Vossa mão”).

Concisão e impacto – Como participação social e política, só ele inaugura no Brasil moderno, com admirável concisão e impacto, poemas de indignação contra a exploração econômica: “Mulher proletária – única fábrica/Que o operário tem (fábrica de filhos)/ Tu/ Na tua superprodução de máquina humana/Forneces anjos para o Senhoe Jesus/ Forneces braços para o senhor burguês”).

Será porque a sua poesia tende para um humanismo reconciliador dos homens em vez de pregar uma sangrenta luta de classes que Jorge de Lima foi absurdamente reduzido ao rol da infecunda “alienação burguesa” quando prevê a abolição das classes através da solidariedade humana e sem ditaduras do proletariado ou outras quaisquer?

Absolvido em instâncias inferiores – as da ignorância pura de seus versos -, ele é inocentado também em tribunais superiores – os da ideologia malévola – ao anteceder-se a todos ospoetas brasileiros e irmanar-se ao cubano Nicolás Guillén e aos criadores da “négritude” (como o senegalês Léopold Senghor e o antilhano Aimé Césaire), focalizando com uma ternura e uma profundidade admiráveis um marginalizado da sociedade nas Américas: o negro. Não bastasse a obra-prima “Essa Nega Fulô”, dezenas de outros “Poemas Negros” atestam a sua captação inédita e sensibilíssima de alguns traços da psique negra – a languidez, a sensualidade, a meiguice – em sua versão brasileira.

Geração cega – Enredo de samba da escola de Mangueira no Carnaval carioca, é possível que agora Jorge de Lima consiga uma popularidade, embora fantasiada, que lhe foi negada por toda uma geração cega ou propositalmente cegada à sua posição de grande poeta religioso, social, poeta do povo e particularmente de uma região brasileira, seu nordeste natal, com seu colorido, sua musicalidade e seu lirismo. Esta noção da pluralidade de temas que obedecem a um nexo único e ordenador, o poeta já a tinha revelado em 1935, quando se convencera de que “o mais alto plano poético era uso, invariável, adstrito aos grandes temas, pois somente eles podem originar obras duradouras”.

Com esta corajosa iniciativa o grande público tem acesso a uma das criações poéticas mais arrebatadoras e complexas que o Brasil produziu desde os tempos coloniais de Gregório de Matos Guerra. São quatro columes que resumem as várias facetas do extraordinário poeta injustiçado. Como Carlitos, Jorge de Lima exprimiu verdades universais em planos de compreensão diversificados conforme o gosto e o grau cultural do leitor.

Para os que preferem o Jorge de Lima colorista e terno, há a surpresa dos versos que cantam um Diabo brasileiro a quem se pergunta que bicho vai dar (“Diabo brasileiro quero saber quanto dá/ A dezena do carneiro?/Capeta, diabo brasileiro, quando dá/centena do macaco?”) e se pede, com oferendas de galinha preta, capa de borracha, punho engomado e o prêmio maior da loteria, a preguiça (“Que eu quero quebrar banqueiro/Que eu não quero trabalhar,/Que eu também sou brasileiro!); ou a biografia de Castro Alves à moda da literatura de cordel nordestina.
Outros lerão com entusiasmo a descrição saborosa da passagem de um trem pelo nordeste, no longo poema “G. W. B. R.”

Até odiar os Estados Unidos dentro de uma visão maniqueísta da História é possível, nos poemas “U.S.A.”, que certamente tornarão Jorge de Lima, no julgamento bíblico das Inquisições ideológicas, o primeiro poeta, justamente por estes versos que são os de última qualidade em seu amplíssimo painel criador. Tão amplo que atinge o mural hermático, erudito, talvez indecifrável de “Invenção de Orfeu”, o poema que, como “Os Lusíadas”, fixa uma nacionalidade nascente mas que à epopeia militar prefere uma extraordinária multiplicidade de métricas e estilos, um estranho e maravilhoso monstro poético, gongórico e poliédrico, a deslumbrar e desafiar uma única interpretação definitiva.

Caleidoscópio que se renova sempre diante de cada novo olhar, “Invenção de Orfeu” inspira-se na descoberta do Brasil. Agora, no país do carnaval, é possível que o Brasil descubra o musicalísmo cantor da Ilha mágica de encanto para o ouvido e a inteligência que seus versos ecoam: “A ilha ninguém achou/ Porque todos sabíamos/ Mesmo nos olhos havia/Uma clara geografia”.

(Fonte: Veja, 12 de março de 1975 – Edição n° 340 – LITERATURA/ Por Leo Gilson Ribeiro – Enfim absolvido/ Por José Aguilar – Pág; 92/93)

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